sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Colação de grau moderna



Chegara o baile de formatura de uma das faculdades em que me formei ao longo dessa porca vida. Dois amigos do “Desopila o fígado”, grupo do futebol da segunda-feira, que foram convidados por colegas formandos, ligaram-me antes de eu chegar ao clube onde festejaríamos, avisando que duas de minhas ex estavam por lá. Avisaram porque conheciam o gênio de minha esposa.
Minha esposa, aliás, apesar da antecedência com que soubera o dia e a hora do evento, não chegava nunca do circuito cabeleireiro-maquiador-manicure, para o qual se dirigira há mais de seis horas, junto a minhas filhas e sogra.
Cansado de esperar e de ser ignorado em ligações e mensagens enviadas pelas redes sociais disponíveis, e sabendo o risco de iniciar uma guerra, resolvi enfrentar e aguardá-las na festa, que havia começado há meia hora quando tomei a decisão de chamar um Uber – com o caminho a ser vencido, quem sabe daria tempo de tomar uma cerveja e de tirar uma selfie em frente a um banner idiota qualquer.
Convite entregue à conferente do cerimonial, abraços distribuídos aos Atrasildos que, como eu, chegavam àquela hora na celebração, entrei e a primeira impressão era a de uma festa estranha, com gente esquisita. Uma música horrorosa, luzes em profusão, um painel com imagens confusas passando a mil por hora, fumaça com cheirinho... Eu já era meio coroa perto daquela garotada, mas não seria um estraga-prazeres a reclamar.
Meio deslocado, finquei a bandeira num lugar afastado. Os camaradas do futebol, e os mais chegados do curso, estavam com suas famílias, e eu não me achava no direito de vampirizar os convites alheios, certamente extras que custaram uma pequena fortuna a quem os adquiriu e distribuiu.
O serviço de garçom era uma porcaria, mesmo para quem estava num lugar melhor posicionado, o que me levou, em determinado momento, a buscar o bar do clube. Comprei seis long necks que carreguei para o salão, mas elas sequer chegaram incólumes ao meu cantinho, pois alguns colegas de curso gentilmente me livraram do fardo de carregar aquele peso por mais tempo.
Fiquei conversando com alguns professores da faculdade  que foram convidados, e consegui interceptar umas garrafinhas de cerveja e vodca que eram imprudentemente distribuídas entre os celebrantes, já que se tratava de uma festa em que pessoas desconhecidas bebiam, e poderiam transformá-las em armas, em meio a uma confusão formada.
Foram poucas, e acabei voltando ao tal bar do clube, que já estava fechando. Peguei mais seis long necks e dessa vez enfiei-as numa sacola para disfarçar. Qual o quê! O tilintar das garrafas entregaram a carga preciosa quando o DJ deixou um vácuo de som no momento em que eu passava pelos mesmos colegas. Dessa vez, ao menos, consegui salvar duas, três com a que estava bebendo.
Voltei ao meu posto e logo vislumbrei Mariana, uma ex-namorada cuja presença não havia sido narrada por meus informantes. Era a terceira ex na festa; e Mariana, saudosa, e para minha tristeza, resolveu sentar praça ao meu lado. Bonita, cheirosa como sempre, a preferida entre todas antes de me apaixonar e casar com a megerinha que me havia tirado dela.
Essa circunstância, somada ao fato de eu ter ido sozinho à festa, seria suficiente para arranjar um problemão. Especialmente pela iminência da chegada de minha esposa. Dormir no sofá seria pinto.
