sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Gertrudes

Era uma pessoa ruim em sua essência, e a certeza veio após seu quarto marido confirmar em alto e bom som, enquanto afivelava a bolsa do notebook, jogava malas e outros recipientes com seus pertences no lombo e caminhava rumo à porta para nunca mais voltar.
Deixava as chaves na porta e sacudia os sapatos para não levar daquele “lar desfeito” sequer o pó de minério de ferro com que a Vale empesteava a cidade.
- Liberdade, afinal!!! - Gritou.
Não tinham filhos, carros, cachorros ou samambaias, o que facilitava a decisão de ambos.
Gertrudes estava parada na antessala, com olhar fixo no horizonte enquanto elencava os defeitos de Herculano. Partiria para outra – não tinha tempo nem talento para sofrer dores de amores.
Deu vontade de tomar um proudy mary, mas os drinques era ele quem fazia. Ela se virava nos acepipes e sanduíches, sempre abusando da pimenta moída e deixando transparecer o seu “fraco” por alecrim.
Pensou em abrir o Chianti Galo Nero comprado há um mês, e sorvê-lo até a última gota.
Foi o que fez.
Após abrir a garrafa, deu um sorriso irônico e lançou Chico Buarque no notebook acoplado à TV:
- “Eu vou lhe deixar, a medida do Bonfim não me valeu....
Checou o celular, abriu o facebook e mudou o status.
Pronto. Agora estava sol-tei-ra!!!
Começaram a chover mensagens na timeline e inbox, das amigas interessadas (mais na fofoca do que dar “aquela força”), oferecendo o ombro amigo para a Gê desabafar.
Fez charme, agradeceu a grande preocupação de todas em 5 minutos, mais de 100 recados –, e fingiu estar triste e aborrecida demais para falar no assunto.
Aproveitou para conferir quem estava solteira, pois poderia ser uma virtual parceira para convidar para o chope do fim de semana.
Cortou uns pedaços de emental, maasdan e gorgonzola; preparou umas provoletas e, junto com umas salsichinhas petisco, colocou tudo em cumbuquinhas.
Solteira numa sexta-feira...
O momento era inoportuno para sair, embora não fosse má ideia, pois a tv por assinatura estava com uma programação daquelas que dão vontade de rescindir o contrato.
Pensou em sua família, da qual estava afastada; em seus pais, já falecidos.
Assistiu a uma das 35 reprises de um filme francês com Jacy Borreau.
O vinho estava acabando. Pensou em tomar banho e dormir.

Caminhou para seu quarto, para sua cama... E foi só então que lembrou que tinha medo de dormir sozinha.

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, um saudosista que agora inventou de escrever poesias

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Economia de mercado e importância do consumidor: relatos de um iniciante


