terça-feira, 29 de junho de 2021

Uma rede de fezes

 

Fezinha, hipocorístico de Saquinho de Fezes, como era conhecido, tinha uma estranha mania de ter fé na vida.  NÃO! Sujeito peculiar, costumava intrometer-se em qualquer assunto discutido ao seu redor. Tomava a palavra mesmo sem lhe ser concedida e dava um show, prestando esclarecimentos definitivos, formulando conceitos científicos, inclusive , atacando teorias e desqualificando posições contrárias às suas. Enfim, brindava com sua opinião de especialista aos que quisessem ouvi-lo (ou não).

Por ser um homem do mundo, fazia questão de dividir sua sabedoria com todos, e não apenas com o seleto grupo que privava de maior intimidade. Com efeito, bastava uma rodinha formada e lá vinha ele, pisando manso, olhando para os lados, balançando a cabeça e dando sorrisos e tchauzinhos para o vazio, tal qual políticos e celebridades impopulares.

E chegava chegando...

Estávamos entre o fim da década de oitenta e o início da década de noventa do século passado; e informação não era algo encontrado com a facilidade de hoje. Não havia internet, smartphones, buscadores ou redes sociais, ferramentas que permitiriam desmenti-lo imediatamente. Pode-se dizer, com isso, que a parca tecnologia, ao fim e ao cabo, advogava em seu favor.

Após chegar ao grupo e fingir, por um minutinho, inteirar-se da conversa que já estava ouvindo há tempos PIMBA! , passava a expor aos interlocutores sua (pseudo)autoridade sobre temas (por ele) desconhecidos. Um papai sabe-tudo que espalhava a roda, gerando o anticlímax em conversas até então empolgadas, entabuladas por jovens não dinâmicos que muitas vezes puxavam um assunto apenas para contar uma anedota. Alguns iam embora, porque as explicações do maluco tomavam um tempão e gastavam a onda que a bebida dava nos amantes de Baco. E é importante salientar que as conversas, invariavelmente, ocorriam num trailer badalado à época. (Hoje é mais chique falar foodtruck.)

Como eu ia dizendo, lá vinha ele. Sobre a criminalidade, dizia: Acho que as leis do Direito Penal poderiam... ; sobre a qualidade da educação: Veja bem, as universidades formam... ; sobre o transporte público: Quer saber de quem é a culpa?  NÃO! É do olho gordo dos empresários, que...; sobre instrumentos musicais: O captador da Giannini Stratosonic é muito melhor que o da Golden Les Paul. Já as cravelhas...; sobre a existência de OVNIs: Perdi as esperanças de que os Estados Unidos liberem os extraterrestres capturados naquela nave espacial que caiu na Área 51. Fiquei sabendo, de fonte segura, que...; sobre a Autolatina: De cara, eu digo que a VolksWagen saiu perdendo, mas prefiro falar detalhadamente das diferenças dos motores do Apollo, do Verona, do Versailles, do Logus e do Pointer...

Na vida, porém, há limites que devem ser impostos; e como não poderia trair meu sangue latino, aos poucos fui ficando incomodado com aquelas interrupções non sense. Certo dia, depois de tomar umas geladas, alguém falou do cientista todo tortinho, que era fera na Física sim, não sabíamos seu nome de cor.

Ainda a certa distância daquela roda de conversa, Fezinha veio falando alto e já se adiantando: Veja só, esse cara é um...

Foi a gota dágua para que eu, um jovem meio inconsequente, e por vezes mal educado, disparasse em tom zombeteiro: — “Veja só é o cacete! Você vai falar que entende de Física Quântica? Vai se ferrar!

Em meio à gargalhada geral, ele murchou; e aproveitando o gancho, a galera perdeu os pudores e pegou no pé dele, colocando para fora o que há anos incomodava. Muitos ansiavam que alguém tomasse coragem e fizesse isso. E fui eu, que, de minha parte, confesso que cheguei a achar que tinha exagerado.

