Cheguei a casa urrando de fome e com muita pressa, mas a
história não se resume a isso. Havia saído para tentar caçar alguma coisa, fosse
um trabalho que rendesse uns cobres, ou um animal que pudesse ser servido no jantar.
Para meu desespero, moro numa cidade que já foi grandiosa, estragada por
políticos corruptos, onde os animais que encontramos nas ruas não são recomendáveis
para uma refeição.
Sabia que era grande a possibilidade de, no máximo, conseguir
arranjar problemas. Não sou chinês para comer ratos, e nem queria imaginar se
uma dessas dondocas noiadas mães-de-pet me vissem dando um teco ou uma porrada
nos cornos de um gato ou de um cachorro vadio para me alimentar por, pelo
menos, duas vezes. Pensei que poderia pedir dinheiro a uma delas para comprar um podrão na
esquina, mas era melhor não, pois elas não dão refeições, ou dinheiro para comprá-las, a um adulto.
Primeiramente, por não se importarem com humanos, independentemente de sua
idade ou situação pessoal; e em segundo lugar porque já torrou todo o dinheiro,
na maioria das vezes no veterinário, no pet shop e na compra do iPhone para
tirar fotos dos filhos e colocar no seu Instagram e em páginas do tipo “mundo
pet”. Fodam-se as mães-de-pet!
Cheguei a mendigar, mas a minha carranca mais assusta que
inspira a solidariedade humana, o que torna essa tarefa um tormento.
Teimoso, segui por aí até conseguir que a funcionária boazinha
de uma padaria ouvisse minhas lamúrias, e se apiedasse de mim. Disse que não
poderia pagar por pãezinhos fresquinhos, pois aquela desgraça de peste chinesa,
a tal Covid (ou covarde?) 19 havia desempregado todos de sua família, que
naquele momento viviam graças ao subemprego dela, mas pediu que eu aguardasse,
pois tentaria pegar um pão duro em meio aos que estavam no estoque para descarte.
Eu sabia que ela mentia sobre o descarte, porque aquilo seria aproveitado para
fazer farinha de rosca: reaproveitamento, valor agregado... Tudo isso faz parte
do empreendedorismo, eu bem sei, e ainda mais num país de merda onde a merda da
esquerda faz de tudo para vampirizar o empresário e escravizar a população.
Sim, até um fodido como eu já ouviu falar dessas coisas.
Ela deu dois pães, e eu corri para casa. Havia gás na botija,
pois aquilo que não se usa não acaba. Há tempos não saía comida dali, e não
era por falta de dotes culinários.
Esquentei uma banda do pão na única boca do fogão que funcionava,
para amolecer o alimento que poderia acabar de quebrar os cacos de dente que
ainda possuía, caso tentasse mordê-lo a seco. Como não sou alcançado pelo pecado
capital da soberba, agradeci a Deus pelo bendito pão torrado que aplacaria
minha fome, e intercedi pela boa alma que a havia providenciado. Peguei uma colher de sopa cheia da manteiga que descansava sobre a
mesa e esfreguei na banda do pão de sal, e mais uma, chegando a lambuzar os
dedos que seguravam aquele santo pedaço de comida que salvaria a noite,
aplacando a fome que me castigava desde o dia anterior, quando consegui salvar
meio sanduíche na lixeira, onde um gordinho fresco o havia descartado.
Lambi os dedos, por óbvio, mas fazendo caretas. Não reunia
condições de desperdiçar qualquer coisa que pudesse ser comida, mas, por Deus!,
seria a última vez que comeria aquela pasta rançosa intragável, que jazia sobre
a mesa há milênios, com um pouco de bolor nas bordas. Isso explicava a
quantidade estúpida de manteiga, a qual certamente provocaria um enfarto na nutricionista
solitária e meio coroa que eu havia comido por todo o inverno de 1994, em
Petrópolis. Que fique claro: comido no sentido metafórico (e metadêntrico, se
for o caso, na sequência).
Vou dormir, e tentar esquecer toda essa desgraça, e só uma coisa
pode me confortar, além da minha fé: não há pesadelo que seja pior que essa
realidade.
As coisas podem ser diferentes amanhã. É possível encontrar um
rumo decente para minha vida, conseguir uma renda regular para fazer aquilo o que
fazem as pessoas normais: pagar contas e boletos. Isso se meu estado e aparência
famélicos permitirem que eu tenha condições de me apresentar para fazer algo, e
efetivamente o consiga fazer. Há também a possibilidade de ser atropelado por algum
altruísta que resolva expiar seus pecados me ajudando a recuperar o orgulho,
para voltar a levar uma vida normal.
Tenha bons sonhos...
Boa noite!
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.