Entornei as cervejas que restavam e perguntei se ela queria ir comigo ao bar da festa, para descolarmos umas bebidas. Ela foi, e no meio do caminho me apontou a sobrinha de minha esposa, que havia chegado mais cedo, e tinha pedido a Mariana para chamar minha atenção em sua direção. Por mímica, perguntei à mocinha se ela queria uma cerveja, pois estava indo ao bar para suprir o péssimo serviço. Ela pediu uma “pelo amor de Deus!” (O calor estava insuportável àquela altura.)
Ao me aventurar no balcão como um jovem bêbado com a cara cheia suplicando por mais mé, fui bem atendido pelo barman, a quem pedi três garrafinhas. Enquanto o rapaz voltava com elas, alguém que deveria ser o chefe, disse que eu não levaria as três garrafas: “Dê uma, que está muito bom!”
O rapaz entregou uma, guardou as outras duas no freezer atrás do balcão e saiu, muito sem graça, em direção ao banheiro. Como o local era de fácil acesso, imediatamente olhei o gerentão e, já me adiantando por trás do balcão, falei: “Uma garrafa é o caralho, bundão!”
Ele, lá do seu canto, carregando algo que parecia pesado, gritava histericamente o nome do barman: “Diego! Diego!”
Diego fingiu não ouvir, e eu ainda dei satisfação: “São para quatro pessoas; eu estou disposto a dividir uma com a minha esposa. Você quer o quê? O serviço está uma merda!”
Enquanto levava as garrafinhas, vigiado de longe por Mariana, o gerente partiu para cima de mim, com ares de quem ia me agredir, ao mesmo tempo em que chamava um segurança da festa.
Quando deu o bote nas garrafas da mão esquerda, chapuletei o fundo da que estava na mão direita no meio dos cornos, marcando aquela testa comprida com um decalque, como um sinal da besta; e ele foi a nocaute.
O negão de dois metros já estava ao meu lado, e me segurou enquanto eu me debatia mais que peixe fisgado e recolhido por pescador amador. Vieram mais dois seguranças e fui inteiramente neutralizado, enquanto o trouxa jazia lá no chão, balbuciando palavras desconexas e chamando pela mãe.
O pessoal da festa, meio sem acreditar, testemunhou que eu era um dos formandos e um homem absolutamente pacífico. Os seguranças perceberam que eu não estava embriagado e resolveram me soltar, mas o imbecil da testa tatuada havia se recuperado e não perdoou. Aproveitou que uns policiais militares estavam naquelas dependências, atendendo a um chamado sobre atos de vandalismo praticados por visitantes na área social do clube, e os chamou, informando a agressão GRATUITA (isso mesmo que o filho da puta falou) que havia sofrido por ter dito, amistosamente, que eu deveria aguardar o serviço dos garçons.
Ao externar a revolta dos justos, os policiais entenderam que eu estava alterado. Além disso, havia a prova da marca da besta gravada na testa da vítima (teatral)... Fui levado à delegacia.
Enquanto os policiais me conduziam pela entrada do clube, entre vaias para eles e aplausos para mim, minha esposa chegava, bem a tempo de me ver sair algemado da festa de formatura.
Foi o suficiente para me livrar dos problemas e das explicações pelo fato de ter ido sozinho à festa, sem esperar a trupe; e da presença involuntária de três ex na festa. Uma coincidência macabra. (Não cheguei a ver as outras duas. Ainda bem!)
Fui imediatamente perdoado, diante do relato de pessoas chegadas que, à sua moda, contaram o absurdo que haviam feito comigo; e após o B.O., ganhei um longo beijo na boca, que expressava nitidamente um “tamo junto”.
Grande dia!