Os fatos, como foi dito, ocorreram há cerca de trinta e três anos, mas trata de algo extremamente atual, nesse mundo de ai, meu Deus!

Confira a timeline das suas contas nas redes sociais e veja se não encontra alguns Fezinhas por lá. São pessoas sem o mínimo conhecimento que invadem postagens alheias para emitir opiniões não solicitadas em temas variados. Para piorar, porque sempre é possível, há os que deturpam o conteúdo da mensagem por pura incapacidade de interpretar textos. (Antes, uma dica: certifique-se de que não é você quem age assim.)

Da minha parte, joinha mental para quem faz da sua conta um meu querido diário e a recheia de opiniões sobre os mais variados temas. Não ligo, não comento, não ofendo. Mas, por que Oh, Pai! Por quê? a ignorância ou a necessidade de se expressar impulsionam certas pessoas a opinarem nas postagens de outras que mal conhecem, para ofendê-las ou as criticar? E o fazem com gosto, todos os dias, todas as noites, todas as horas, todos os segundos, todas as madrugadas, momentos e manhãs...

Fezinha não era má pessoa, e por isso demorei tanto tempo para reagir. No fim, tudo ficou bem, ele não ficou bravo comigo, mas valeu a lição, pois o ritmo dessas intervenções diminuiu.

Na ocasião, havia o contato pessoal, presencial, que suscitava a ponderação sobre a indelicadeza de sacanear alguém na lata, mas hoje é diferente. Esse comportamento peculiar foi socializado e as redes sociais multiplicaram a quantidade de pessoas como o saudoso Fezinha; são polímatas da internet que não se constrangem ao dar pitacos sobre temas variados. Antes fossem como unicórnios, difíceis de encontrar.

Além disso, a realidade mudou, e agora é fácil rebater com autoridade, e de forma instantânea, as asneiras com que nos molestam. Mas há sempre um desgaste e a perda de tempo.

Eu, da minha parte, encaro esse mal pós-moderno da seguinte maneira: se alguém escreve tolices, despeja frustrações ou apresenta suas idiossincrasias em meus posts, não espero para constatar se é buona gente. Bloqueio sem culpa, para não ser grosseiro como fui um dia e evitar a fadiga. Depois, não comento com terceiros nem começo discussões a respeito do episódio em novas postagens. Estou envelhecendo, ando com pouca paciência e, além do dever de prudência — que deve ser observada principalmente nessa fase da vida em que tendemos a exercitar sem filtros a qualidade da franqueza —, sinto medo das transformações por que passa a nossa sociedade.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, pós-graduado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Teoria do Especialista

 

Terminado o ajantarado de domingo, era hora da digestão.

— Venha! Vamos à varanda tomar café; temos algo sério a palrear — disse Arnuvô Antunes.

— A coisa é grave? Fala de semblante sisudo, pai; seu tom insinua que eu aprontei algo que nem de longe passa por minha cabeça.

Para acalmar a cria, respondeu docemente:

— Nada disso, filho; a questão é bem outra, pois.

Olhava orgulhoso para aquele que, dia desses, precisamente há dezoito anos, havia nascido - um bebezinho com cara de joelho - para, em seguida, tornar-se um pinga-fogo. Não imaginou que chegaria tão rapidamente à idade de abandonar as asas protetoras dos pais para encarar o mundo adulto.

— Sente-se! Vamos encerrar o mistério — disse ao puxar o assento.

Era tempo de conquistar a vaga na faculdade e hora da conversa aguardada ansiosamente há anos: um bota-fora da juventude de Marx Simplício Antunes — Simplinho, na intimidade —, no qual seria exposta a melhor forma de o rapaz evitar as dificuldades que o pai havia enfrentado. Pretendia concatenar as ideias discutidas nos últimos anos com o filho, sobre política, poder, dinheiro, futuro, formação acadêmica e profissional.

