Dez
horas da manhã, um grupo de adolescentes tocava violão e cantava na esquina em
que os mais velhos se reuniam à noite, para jogar conversa fora. No meio de
semana, férias escolares, verão – já, já o sol estaria batendo a pino sobre a
mufa, mas não se importavam.
Viviam
a renovação da música na década de oitenta, e só conheciam os gemidos anasalados
de Chico e os gritinhos histéricos de Caetano porque os professores
impunham-lhes goela abaixo, entre loas imerecidas aos ditos “expoentes da música
popular brasileira”. E é bom que se diga que gerações acabaram ouvindo esses
músicos em razão da massificação imposta por formadores de opinião.
Rock
nacional na veia, iam de Barão, Paralamas, Lobão e Lulu Santos. Todo o
repertório mal tocado – e mal cantado também –, mas era divertido. Ao menos,
não perturbavam a vizinhança furtando frutas, invadindo casas para “roubar” um
banho de piscina, incitando cães a latirem, ou fumando maconha, para falarem
bobagens e reclamarem de fome. (“Eu podia estar roubando, eu podia estar
matando, mas estou aqui maltratando as cordas do Di Giorgio”.)
Surge
uma figura do nada, cambaleante, com cheiro de álcool, e pede o violão. Não tinha
trinta anos. Olhares enviesados, sabe-se lá por que, entregam-lhe o instrumento,
que cola no ouvido e bate nas cordas: “dom-dom-dom, din-din-din,
pléin-pléin-pléin...”. Aperta daqui, afrouxa de lá e devolve o violão.
-
Confere aí!
O
menino, puto, dedilha o pinho: “lá-lá-lá-lá, ré-ré-ré-ré, sol-sol-sol-sol...”. Olha
espantado, e solta um:
-
Tá afinadinho.
O
mamulengo sorri e pergunta:
-
Posso tocar uma música?
Os
moleques, agora curiosos, dizem em uníssono que sim; e ele manda um monte de
dissonantes, faz uma papagaiada danada, e canta Papel Marchê, de João Bosco. Um
deles estudava música, e ficou embasbacado com a destreza do bebum, que parou
no meio da execução, e perguntou se gostaram. Todos acenaram que sim, e ele pediu
para lhe pagarem uma cerveja.
“Não!”,
disseram os jovens que normalmente não tinham dinheiro nem para um picolé.
-
E uma cachaça? Mas caprichada...
Um
dos meninos coçou o bolso e tirou uma nota que dava para pagar umas duas doses
caprichadas da cachaça mais vagabunda, e outro, mais velho, foi lá buscar. Na volta,
disse:
-
Moço, o Carlinhos mandou num copo de plástico, depois de fazer um
interrogatório danado.
Deu
uma talagada e voltou a tocar: João Gilberto, Tom Jobim, João Bosco;
improvisou, e tocou (sabe lá Deus se bem ou mal) música clássica... O tempo
avançava, e o primeiro copo se foi. Veio o segundo e, junto, mais músicas – um
violão muito bem tocado para a realidade daqueles neófitos.
No
meio do segundo copo, já era quase meio dia – o sol estava rachando, e o bebum
resolveu ir embora. Matou tudo, e se despediu dizendo que tocava num barzinho,
num bairro próximo.
Saiu
mais cambaleante que quando chegara.
Na
sexta, os meninos se reuniram e foram vê-lo tocar. Talvez estivesse sóbrio, e
aí seria um espetáculo. Ao
chegarem, viram que os músicos se arrumavam, mas nada dele chegar; e resolveram
perguntar ao cantor, que respondeu entredentes que “aquele cachaceiro irresponsável
nunca mais iria tocar com ele”.
Acabou
a graça, mas os meninos tiveram uma lição sobre a desgraça do alcoolismo: viram
um talento desperdiçado – mais um dentre tantos, em nosso país de dimensões
continentais.
Fernando
César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista
e, de certa forma, um saudosista que agora inventou de escrever poesia.