Ele chegou à oficina em que agendou o
serviço no carro com meia hora de atraso, e o gerente, sisudo e resmungão,
grunhiu algo como: “é melhor o senhor deixar o carro e voltar mais tarde”.
Sabia que era uma possibilidade e, com antecedência, tinha resolvido bancar a
aposta, levando consigo dois livros (leitura atrasada àquela altura de sua
vida): Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e Ortodoxia, de Chesterton. Porque
morava longe, preferia esperar o orçamento e, se fosse o caso, a realização do
serviço. E, então, perguntou se haveria um lugar sossegado para ler.
A oficina ficava no limite de dois
municípios, um lugar afastado, aparentemente interiorano, e ali havia uma
praça, para a qual o resmungão apontou:
- Pode ser ali na praça. É sossegado e
seguro.
Ele se encaminhou para lá. Deu uma
rápida olhada no local, que estava praticamente vazio, à exceção de duas
senhoras com roupas de ginástica, e dois senhores que jogavam damas. Sentou no
banco mais próximo, e mal folheava a primeira página, surgiu, sabe-se lá vinda
de onde, uma cracuda, falando com os dentes trincados:
- O que o senhor está lendo?
- Um livro para um trabalho que
preciso terminar – respondeu, tentando encerrar o assunto.
- Pensei que fosse a Bíblia...
- Não é não.
Ele estava desconfortável, pois há
muito tempo não conversava com alguém sob o efeito de drogas – sem contar que
nunca havia interagido com um viciado em crack.
E veio a pergunta incômoda:
- O senhor não quer fazer um programa?
Ele vinha evitando o contato visual, e
pela primeira vez resolveu se dirigir à interlocutora como de costume, olhando
firme nos olhos. Não viu nada; não havia um ser humano ali.
- Não! Muito obrigado pela oferta, mas
eu vou recusar, porque realmente preciso trabalhar - achou que essas palavras
causariam menor impacto e lhe pouparia problemas. E momentaneamente deu
resultado. Ela saiu. Nada pediu. Não se revoltou. Apenas saiu...
Já estava sossegado, achando que não a
veria mais, quando ela surgiu, perguntando ostensivamente se ainda estava
trabalhando. Ele respondeu que sim, e indagou o motivo de sua preocupação. Ela
disse que ele estava atrapalhando, pois queria dormir.
- Aqui? Nesse banco? - Perguntou,
olhando ao redor, como que a mostrar a grande quantidade de bancos da praça.
Ao receber como resposta um sim, ele resolveu
sair. Não seria possível uma conversa, e ela não o deixaria em paz. Pensou em
ir para casa, mas a distância novamente o desencorajou. Então, seguiu em
direção a um bar em frente à praça, receoso de que aparecesse outro noiado, com
um caco de vidro, exigindo dinheiro. Ele ainda reparou que um idoso, que estava
sentado nesse bar, de olho na praça e tomando refrigerante, levantou
imediatamente.
Sentiu vontade de um gole, mas lembrou
que deveria dirigir. Decidiu por uma garrafa de água com gás e, após pagar,
sentou onde antes estava o idoso, que àquela altura estava na praça, fazendo o
“cerca Lourenço” na cracuda. Também foi possível perceber que havia chegado
outro noiado, que estava deitado num banco, e que dois rapazes fumavam, em
verdade, uma pedra, e não o edulcorado “cachimbo da paz”, cantado pelo
proselitista marcha lenta.
Aquele cenário sintetizava a decadência
moral, a total ausência de valores, e era forçoso concluir que os inimigos haviam
jogado o Ocidente na lona, com a paulatina aplicação de técnicas subversivas, induzindo
à renúncia da herança civilizacional. Era a entrada triunfal do lumpemproletariado,
a nova força revolucionária, em cena. “Autoridades”,
artistas, acadêmicos, ideólogos e militantes haviam criado um ambiente perfeito
para a multiplicação de pessoas vivendo à margem da sociedade, para serem usadas
na causa revolucionária; e ainda contaram com o auxílio luxuoso de ideólogos
liberais, e suas fervorosas crendices de que a liberdade econômica é a cura de
todos os males e que, sob quaisquer circunstâncias, somos donos de nossas
ações: “o usuário de drogas o faz por uma liberalidade”. É o mundo visto de uma
perspectiva ideológica, partindo de temas com o conceito deliberadamente
deturpado, como luta de classes, poder, democracia, liberdade e economia
(planificada ou liberal); é o ser humano considerado segundo sua
prestabilidade, ora servindo como mão de obra do Estado ou instrumento de promoção do caos social, ora vítima
do descaso, tratado como o único responsável por sua própria recuperação, se porventura
quiser ser parte da população economicamente ativa, não importando se é
portador de uma doença contagiante, que além de atingir o próprio usuário, afeta
a sua família e a sociedade como um todo.
Àquela altura, após todas essas ideias
passarem em sua cabeça, os livros, companheiros diletos, foram esquecidos, ao passo
em que ele mergulhava em profunda tristeza.
Fernando César Borges Peixoto
É um advogado niteroiense que gosta de escrever e,
até certo ponto, saudosista.