— Deixe-me recontar minha história com detalhes para uma reflexão sobre as exigências de uma trajetória vencedora, sem percalços nem sustos.

Corpulento e com cabeça pequena, o que causava incômoda desarmonia, Arnuvô possuía dedos gordos feito salsichas, barba rala e grisalha, era suarento e os pés chatos exigiam sapatos especiais. A voz era grave, e falava manso até nos momentos de tensão. Casou cedo com Cátia Mascarenhas, a Tita, mas, como ambos priorizaram o sucesso profissional, ele já não era moço quando o filho nasceu. Aposentara-se como magistrado numa das maiores Cortes de Justiça do país, no Distrito Federal, depois de iniciar a carreira no Tribunal de Justiça, cuja vaga abiscoitou através do quinto constitucional - introduzido no Governo Provisório de Getúlio Vargas, na Constituição de 1934 -, pelo prestígio alcançado no posto de Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Espírito Santo, que comandou por oito anos.

Seu pai, seu Joaquim, um comerciante descendente de portugueses, alcançou cedo a calvície; possuía traços árabes, rosto largo, bochechas grandes, e apresentava grandes tufos de pêlos nas narinas e nas orelhas. Era um daqueles homens que os norte-americanos chamam “self made man”. Na infância, vendeu cocadas, balas, mariolas e frutas; na juventude, deu expediente numa fábrica de tecidos até que, após juntar dinheiro com muito sacrifício, iniciou o pequeno armarinho no Parque Moscoso, Centro da capital. A empresa prosperou e Joaquim casou com Genara, uma italianona gorducha, fogosa, embora religiosa, que se vestia com recato e possuía mãos fortes, belas ancas e cabelos e olhos negros como azeviche. Com ela teve nove filhos, e não se soube de nenhum bastardo.

— Mamãe ajudou no que pôde; poupou cada centavo enquanto dava conta da educação dos filhos, cultivava uma baita horta e cuidava do galinheiro e do chiqueiro construídos no quintal da chácara. Os bichos, por sinal, alimentavam a família e ainda rendiam uns bons cobres, vendidos vivos ou abatidos.

Arnuvô foi o oitavo a nascer; por sorte, no período das vacas gordas, em que pôde gozar de regalias, pois Joaquim pôs os mais velhos no trabalho pesado para expandir os negócios, mas apiedou-se dos mais novos e exigiu deles apenas um curto período de plantão na loja, para tomarem gosto pelo trabalho. A essa altura, o espaço físico da empresa dobrara e outra loja havia sido inaugurada, funcionando no térreo de um sobrado da mesma rua, adquirido pelo patriarca, e onde os filhos iam viver amontoados à medida que casavam. No novo negócio, oferecia serviços de alfaiataria, venda de calçados e aluguel de roupas finas — esse último não sendo levado adiante, por ser algo para além do seu tempo. Graças à parcimônia de Joaquim, quando a expansão das cidades promoveu a fuga dos centros das capitais, e ocorreu a obsolescência daquela prática comercial, provocando o consequente fechamento das lojas, os filhos se encontravam bem remediados, embora nenhum deles tenha enriquecido, à exceção de Arnuvô.

Ademais, o velho tinha por princípio não cobrar nem dever favores, e por isso jamais lhe passou pela cabeça incomodar clientes e amigos influentes para solicitar uma sinecura onde encostar os rebentos.

— Sabe, filho — continuou —, fiz minha parte; não queria ser acomodado como seus tios, que não passaram de comerciantes medianos.

Arnuvô investiu muito na profissão, mas também soube usar, à revelia do pai, a consideração e o respeito que o velho gozava em meio à nata da sociedade. Pavimentou a carreira após advogar em regime austero na maior banca capixaba e, depois de experiente, levou os melhores clientes do antigo patrão e muitos dos empresários amigos de Joaquim para o escritório que abriu com um influente colega de faculdade.