O ensaio foi escrito junto com outro que tratou da enxurrada de ações consumeristas que tramitam no Judiciário no Rio de Janeiro. Lá não declarei que (penso eu) boa parte disso é culpa do sistema político-econômico ora vigente, que cria empecilhos para o exercício da atividade empresarial e acaba prejudicando a massa consumidora, expondo-a a empresas mais preocupadas em atender exigências burocráticas que exercer seu papel no bom atendimento ao público.
Com efeito, vou começar pela importância do consumidor.
Em “As seis lições”, Ludwig von Mises defendeu a economia de mercado e apontou as inconsistências das ideias de Karl Marx, esclarecendo que é o consumidor – e não o Estado, como na economia planificada – quem cria a demanda e regula o mercado, ditando preços e estabelecendo quais serviços e produtos serão oferecidos e consumidos. Nas próprias palavras do autor [1]: “Quem manda no sistema econômico são os consumidores. Se estes deixam de prestigiar um ramo de atividades, os empresários deste ramo são compelidos ou a abandonar sua eminente posição no sistema econômico, ou a ajustar suas ações aos desejos e às ordens dos consumidores”. (Grifei)
Na economia de mercado, se o produto, serviço ou preço não agradam, o consumidor migra com seu dinheiro para a concorrência, a fim de satisfazer seus anseios e, quando possível, equalizar a relação custo vs. benefício. Com isso, dá uma boa lição no fornecedor desatento, que deve optar entre se adaptar ou morrer para o mercado.
Então, surgem questionamentos: por que no Brasil certos fornecedores são objeto de várias reclamações e continuam lá, negociando seus produtos e serviços? Por que o consumidor volta quando seria mais aconselhável buscar outro fornecedor?
Infelizmente, a economia de mercado nunca foi plenamente adotada por aqui. Como resultado de políticas deficitárias, certos seguimentos não se desenvolvem a contento, seja em número de empreendimentos, para criar uma concorrência forte, que pratique preços competitivos, seja na qualidade de produtos e serviços. Então, a opção é limitada, o que, de quebra, fragiliza o poder de influência do consumidor.
É verdade que houve sensível melhora nas últimas décadas – e (pasme!) a partir de Fernando Collor de Mello, que experimentou lampejos de liberalismo em seu curto mandato presidencial, inclusive abrindo o mercado para dar acesso a uma tecnologia mais avançada, pois o setor ficou sucateado no período da “ditadura de direita” que adotou políticas intervencionistas para proteger o mercado interno.
Mas, continuamos sendo punidos pela intromissão do Estado no mercado. Com isso, não há concorrência efetiva, e em alguns setores estamos submetidos a oligopólios e monopólios. Como exemplo, há apenas cinco grandes instituições bancárias num país de dimensões continentais: três privadas e duas estatais [2]. Concordando ou não com as taxas [3] de serviços ou de rendimentos praticadas, não há para onde correr. Da mesma forma, há um número limitado de empresas de telefonia, como também de transportes, de planos de saúde e de grandes redes varejistas. Para piorar, não é possível optar pelo fornecedor dos serviços de postagem, água e luz.
A intervenção estatal é tradicional, vem desde o tempo de colônia e piorou com a proclamação da República. Muitos foram perseguidos por uma revolta contra a cobrança do quinto (20%) [4], mas hoje a carga tributária é superior a 40% [5].
De certa forma, enquanto pequena parte da população entra em espiral do silêncio, esse intervencionismo é aceito por muitos, facilmente enganados – com auxílio de massiva propaganda e da militância ostensiva – pelas falácias da elite governante, ou elite dirigente [6], que afirma que cabe ao Estado prover todas as necessidades dos indivíduos. Mas, a conta deve ser paga por alguém. Então, de tempos em tempos, aumentam-se alíquotas ou criam-se novos tributos, por vezes com promessas de que pobres e minorias serão privilegiados com a melhoria na qualidade do serviço público e a ampliação de projetos sociais, ao passo que, na realidade, tudo piora. Exemplo recente é o das “bandeiras” tarifárias de pagamento pela geração de energia elétrica, que deveriam variar mensalmente, mas se eternizaram na sugestiva cor vermelha, ao mesmo tempo em que foram autorizados aumentos sucessivos do valor do serviço da distribuição de energia. Já o reavivamento da CPMF estaria ligado à melhoria da saúde, em especial no combate ao vírus da zika.
Na realidade, aumentam apenas o poder e os benefícios conferidos à classe de seres iluminados que fingem atuar na construção de um mundo melhor para todos – o que, sabemos, não é verdade. Esqueça o sonho da sociedade justa. O papo é grana mesmo.
Segundo Bruno Garschagen, a atitude bovina do brasileiro de acatar, não questionar ou mesmo defender medidas intervencionistas, é fruto de um planejamento bem arquitetado, edulcorado por um discurso de certa forma sedutor [7]:
Quando um processo intervencionista se desenvolve num ambiente de ideologia estatista, “cada fracasso de uma intervenção gera demandas por novas intervenções: a culpa dos problemas nunca é a intervenção em si, mas a falha em aplicar a lei e o egoísmo dos agentes econômicos”. O resultado é a exigência de leis novas e mais rigorosas.
(...)
Ao se posicionar contra a política do Estado-babá nos termos estabelecidos pelos seus patrocinadores corre-se sempre o risco de ser visto como uma pessoa maléfica, que não pensa nos outros e trabalha contra os mais pobres, contra uma sociedade melhor, mais justa, mais saudável, mais igualitária.