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Uma pequena história de miséria intelectual e oportunismo




Naquele dia, o tempo amanheceu nublado, as chuvas pareciam um choro pelos últimos acontecimentos. Era como se a natureza traduzisse as emoções que tomavam conta da maioria da população.
O enésimo ditador da história, antigo líder stalinista, era reconduzido ao poder e, de imediato, imergia o país nos piores momentos de sua existência.
Voltou garantido pelas armas, nos braços de antigos aliados, saudosos dos favores do Estado, mas também com apoio da grande mídia, da Academia, de intelectuais (apenas os orgânicos haviam sobrado), de oportunistas recém-egressos na política e de antigos “adversários de mentirinha”, que sempre fingiram um antagonismo para desviar a atenção e impedir que uma verdadeira oposição se organizasse.
Embora defenestrada do poder por ter desarrumado o país, a esquerda mostrava força, provando que ainda era capaz de manipular a opinião pública e divulgar as ideias revolucionárias.
Uma aliança foi formada para conter os avanços e apear do poder o governo conservador eleito democraticamente, que trabalhou em benefício da população e mudou o paradigma político das últimas décadas, ao acabar com a corrupção, o desvio de dinheiro e o compadrio; e promover a meritocracia.
Enquanto isso, os traidores minavam a base de sustentação do governo, apesar da grande popularidade que o governante gozava no país “profundo”, que havia se organizado organicamente para conter a pouca-vergonha que dominava a política do país. E, infelizmente, conseguiram concluir a tarefa depois de quase 20 meses de ataques diuturnos a quem, num breve espaço de tempo, deu alento e esperança àquela população sofrida, e colocou o país rumo ao desenvolvimento, deixando pra trás as décadas em que amargou o atraso e os piores lugares nos indicadores socioeconômicos medidos por organismos internacionais.
Desde a campanha, era nítida a necessidade de um movimento conservador robusto, uma militância organizada que sustentasse o governo, e se opusesse à militância carnívora adversária (essa, paga). Foi a sua falta que permitiu que o líder conservador acabasse cercado de figuras de caráter duvidoso, com intenções totalmente desconhecidas, e que em pouco tempo se mostraram as piores possíveis.
Muitos buscavam poder e dinheiro, e aproveitaram a insatisfação geral com a política da época para, em peles de cordeiros, esconderem os corpos de lobos. Então, fingiram-se aliados do líder das pesquisas.
Entre os oportunistas estavam os (falsos) liberais, ávidos por ocupar o vácuo deixado pela velha política, mas personificando a própria incoerência: pregavam um Estado mínimo enquanto  promoviam a ocupação de cargos com o núcleo duro do seu grupo e também com amigos e amigos dos amigos. Para piorar, chegaram ao ponto de propor a criação de leis restritivas de liberdade, como uma que regulava opiniões em redes sociais.
Isso deveria ser divulgado desde seu surgimento no cenário político, pois já iniciaram sequestrando as manifestações de rua espontâneas, que pediam a destituição dos antigos governantes - diziam que foram "eles" que organizaram, "eles" que fizeram e aconteceram... e como se fruto de uma trama, quase de imediato assumiram um protagonismo inexistente, viabilizado pela imprensa parceira do antigo governo, que os alçou ao posto de oposição permitida.
A falta de uma organização dos conservadores não permitiu a difusão de análises mais profundas sobre os liberais quererem substituir os donos do poder (establishment), e não desinchar o Estado para o reconstruir, como haviam prometido em campanha.
Poucas vozes denunciavam a mentalidade revolucionária dos liberais, que os torna aliados de primeira hora de comunistas e socialistas. E foi por isso que, mal iniciado o governo conservador, seguiram sua sina, abandonando a base e deixando claro que só o apoiaram por falta de um candidato próprio, carismático, que pudesse guindá-los ao poder, e fosse capaz de enfrentar os profissionais da administração comunista anterior. Assim, com a autoestima atingindo os píncaros, acharam-se aptos a entrarem no jogo político, e então traíram o governo, que sucumbiu num impeachment de cartas marcadas, quase um “julgamento de Moscou”. Não lhes importava serem usados, nem servirem de ferramenta para aplainar o terreno da volta do regime autoritário que antes diziam combater. E desse modo contribuíram com a funesta retomada do poder pela esquerda.