— Eu consegui montar a maior banca do estado nos ramos do Direito Tributário e Comercial; e ganhei muito dinheiro.

E então explicou como alinhavou contatos nos meios jurídico, político e empresarial. Ele sabia a quem recorrer; e conhecia prepostos que recebiam dinheiro em nome das autoridades de cada ente público. Praticava tráfico de influência abertamente, patrocinava festas de servidores públicos, distribuía brindes no final do ano, ingressos de espetáculos concorridos e até viagens com hospedagem para locais paradisíacos, mas não tinha poder institucional; e precisava do poder para a roda girar ao seu derredor, pois os ventos poderiam mudar numa mudança política desastrosa.

Por isso passou a buscá-lo.

Entrou na Maçonaria e mexeu pauzinhos para assumir uma comissão da Ordem, instituição que usou para patrocinar ações do interesse de determinadas pessoas e grupos de influência. As coisas aconteceram: ganhou títulos honoríficos e acadêmicos, além de novos clientes, prestígio e muito mais respeito. Por fim, deixou de pagar pelos favores recebidos.

Em meio às elucubrações, dona Tita trouxe um bule de café recém passado, xícaras, açúcar, adoçante e o famoso bolo de Santa Maria, receita de gerações de sua família. Tinha nove anos a menos que o marido, seus cabelos eram castanhos, mantidos em volume para esconder as orelhas de abano; a boca miúda, os olhos ranços, com cílios enormes, e as sobrancelhas finas. Vaidosa, magrinha e arisca, amava maquiagem e jóias.

O marido regalou-lhe um sorriso manso e continuou com o filho:

— Quando fui empossado como Desembargador, deixei o escritório nas mãos do Fausto Miranda e mudei de categoria.

Agora as pessoas o procuravam, dispostas a entregar malas de dinheiro em troca de conselhos, como costumava dizer; e ele, para não sujar as mãos, indicava o antigo escritório: — A banca certa para patrocinar a causa —, dizia entre piscadelas aos jurisdicionados aflitos. E a mesada chegava limpinha, gorda; Miranda jamais fora infiel.

Arnuvô se mexeu na confortável cadeira e serviu uma xícara do café colhido, torrado e moído em sua fazenda.

— Eu empreguei sua mãe e alguns parentes de pessoas influentes em bons cargos em comissão, que foram mantidos nos sucessivos Governos — ninguém era demitido, ainda que mudassem gestores e ideologias; e fiz o mesmo em relação a admissões em cursos de pós-graduação das universidades públicas. 

Dessa vez pegou um naco de bolo, enfiou-o todo na boca e, após o engolir, perguntou ao filho, que estava aparentemente distraído:

— Agora, diga-me, o que você tem em mente?

O rapaz deu uma estremecida, arregalou os olhos e respondeu:

— Eu pretendo me formar em Direito e seguir a sua carreira. Seria muito justo, certo? O Fausto ofereceu uma vaga de Advogado Sênior e se dispôs a voltar ao nome inicial: Antunes & Miranda. Eu ainda poderia me dedicar ao lobby, frequentar mestrado sanduíche na Argentina, doutorado e pós-doutorado em Coimbra e Salamanca; assinar pareceres, conseguir vaga de professor na Federal e esperar o tempo passar até tomar posse num Tribunal qualquer pelo quinto. Esqueci alguma coisa?

Arnuvô intercedeu, descendo repetidamente as mãos espalmadas para baixo, como a indicar uma frenagem; e, apesar de mostrar inquietação, concordou que o serviço público no Brasil é promissor, pois o trabalho do intelectual orgânico é valorizado, mas advertiu que não foram apenas os gordos salários de magistrado que proporcionaram aquela vida abastada.

— Foi difícil amealhar um vultoso patrimônio; precisei correr riscos. — falou em tom pesaroso, confessando que a considerável soma depositada nas contas dele, da mulher e do filho, no país e no exterior, era fruto de arranjos nada republicanos; e aproveitou para alertar Simplinho sobre ser essencial que não esbanjasse com deleites juvenis.

