domingo, 24 de novembro de 2019

Crônica moderna




6:20 da manhã,  Ludmylla Kellen entrou no ônibus da linha Vila Mortícia x Santo Soros, a caminho do trabalho. Já não se sentia muito bem, em razão dos borborigmos que zoavam seus intestinos.
Havia sido avisada dos perigos daquela dieta à base de repolho, batata-doce, couve-flor e ovos, mas, teimosa, ainda queria emagrecer 3 kg para desfilar na Portela.
Tinha por costume se instalar no último banco todos os dias. Casmurra, não distribuía olás ou sorrisos ao iniciar a jornada tediosa, pois não suportava ouvir as mesmas histórias, com pequenas atualizações dos capítulos mais recentes das novelas. No mais, eram remelentos malcriados, mães doentes, maridos beberrões, primas invejosas... Um festival de informações desnecessárias que não acrescentavam nada à vida de ninguém.
Chovera e o busão sacolejava mais que o normal, por causa dos buracos abertos no asfalto recém-remendado, o que incentivava a revolta intestinal e fortalecia cada minúscula partícula de gás em trâmite agora já em sua alma.
O suor corria-lhe as têmporas, mas resistia heroicamente, até não conseguir evitar a bufa quando o motorista acertou um conjunto de 3 crateras.
Nenhum cristão permaneceu incólume em meio àquela "nuvem" incolor que empesteava o ar, e parecia ter saído das mais profundas entranhas de satanás, dado o aroma de enxofre.
Incréus, os companheiros de viagem se entreolhavam enquanto buscavam ar fresco ou cerravam as narinas com os dedos, mas não foi difícil constatar quem desferira o tiro mortal, com a roda que se espalhou em volta da "criminosa".
Para sua tristeza, não teria como correr da única empresa de ônibus a circular em seu bairro, pois não havia linha de van atendendo aquela área, e o salário era insuficiente para bancar o Uber.
O jeito era encarar diariamente os risinhos e as piadinhas dos passageiros habituais.
Então, logo ela, tão metida a fina, passava a ser conhecida como "a dona do peidaço", em alusão à novela que estreava à época.

P. S.: Ludmylla Kellen desistiu de desfilar pela Portela e acabou engordando tudo de novo ao abandonar a dieta.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário