Fezinha, hipocorístico de “Saquinho de Fezes”, como era
conhecido, tinha uma estranha mania de ter fé na vida. — NÃO! — Sujeito
peculiar, costumava intrometer-se em qualquer assunto discutido ao seu redor.
Tomava a palavra mesmo sem lhe ser concedida e dava um show, prestando
esclarecimentos definitivos, formulando conceitos —
científicos, inclusive —, atacando teorias e
desqualificando posições contrárias às suas. Enfim, brindava com sua opinião de
especialista aos que quisessem ouvi-lo (ou não).
Por ser um homem do mundo, fazia
questão de dividir sua sabedoria com todos, e não apenas com o seleto grupo que
privava de maior intimidade. Com efeito, bastava uma rodinha formada e lá vinha
ele, pisando manso, olhando para os lados, balançando a cabeça e dando sorrisos
e tchauzinhos para o vazio, tal qual políticos e celebridades impopulares.
E chegava chegando...
Estávamos entre o fim da
década de oitenta e o início da década de noventa do século passado; e
informação não era algo encontrado com a facilidade de hoje. Não havia
internet, smartphones, buscadores ou redes sociais, ferramentas que permitiriam
desmenti-lo imediatamente. Pode-se dizer, com isso, que a parca tecnologia, ao
fim e ao cabo, advogava em seu favor.
Após chegar ao grupo e
fingir, por um minutinho, inteirar-se da conversa que já estava ouvindo há
tempos — PIMBA! —, passava a
expor aos interlocutores sua (pseudo)autoridade sobre temas (por ele)
desconhecidos. Um “papai sabe-tudo”
que espalhava a roda, gerando o anticlímax em conversas até então empolgadas,
entabuladas por jovens não dinâmicos que muitas vezes puxavam um assunto apenas
para contar uma anedota. Alguns iam embora, porque as explicações do maluco
tomavam um tempão e gastavam a onda que a bebida dava nos amantes de Baco.
Como eu ia dizendo, lá vinha
ele. Sobre a criminalidade, dizia: — Acho que as leis
do Direito Penal poderiam... —; sobre a qualidade da
educação: — Veja bem, as universidades formam... —; sobre o transporte público: — Quer
saber de quem é a culpa? — NÃO! — É do olho gordo dos
empresários, que...; sobre instrumentos musicais: — O
captador da Giannini Stratosonic é muito melhor que o da Golden Les Paul. Já as
cravelhas...; sobre a existência de OVNI’s: — Perdi as esperanças de que os Estados Unidos liberem os
extraterrestres capturados naquela nave espacial que caiu na Área 51. Fiquei
sabendo, de fonte segura, que...; sobre a Autolatina: —
De cara, eu digo que a VolksWagen saiu perdendo, mas prefiro falar
detalhadamente das diferenças dos motores do Apollo, do Verona, do Versailles,
do Logus e do Pointer...
Na vida, porém, há limites
que devem ser impostos; e como não poderia trair meu sangue latino, aos poucos
fui ficando incomodado com aquelas interrupções “non
sense”. Certo dia, depois de tomar umas geladas, alguém
falou do cientista todo tortinho, que era fera na Física — sim,
não sabíamos seu nome de cor.
Ainda a certa distância
daquela roda de conversa, Fezinha veio falando alto e já se adiantando: — Veja só, esse cara é um...
Foi a gota d’água para que eu, um jovem meio inconsequente, e por vezes
mal educado, disparasse em tom zombeteiro: — “Veja só” é o cacete! Você vai falar que entende de Física Quântica?
Vai se ferrar!
Em meio à gargalhada geral,
ele murchou; e aproveitando o gancho, a galera perdeu os pudores e pegou no pé
dele, colocando para fora o que há anos incomodava. Muitos ansiavam que alguém
tomasse coragem e fizesse isso. E fui eu, que, de minha parte, confesso que cheguei
a achar que tinha exagerado.
Os fatos, como foi dito,
ocorreram há cerca de trinta e três anos, mas trata de algo extremamente atual,
nesse mundo de “ai, meu Deus!”
Confira a timeline das suas
contas nas redes sociais e veja se não encontra alguns Fezinhas por lá. São
pessoas sem o mínimo conhecimento que invadem postagens alheias para emitir
opiniões não solicitadas em temas variados. Para piorar, porque sempre é
possível, há os que deturpam o conteúdo da mensagem por pura incapacidade de
interpretar textos. (Antes, uma dica: certifique-se de que não é você quem age
assim.)
Da minha parte, joinha
mental para quem faz da sua conta um “meu querido
diário” e a recheia de opiniões sobre os mais variados
temas. Não ligo, não comento, não ofendo. Mas, por que —
Oh, Pai! Por quê? — a ignorância ou a necessidade de se
expressar impulsionam certas pessoas a opinarem nas postagens de outras que mal
conhecem, para ofendê-las ou as criticar? E o fazem com gosto, todos os dias,
todas as noites, todas as horas, todos os segundos, todas as madrugadas,
momentos e manhãs...
Fezinha não era má pessoa, e
por isso demorei tanto tempo para reagir. No fim, tudo ficou bem, ele não ficou
bravo comigo, mas valeu a lição, pois o ritmo dessas intervenções diminuiu.
Na ocasião, havia o contato
pessoal, presencial, que suscitava a ponderação sobre a indelicadeza de
sacanear alguém “na lata”, mas
hoje é diferente. Esse comportamento peculiar foi socializado e as redes
sociais multiplicaram a quantidade de pessoas como o saudoso Fezinha; são
polímatas da internet que não se constrangem ao dar pitacos sobre temas
variados. Antes fossem como unicórnios, difíceis de encontrar.
Além disso, a realidade
mudou, e agora é fácil rebater com autoridade, e de forma instantânea, as
asneiras com que nos molestam.
Eu, da minha parte, encaro
esse mal pós-moderno da seguinte maneira: se alguém escreve tolices, despeja
frustrações ou apresenta suas idiossincrasias em meus posts, não espero para constatar
se é buona gente. Bloqueio sem culpa, para não ser grosseiro como fui um dia e
evitar a fadiga. Depois, não comento com terceiros nem começo discussões a
respeito do episódio em novas postagens. Estou envelhecendo, ando com pouca
paciência e, além do dever de prudência — que deve ser observada principalmente nessa fase da vida em que tendemos a exercitar sem filtros a
qualidade da franqueza —, sinto medo das transformações por que passa a nossa
sociedade.
Fernando César
Borges Peixoto
Advogado,
pós-graduado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um
saudosista.
Sensacional, acho que sei quem era o "pseudo sabe-tudo". Bons tempos, realmente hoje em dia a falta desse convívio presencial mudou comportamentos, mas alguns nunca mudam.
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