Estavam convictos de que, se se esforçassem para arruinar os programas conservadores, ocupariam espaços no novo governo, e por isso propagaram narrativas de enfrentamento e ajudaram a sabotar as pautas da segurança, da economia e dos costumes; quando não votavam contra, retalhavam os projetos enviados pelo governo, ou criavam outros que contrariavam as promessas de campanha do governante. Não perceberam os valores em jogo, os mesmos que levaram as pessoas comuns a participarem do “levante conservador” que destituiu a esquerda do poder.
Ao mesmo tempo, convocavam comícios para desestabilizar o governo; e com discursos fortes, perseguiam os servidores públicos que caíram nas graças do povo ao ajudarem a mudar o estado de coisas e ao agirem como peças fundamentais no despertar do desejo de mudanças, enfrentando criminosos aliados do ditador, e ele próprio, partícipes de uma quadrilha que, enquanto dividia o povo (para melhor conquistá-lo), dividia também o butim.
Por essa razão, os membros da direita permitida foram corretamente pechados de Nova Esquerda.
Bancaram a aposta traindo o próprio eleitorado, que embarcou na campanha liberal convencido pelo discurso do individualismo, do empreendedorismo e do Estado mínimo.
Não se importaram com o fato de que o governo comunista promoveria achaques generalizados, através de um ordenamento jurídico estapafúrdio; nem com a evidente fuga de capitais, que atingiria em cheio a economia que mal se recuperava.
Demonstraram que, além dos comunistas e dos socialistas, os liberais também não se preocupavam com o país, mas com o poder – e o dinheiro e as regalias que ele proporciona.
* * *
Seguindo a cartilha, logo que empossado, o ditador agiu com rapidez e rigor; radicalizou e, com isso, evitou que a oposição se reorganizasse e oferecesse resistência ou, quiçá, tentasse voltar ao poder.
De um lado, tomava medidas para aprofundar a submissão da população – miséria moral, espiritual, social e material; e de outro, perseguia, prendia, torturava e matava os membros do governo deposto e seus simpatizantes. Aliás, a perseguição estatal aos apoiadores do líder destituído foi implacável – alguns empresários e a difusa militância, formada por meia dúzia de abnegados acusados de formarem uma “milícia” –, e já ocorria em pleno governo conservador, através dos burocratas das instituições públicas infestadas de radicais revolucionários, que rejeitavam a nova filosofia implantada no país.
E quando muitos acreditavam que o país andaria, porque os inimigos do governo haviam fugido, ou sido silenciados, ou estavam presos ou mortos, uma surpresa: os expurgos continuaram, e alcançaram os próprios liberais, antes anestesiados pela crença cega de que a economia funcionando pacifica a sociedade. Eles acreditavam que aproveitariam seu “know how” na geração de empregos e na produção de riquezas, porque entendiam serem necessárias para viabilizar os investimentos na área social, tão cara aos comunistas, que aproveitariam para promover as (falsas) propagandas de serviços públicos de qualidade oferecidos à população e da erradicação da pobreza.
Eles não haviam compreendido a brutalidade dos regimes ditatoriais, que propositalmente produzem a fome, a miséria e o desemprego, e mantêm a população sob o jugo para se eternizarem no poder, impondo o silêncio, o medo, gerando a incapacidade de revolta (até em pensamento), o pavor da acusação de traição ao Estado, a eterna desconfiança entre amigos e familiares...
Por fim, os expurgos alcançaram a população, que perecia diante da escassez provocada (dizia o governo) pelo capitalista inimigo opressor, e engrossada pela política de “bocas a menos a alimentar, gente de menos a controlar”. Então, além de fuzilamentos de supostos traidores do partido ou da nação, eram disseminadas práticas como o aborto e a eutanásia, para diminuir o número de pessoas improdutivas, como crianças, idosos e doentes, um estorvo para o governo.
Estabelecido o controle total, pôs-se em prática o plano comum em todo país dominado por uma estrutura ditatorial, onde o “Establishment”, a “Nomemklatura” e os “amigos do rei” vivem de forma diferenciada, num lugar em que a propaganda, inimiga da realidade, afirma: “todos são iguais”.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.