— É bom manter as reservas, o futuro a Deus pertence.

— Não sou dado a gastanças, fique em paz! — disse ao orgulhoso pai.

— Acumule mais e providencie que só exista a mão de entrada, e nunca a de saída, em seu bolso. — advertiu o velho.

Arnuvô advogava que a solução para uma carreira promissora era a diversificação, o que lhe faltou por não ter sido bem instruído: angariar prestígio para estar na grande mídia e nos círculos da intelectualidade oficial. Assim, poderia alcançar o estrelato, dar entrevistas, palestrar e publicar livros, inclusive de áreas alheias a sua formação — multidisciplinariedade era a pedra filosofal —, pois os queridinhos do establishment podem abordar qualquer assunto, sem a menor ideia do que se trata, que ainda assim o público consome.

— E qual seria o caminho? — perguntou.

O filho balbuciou algo, mas Arnuvô, não querendo ser interrompido, adiantou-se e respondeu a pergunta retórica:

— Você tem que ser um especialista. Especialistas conquistam respeito fácil e são muito requisitados; estão sempre em evidência, são celebridades recebem convites para participar de audiências públicas, programas de rádio, TV e internet. São muito bem pagos para dar pitacos aqui e ali sobre todos os assuntos e quaisquer acontecimentos.

— Especialista! Nunca havia pensado nisso como profissão.

Um dos três gatos da casa passou ronronando e se arrastando na perna cabeluda de Arnuvô, que não suportava os felinos, mas admitia-os em casa em respeito a Tita.

Ele puxou a perna, fez um muxoxo e explicou:

— Requer mais titulação que capacidade. Por esse motivo, é importante não fazer apenas uma, mas duas faculdades — e simultaneamente —, como Direito e Ciências Políticas, para poupar tempo.

Disse que uma singularidade desses tempos é que as faculdades não exigem nada além da presença do aluno; a baixa cultura e o analfabetismo funcional andavam tão em voga que, para obter sucesso, bastaria ao aluno assumir os conceitos e as narrativas vigentes, mascarando uma postura crítica, que o diploma chegaria em mãos. Ademais, em qualquer faculdade de Humanas estudam-se, basicamente, os mesmos autores, como Karl Marx, Karl Popper, Herbert Marcuse, Michel Foucault e Zigmunt Bauman. Então, o tempo e o esforço dedicado a uma seria aproveitado na outra. E, para melhorar, o professor moderno salva qualquer aluno, inclusive o que se esforça para tirar nota baixa, mandando-o fazer uma tarefa em casa, trabalho que poderá ser encomendado até mesmo no rapaz que vende salgados na cantina da faculdade.

— Você não vai precisar dedicar muitas horas ao estudo. Poupe tempo, capacite-se nas orelhas dos livros de escritores mainstream. Dos clássicos da literatura universal, colha um ou dois capítulos e leia resenhas disponíveis na internet.

Pegou mais um pouco do café, que já começava a esfriar, e falou da importância de perambular com papéis e livros nas mãos, para afetar erudição.

— A aparência é tudo! — falou firmemente.

E falou também que o filho deveria adotar, ainda durante a formação, um tom professoral ao se dirigir aos colegas e aos demais interlocutores, pois isso impressiona e pode render frutos.

Ao tratar de temas que não dominasse, deveria falar de forma assertiva; e não se sentir constrangido ao se contradizer no curso da exposição de ideias, pois os ouvintes nunca percebem. E se perceberem, dificilmente terão coragem de o admoestar. Além disso, não seria demasiado apresentar soluções teóricas para temas sensíveis, sem se preocupar em provar a viabilidade de sua execução, pois é mais importante ter uma opinião que ter conteúdo; e opinião sobre tudo...

— Você deve conhecer as notícias dos grandes jornais e os temas discutidos pelos medalhões. Seus posicionamentos devem se conformar ao discurso corrente, mas afirme que são pessoais e que algumas figuras conhecidas concordam com você, embora a abordagem deles seja confusa.

Arnuvô estava empolgado...

— Use a palavra ciência aqui e ali, para dar sustança as suas teorias. A palavra ciência impressiona, e é repetida por onze em cada dez idiotas. Qualquer teoria abstrata se torna realidade para um público ignorante quando, ao final, há a afirmação de que aquilo é ciência.

— É verdade, pai. Qualquer político semiletrado fala em ciência, inclusive usando o termo fora do contexto.

 — Sim... São os que falam do que não sabem, como eu disse. Outra coisa: nunca deixe de participar de debates com intelectuais prestigiados pelo grande público; e jamais seja-lhes hostil.

Agora Arnuvô suava, e de tanto que suava, tinha a respiração dificultada; e a voz saía rouca:

— Frequentando o círculo correto, você será chamado para dar palestras em empresas e instituições públicas e privadas; viajará por conta dos anfitriões, receberá gordos cachês; nessas viagens patrocinadas poderá se encontrar no estrangeiro com quem queira lhe pagar propinas; venderá os livros que escrever pela propaganda gratuita dos fóruns em que participa e dos puxa-sacos. E para ter uma produção bibliográfica volumosa, basta adequar a escrita de obras estrangeiras ao vernáculo, com uma ou outra citação em língua estrangeira, ou tratar de assuntos de forma rasa com pompa de alta cultura. Se o tema estiver em voga, escreva um livro de poucas páginas e peça ao editor para fazer parecer mais volumoso. Não se preocupe, serão best sellers.

Dessa vez, o gato caolho, o mais detestado, deu o ar da graça e levou uma bicuda de Arnuvô. Novo pedaço de bolo enfiado inteiro na boca, seguido de um glup-glup no café morno. Tornou ao bate-papo:

—Sei que não será difícil para você, sua educação foi planejada para forjar uma trajetória vencedora. Não atenda às más influências, despreze os resquícios da ascensão do fascismo e do populismo de extrema-direita que assolaram o mundo e o país em tempos recentes.

E pela enésima vez falou da odisseia que tinha sido a escolha da escola em que fariam sua matrícula. Ele e dona Tita olharam com lupa as instituições burguesas disponíveis e, ao se depararem com as mais conceituadas, concluíram que a primeira era mais famosa que eficiente; a outra, religiosa (Deus nos livre!); uma terceira, formava excelentes profissionais de exatas, o que não os apetecia. Ao final, optaram pela que ele cursou o ensino fundamental e o médio, a única voltada para moldar líderes.

— Essa percepção é ouro puro, poucos pais se dão conta disso. Eu e sua mãe fomos muito perspicazes — falou enquanto comemorava com um soco no ar.

Aconselhou Simplinho a, em seu tempo, fazer o mesmo pelos filhos, os seus netos; e lembrou da importância de tomar as rédeas da educação das crianças, impedindo que levassem a vida que ele, Simplinho, forçosamente pregaria da boca para fora, como liberação de drogas, lesbianismo, gayzismo, racismo, ecologismo, misticismo... Isso era para as famílias alheias; sua preocupação seria garantir o equilíbrio entre os extremos.

— A sua família, construa e mantenha no formato tradicional. É impossível manter a harmonia no caos. Perante a sociedade, combata o reacionarismo e o conservadorismo, pregue o dever de não abrir concessões aos limites castradores impostos por nossa civilização ocidental. Porém, jamais os renegue em sua vida privada. Viva-os, filho! Sequer questione.

Na sequência, serviu-se de mais café e quase cuspiu, pois já estava intragável. Puxou um lenço de linho bordado com suas iniciais e passou no rosto e na boca; e só agora pôde observar que o vento parara de soprar e o calor tomava conta do ambiente.