terça-feira, 26 de novembro de 2019

Ocaso




Eles se conheceram num barzinho em frente à Universidade, depois do intervalo, quando quase ninguém voltava para a sala de aula.
Ela, veterana, casada, dois filhos adolescentes, aparentava ser mais nova do que realmente era. Estava ali só tomando um chope antes de ir embora. Ele, calouro (embora tenha cursado outra faculdade), não era jovem, e possuía um pequeno comércio, que não andava muito bem das pernas àquela altura. Solteiro, não conseguia manter relacionamentos sérios por mais de 3 meses. Estava ali a convite de um colega de turma, que queria lhe apresentar a prima da namorada, que deu um bolo porque adoeceu. (Não conheceu essazinha.)
Ela de Humanas, ele de Exatas, começaram a se ver e conversar frequentemente; e foram lá dividindo as diferenças de suas áreas, as peculiaridades de suas vidas privadas, e as esquisitices que percebiam nos colegas de curso e nos professores, enquanto se entreolhavam com sensualidade e desejo.
Certo dia, ele ofereceu carona e ela aceitou. Ao se despedirem, nas proximidades do mega-condomínio de 22 blocos em que ela morava com marido e filhos, seus lábios rasparam meio que por querer e as doses de vodca deram o tom do beijo lascivo, babado, totalmente isento de cuidados com olhos vigilantes.
Cheio de tesão, ele, abusado, dirigiu sua mão (a dela) à verga que latejava dentro da calça. Ela assustou e, recompondo-se, disse que não deveriam fazer aquilo, que ele fora indelicado, e que não havia espaço para um relacionamento adulterino, porque ter amante é algo que custa muito caro, tanto financeira quanto emocionalmente. Atônito, ele concordou.
Despediram-se, e ele, no caminho, já ligou para um contatinho, noiva de uma espécie de caixeiro viajante moderno, totalmente isenta de escrúpulos, e que possuía uma boquinha de veludo. Morava com a avó, que àquela hora estava no terceiro sono, o que era conveniente: ninguém o veria entrar na casa, evitando perguntas incômodas; e a possibilidade da velha acordar era um bom argumento para ir embora tão logo encerrassem os atos (no mínimo, 2). A noite encerrou tão bem que esqueceu o contratempo em dois minutos.
Era fechamento do 1º semestre, ficaram quase um mês sem se ver, mas sabiam que os cursos continuariam, e o barzinho não sairia do lugar – se saísse, outro empresário alugaria o excelente ponto.
Na volta às aulas, encontraram-se meio envergonhados, mas as amigas dela entregaram que houve algum comentário, ao fazerem indicações indiscretas com os olhos, e darem sorrisinhos marotos.
Ele as cumprimentou com os tradicionais beijinhos nos rostos de cada uma, e disse que ficaria com o pessoal da sua turma, quando ela o segurou pelo braço, pedindo que voltasse. Essa foi a senha, e dali engataram o que eles chamaram de “rolo”. As caronas diárias serviam para disfarçar os encontros furtivos em que praticavam sexo ou, ao menos, algo libidinoso, um dia sim e o outro também.
Após 2 meses desse namorico, chegou a época das provas; e logo na primeira, resolveram passar a tarde estudando num motel, pois aproveitariam para  transar nos intervalos. De tão inebriados, esqueceram que frequentavam cursos totalmente diferentes. Mas pagaram para ver, já estavam lá mesmo...
Como se esperava, não estudaram, ficaram na pegação.
E nesse dia ele deu uma coça nela. Por pura sorte, foi em seu período de maior virilidade. Apesar da safadinha ter um fogo danado, foi diferente. Ele usou, abusou e abusou de novo, nas formas possíveis e imagináveis, repetidas vezes, explorando situações e posições que ela, experiente, ainda não experimentara por nojo, receio ou desconhecimento. Casada há bastante tempo, era seu primeiro amante - nunca tinha se entregado tanto. Sentiu-se descontraída, livre, nas seis horas (daquilo o que se costuma dizer) “de pau dentro”.
A intensidade foi tamanha que nem cederam à fome, deixando para comer um dogão na Barraquinha do Barbicha, instalada na calçada do prédio de Humanas.
Exaustos, com as barrigas forradas, foram às provas, mas marcaram de se encontrar depois, no lugar habitual, aonde chegaram com ares de quem não se via há muito tempo. Mal desconfiavam que todos ao redor sempre souberam que eles se pegavam. Os olhares haviam denunciado. Ah, os olhares! Esses que, nos apaixonados, entregam tudo.
Na carona para casa, ela confidenciou que nunca se sentira tão completa e saciada, e que por um bom tempo não queria “vê-lo”; ao mesmo tempo, ele vinha pensando num sexo oral de boa noite. Não restando alternativa, sorriu.
Ficaram assim, sem se tocar, por duas semanas.
***
Chegava ao fim o 4º período para ele e a faculdade para ela, que perguntou o que fariam a partir dali.
Ele, com medo de se envolver mais ainda, e acabar apresentando a fatura emocional que ela havia falado lá atrás, sobre as implicações de um caso extraconjugal, sopesou, rapidamente, o fato de não reunir condições de dar um passo adiante, e constituir um lar para o qual ela viria com filhos já marmanjos; além da sua incapacidade de se envolver afetivamente com alguém por muito tempo. Como aquilo já ia longe demais resolveu dar um basta.
Houve sofrimento, choro e vela, mas também resignação. Afinal, eram adultos.
Ela voltou os olhos para a família, que de certa forma havia deixado de lado, e em pouco tempo superou aquela separação; ele esperou um ano após a fatídica despedida para começar um namorico com uma delicinha do primeiro período de Letras – àquela altura, já cursava o 4º ano.
Enquanto esteve emocionalmente abalado pelo fim não programado da relação, nem o estepe a quem costumava recorrer esteve disponível: a avó da cremosa havia morrido e ela se casou, caindo no mundo com o caixeiro viajante.
Foi por esse motivo que optou pela quarentena; um período sabático em que evitou “ver alguém”. Não queria nada sério depois daquela ruptura decidida de supetão; e nem tinha motivos para pensar diferente disso. 
Nada lhe apetecia...