Arnuvô fitou o infinito como a buscar mais argumentos e prosseguiu, afirmando que o segredo do sucesso era usar a linguagem jovial dos influenciadores digitais, dos artistas ou de outros profissionais que arregimentavam jovens e adolescentes.

— Comunique-se como aquele paspalho que imita foca; — falou — seja o cara legal que os jovens amam e os velhos infantilizados que abundam em nossa sociedade admiram. São pessoas totalmente desprovidas de conteúdo e facilmente manipuláveis; telas brancas em que podemos reproduzir aquilo o que quisermos, tanto no corpo quanto na mente.

Não, cioso leitor, a essa altura não perdemos o exemplar pater familias para o mundo delirante dos confusos mentais; ele apenas sugeriu de forma mais incisiva o tipo de comportamento que leva ao sucesso.

Ele voltou à carga afirmando que seria útil fazer e estreitar amizade com jornalistas e blogueiros para, através deles, ocupar espaços na mídia, replicar seus artigos e promover seu trabalho.

Também era apropriado apoiar instituições civis voltadas para as causas progressistas. Mais importante, ainda, seria criar sua própria ONG para receber dinheiro grosso de milionários e de fundações globalistas. Por fim, e em suma, sua meta de vida deveria ser alcançar o status de influenciador editor da sociedade; ser considerado em seu métier — não precisava sê-lo efetivamente — como filósofo, jurista, humanista, cientista político e escritor. O que é um baita pedigree.

— Você não vai precisar possuir o poder diretamente; com o poder, o dinheiro chega, chega grosso, mas também chega vigiado pela oposição e por inimigos. Empenhe-se em influenciar um número considerável de pessoas poderosas, seja generoso com eles e eles abrirão muitas portas. — e enquanto lamentava que no seu tempo as instituições eram muito imbricadas, arrematou: — Quer mais poder que isso?

— Pai, será que consigo realizar essa façanha? Nessa minha curta vida, eu segui seus conselhos preliminares, fiz amizades importantes e frequentei gente bem nascida, mas, olhando o que foi falado aqui, resta sopesar o quão difícil é ser especialista.

— Você consegue. Seja modesto ao se aprofundar no campo da intelectualidade, saber demais encurta os horizontes. Defenda ideias de forma conveniente ao pensamento dominante, e aperfeiçoe-se no manejo das palavras. Sinalize virtudes em qualquer tempo e lugar, evite conflitos e comunique-se de forma simples com os que possuem poder e dinheiro. Por fim, use linguajar difícil para impressionar tolos e intelectuais. Esse é o caminho. Agora vamos assistir ao jogo da seleção; e chega de café, — Argh! — precisamos dormir cedo.

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

 

 

sexta-feira, 18 de junho de 2021

A calva

  

Há uma calva alva esperando

para atravessar na faixa

Mas, a guarda, ninguém baixa

Ela se demora, e enquanto o sol brilha

A calva sua e também brilha como sol

Ao refletir seus raios

 

A calva não se dá por vencida

E estende a mão como manda o figurino

Daí vem o motorista inconsequente

  um caminhão e quase a atropela

Babaca!

Se sua mãe o visse — e ouvisse, motorista,

  o que pensaria ela?

Xingada sem dó nem piedade,

pelo moço gordo que atravessava do lado oposto

 

Ah, a calva! A calva alva...

 

De repente, o motoqueiro, à toda,

  despenca da calçada acelerando

E quase lhe arranca um membro

É como se estivesse num enduro — o

  jogo é duro

Igual ao chão beijado após o desvio

  tresloucado

E depois de caído, com o corpo

  retesado

O capacete retirado; vai ralhar, 

  sem calma, com a calva:

— O que você faz na rua, 

  atrapalhando o trânsito?

Eu sou motoqueiro, faço entregas 

  vapt-vupt

Não tenho tempo para atrasos

E isso isenta minha responsabilidade

A culpa é sua, a culpa é sua,

Da calva que sua; e brilha como o sol.