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

domingo, 24 de novembro de 2019

Crônica moderna




6:20 da manhã,  Ludmylla Kellen entrou no ônibus da linha Vila Mortícia x Santo Soros, a caminho do trabalho. Já não se sentia muito bem, em razão dos borborigmos que zoavam seus intestinos.
Havia sido avisada dos perigos daquela dieta à base de repolho, batata-doce, couve-flor e ovos, mas, teimosa, ainda queria emagrecer 3 kg para desfilar na Portela.
Tinha por costume se instalar no último banco todos os dias. Casmurra, não distribuía olás ou sorrisos ao iniciar a jornada tediosa, pois não suportava ouvir as mesmas histórias, com pequenas atualizações dos capítulos mais recentes das novelas. No mais, eram remelentos malcriados, mães doentes, maridos beberrões, primas invejosas... Um festival de informações desnecessárias que não acrescentavam nada à vida de ninguém.
Chovera e o busão sacolejava mais que o normal, por causa dos buracos abertos no asfalto recém-remendado, o que incentivava a revolta intestinal e fortalecia cada minúscula partícula de gás em trâmite agora já em sua alma.
O suor corria-lhe as têmporas, mas resistia heroicamente, até não conseguir evitar a bufa quando o motorista acertou um conjunto de 3 crateras.
Nenhum cristão permaneceu incólume em meio àquela "nuvem" incolor que empesteava o ar, e parecia ter saído das mais profundas entranhas de satanás, dado o aroma de enxofre.
Incréus, os companheiros de viagem se entreolhavam enquanto buscavam ar fresco ou cerravam as narinas com os dedos, mas não foi difícil constatar quem desferira o tiro mortal, com a roda que se espalhou em volta da "criminosa".
Para sua tristeza, não teria como correr da única empresa de ônibus a circular em seu bairro, pois não havia linha de van atendendo aquela área, e o salário era insuficiente para bancar o Uber.
O jeito era encarar diariamente os risinhos e as piadinhas dos passageiros habituais.
Então, logo ela, tão metida a fina, passava a ser conhecida como "a dona do peidaço", em alusão à novela que estreava à época.

P. S.: Ludmylla Kellen desistiu de desfilar pela Portela e acabou engordando tudo de novo ao abandonar a dieta.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Sonhos não se controlam




Aquela vez em que estivemos em casa de mi mamá,
Eu não as quis constrangê-las ao beijar suas faces
Estava celebrando a vida,
Homenageando suas belezas, agradecendo por suas presenças, finalmente, físicas


Quando sofri pela ausência dela, eu não as quis entristecer
Apenas externei que sentia falta de quem sempre esteve  ali, num cantinho, nos últimos tempos
E é muito difícil para mim, d’estar naquele lugar
E encarar com naturalidade a dura realidade


Achei que o destino – ou o acaso – havia-as enviado
Para me ajudarem a esquecer, encarar melhor
Mas, mesmo não passando de um sonho – e era realmente isso
Eu consegui estragar tudo, como sempre faço onde me meto.
Foi o que entendi dos seus agravos.


Peço as devidas escusas, inclusive pela trilha sonora que impingi: “Bananeira mangará”
E prometo que, doravante, vou manter a amizade à distância,
E, ainda que não possa controlar o enredo daquilo que vou sonhar
Prometo acordar no exato momento em que puder vir a deixar alguém sem chão ou lugar
Porque nunca gostei de ser incompreendido.


Vejam bem: Eu conheço suas inteligências, li seus textos, sei o que estudam – ou dizem estudar –,
Mas não conheço as suas neuroses ou histerias.
E por isso meio que encerro aqui, embora não sendo peremptório,
Pois reconheço a dificuldade de continuar o mesmo d’antes
Até porque o incidente evidenciou o mal que faz estar enfurnado nessa “irreal life”
Não faz sentido dedicar tanto tempo a ela, uma rota de fuga da dura realidade.


Continuarei deixando papos-firmes, coraçõezinhos e ha-has, mas com baixíssima frequência.
Comentarei o mínimo, e apenas quando logar,
E depois de responder “meus seguidores”.
Saio para cuidar de mim, sem entrar para a história.
Vou apenas suprir minha ausência em minha vida e,
Em especial, atentar para quem ainda está aqui, em carne, osso e espírito.



Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

Os 3 porkim – uma fábula moderna




Insíncero, Dramático e Peidor, descendentes de personagens que, em algum lugar, em algum momento, passaram por maus bocados com um certo Lobo, viviam agora juntos, cada qual com sua própria família, num prédio moderno, urbano, muito bem construído, com sapatas e tudo.

Infelizmente (para eles!), tinham que conviver com outras famílias, de outros bichos, com quem nem sempre mantinham boa relação, pois gostavam de fazer articulações e subjugar a vizinhança a seus caprichos.

Quando uma família de cães mudou para um dos apartamentos – Sr. e Sra. Poodle, e seu filhotinho, o Poodinho –, como de praxe, o trio, hábil em fingir amizades para angariar simpatia e votos nas assembleias, foi dar boas vindas aos recém-chegados. Um levou ração, outro fez orações, e o terceiro presenteou o filhote com um osso de borracha.

Enquanto se congraçavam tomando cerveja, comendo tira-gostos veganos e acendendo incensos; os Porkim, sem deixar a bola cair, aproveitaram o clima para queimar o filme do Bode Velho da Cobertura e da Maritaca do 1º andar.

Os cães até tentaram manter um relacionamento amigável com os renegados, mas, com o tempo, perceberam que suas personalidades se adequavam mais às dos Porkim. Para ajudar, o azedume do velho Bode e a cantoria incômoda da Maritaca acabaram afastando de vez o casal de fifis, falsos que dói e donos de uma frescura que só a natureza da raça explica.

Os outros moradores do edifício AB Farm eram: o Sr. Pinscher, do 3º andar, um vida lôka metido a fashion, que não fedia nem cheirava, assim como o Seu Robalo, que vivia com a mãe, no 301; os jovens do 2º andar, Cervo, do 201 e Barrão, do 203, seguiam todas as recomendações dos Porkim, igual à Dona Foca, do 101, e a Srta. Marreca, do 204, duas solteironas amargas, uma velha e outra nova, que não suportavam o Bode, sua esposa – a Cabra –, e seus Cabritinhos. Havia, ainda, duas repúblicas de estudantes: no 102 moravam Galinhas e Pombos, e o 303 era dividido entre Gatos e Pavões. Os estudantes não se relacionavam com os demais condôminos.

Como é comum nas grandes cidades, formavam uma maioria de solitários, isolados das famílias e dos amigos, que conviviam intimamente com samambaias e pets. E os encontros esporádicos com esses amigáveis vizinhos, para deitarem falação sobre a vida alheia, dava-lhes a falsa sensação de ainda viverem em sociedade.

O desgaste da relação o Sr. Bode aumentou quando os Porkim marcaram uma assembleia para destituir a síndica, Dona Garça, que havia sido eleita pela providência divina, retirando deles o império de décadas. Além disso, ela não permitia que filhotes jogassem bola na garagem, nem que os conspiradores guardassem suas motocicletas num canto onde atrapalhariam a saída de outros condôminos, que eles consideravam “menos importantes”.

O Bode, indignado e avesso a maracutaias, mostrou o absurdo pretendido, mas eles contavam com o reforço da retórica do Sr. Poodle e os votos das marionetes. Foi voto vencido, com Dona Garça e Srta. Maritaca.

A partir desse dia, os Porkim e o Sr. Poodle desciam todas as noites para encontrarem meios de dificultar a convivência do desafeto, e levá-lo a se mudar de lá.

Por conversarem no escuro, ficaram conhecidos pelos moradores dos prédios vizinhos como Turma do Pacto das Catacumbas, mini-vingança do Bode, que criou o apelido como forma de protesto, em alusão aos comunistas do Clero Católico que, pretendendo implodir a Igreja tal como concebida através dos séculos, se reuniram em segredo, no curso de dois Sínodos realizados no Vaticano. Com eles pareciam por serem seres rastejantes que viviam nas sombras até alcançarem o poder.

Inventaram inúmeras reformas, jogaram o valor da taxa condominial lá em cima, e alguns realmente tiveram que sair, principalmente, o Velho Bode, cujos negócios iam mal e era o provedor da maior família do condomínio. Ele vendeu a unidade quando foi aprovada uma grande obra, que fez aumentar a taxa em 200%, e lá se foi, recomeçar a vida num bairro da periferia.

Bateu os sapatos ao sair, para sequer levar a poeira daquele lugar, e nem soube que contrataram a Lupus Malus Construções para reformar o prédio, cujo dono era descendente de você-sabe-quem.

Tempos depois, ouviu-se no noticiário que uma tragédia se abatera no Edifício AB Farm.

No lugar de reforçarem as estruturas e repaginar o edifício, como contratado, o empreiteiro e sua equipe literalmente puseram o prédio abaixo. Fecharam as saídas, derrubaram as portas das unidades e, em seguida, chacinaram os moradores, passando um a um no garfo, para depois baterem em retirada.

Pesaroso, o Bode chamou sua família para juntos rezaram por aquelas almas, e aproveitou a história para ensinar uma lição aos filhos.

Diferentemente do que ocorreu com os antepassados do trio de porquinhos, a moradia com estrutura sólida não adiantou dessa vez. Ninguém soprou, o prédio ruiu por dentro (que ironia!). Não havia ali ninguém sensato. Os líderes, vaidosos, orgulhosos e politiqueiros, não reuniam capacidade intelectual suficiente para perceberem que levavam todos à morte.

O Sr. Lupus Malus não foi punido, como era de se esperar, porque as leis locais eram progressistas, frouxas.

Na época, falava-se muito em desencarceramento, e a ação criminal foi distribuída ao Juiz competente, o mais graduado do Tribunal Aquático, o Sr. Bagre, um pulha odiado por todos porque não punia os das classes mais abastadas, mas brindava com sua severidade os menos assistidos.

Pouco tempo passou, e a sociedade nem lembrava mais disso.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

O fiscal das redes




Malaquias de Oxóssi dos Santos – essa a grafia de seu nome de batismo – é impiedoso nas redes sociais. Não deixa passar uma postagem de um webamigo (ou webinimigo, não importa) em que não veja, do alto do seu QI-87, “métrica e rima”, notícia atualizada ou texto compreensível e/ou agradável. E lá vai ele deixar seu imprescindível comentário.

Nesses tempos de mudanças de paradigmas no campo da política, diz que pertence à ala da direita soft, também dita limpinha (ou light), e da qual também fazem parte a galera do Clube do Livro, alguns youtubers e poucos comediantes. Na verdade, é o pessoal conhecido como a Nova Esquerda brasileira.

Versado nas obras de Mises, Rothbart, Ayn Rand, e nos textos e teorias do Luciano Ayan, considera seus conservadores preferidos o João Pereira Coutinho e o Luiz Felipe Pondé.

Jamais curte as postagens da gente comum que lê diariamente, tintim por tintim, buscando alguma irregularidade, embora aproveite as ideias como suas, nos comentários que faz nas postagens de perfis famosinhos, aos quais dedica todos os seus likes.

Invariavelmente, nas postagens dos não-famosinhos, deixa comentários irônicos; mas o problema começa mesmo quando, segundo seus critérios, encontra imperdoáveis deslizes.

Esse é o Malaquias...

Notícia antiga?

Tome-lhe uma traulitada pela displicência.

Shitpost?

Se não compreende, “fodace”, diz que é feiquinius.

E se esbarra numa crítica a seus companheiros de viagem liberais, aumenta o tom nas críticas, postando textão, arranjando quizila, dando bronca e puxão de orelha, enfiando dedo no olho, chamando de “burro fofoqueiro”, de “mariquinha”, e até xingando à vera.

Já em sua grandiosa timeline, não há nada além de fotos de paisagens, propagandas de seu negócio e os dois livros que lê por ano, em PDF, a maioria fornecida pelo Instituto Liberal.

No texto de apresentação do perfil, Malaquias escreveu: “Não falo de minha vida porque o povo é doido, questiona tudo e procura treta”, dando a entender que tem mais o que fazer, a ficar tretando na internet, em sua timeline.

Li isso antes de bloqueá-lo, e pensei: “Eu, hein! Parece que tá lôko nas drogas”.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.