As consequências negativas do Estado-babá são desconhecidas ou estrategicamente omitidas pelos seus defensores, políticos e militantes, e muita gente sequer tem informações suficientes para avaliar criticamente se vale a pena aceitá-las. Em muitos casos os benefícios advindos das políticas de governo que tentam nos proteger de nós mesmos são inferiores aos seus eventuais malefícios ou simplesmente não existem.
 (...)
O estatismo no Brasil não é um improviso; é obra de séculos. É o resultado de um longo exercício de um tipo de política e de difusão e ocupação ideológica dos intervencionistas do passado e do presente na literatura, na dramaturgia, nas artes plásticas, na música, no cinema, no mercado editorial, no jornalismo, no ensino, na política, na universidade. (destaques no original)
Acontece que essa intervenção crescente vem trazendo prejuízos ao país, que entrou numa grave crise econômica, política e moral que nos apresenta o fechamento de várias empresas e, consequentemente, de postos de trabalho; o aumento de tributos; e a inflação que vem para castigar ainda mais a população.
Governos populistas, como os da era lulopetista, dificilmente assumem em público que o fracasso da política econômica resulta de suas escolhas. Sempre o atribuem a causas alheias à sua vontade, como mercado externo ou sabotagem “das elites”, mas nunca à adoção de um modelo fracassado de administração. Todavia, é fácil perceber que a crise foi deliberadamente criada para que a população dependa cada vez mais de um Estado que, promovendo o assistencialismo e reprimindo os insurgentes, trabalha para ficar mais forte, totalitário.
É nesse sentido que Fredrich August von HAYEK, ao discorrer sobre o socialismo, recorrendo a Adam Smith, afirmou que o “rígido controle da vida econômica (...) faz com que os governos, ‘para se manterem, sejam obrigados a tornar-se opressores e tirânicos[8].
Quem acompanha o noticiário pode verificar que a cada período de resultados adversos a elite política propõe a grande solução de “mais intervenção”, geralmente acompanhada de aumento de crédito (para facilitar o endividamento) e da criação e/ou majoração de tributos. Ou seja, publicam-se mais leis num país extremamente legiferante e que, não bastasse isso, vem sistematicamente tendo seu ordenamento jurídico desfigurado por decretos presidenciais.
Ocorre que o brasileiro mediano não procura se informar, seja pela falta de interesse, seja por inépcia crítica. Em regra, ele não se preocupa com os eventos ao seu redor, ressalvadas algumas exceções como carnaval e feriados prolongados. E é por isso que poucos percebem o avanço camuflado desse projeto de poder.
Além do aparelhamento das instituições públicas, há companheiros incrustados na imprensa que dão espaço a pessoas identificadas com a “luta”, enquanto outros criam blogs para, juntos e coordenadamente, exaltarem a elite governante fazendo proselitismo. Também é possível contar com o endosso da academia na produção científica e na transmissão do conhecimento aos futuros agentes de transformação. E como o homem é sempre capaz de se superar, atores, comediantes, apresentadores de TV e músicos são elevados à categoria de intelectuais e cientistas políticos. Com isso, agentes de transformação, estrategicamente inseridos nos meios de comunicação e demais canais de acesso ao público, manipulam a massa para aderir à histeria coletiva e ainda promovem a superexposição de políticos estatistas de baixo quilate.
Tudo funciona conforme os Ministérios da Propaganda nazista, de Goebbels, e das ditaduras comunistas assassinas de Stalin, na ex-URSS, e de Mao Zedong, na China.
E é importante perceber que todos são recompensados com verba estatal através de propagandas, patrocínios, incentivos etc.
A seu turno, os políticos da base aliada, sempre lembrados e convidados para expor suas ideias, e de suma importância nesse processo, recebem polpudas quantias para campanhas e liberação de emendas que lhes renderão capital político, com verbas destinadas a obras, ONGs e coletivos ligados a eles ou a seus partidos. E isso enquanto não ocuparem os cargos mais elevados, o que, ao que parece, permite que o enriquecimento pessoal seja mais substancial.
Logicamente, o dinheiro é essencial para manter a máquina funcionando, e é aí que entra o contribuinte (aqui compreendidos consumidores e empresas), que financiará o projeto enquanto não for alijado de seus bens pela tributação, de acordo com o que reza a cartilha marxista, que determina a aniquilação da burguesia.
Por fim, no tocante aos resultados dessa política castradora denunciada no curso desse ensaio, Hayek, no prefácio à edição norte-americana de 1975 de “O caminho da servidão”, destacou um trecho do relatório de avaliação econômica de 1947, que o Primeiro-Ministro britânico apresentou a seu Parlamento, referindo-se às diferenças do planejamento econômico de um governo totalitarista comparado ao de uma democracia [9]:
Há uma diferença essencial entre o planejamento totalitário e o democrático. O primeiro subordina todos os desejos e todas as preferências individuais às exigências do estado. Com esse objetivo, emprega vários métodos de coerção sobre o indivíduo, privando-o da liberdade de escolha. Tais métodos podem ser necessários mesmo numa democracia, na situação extremamente crítica de uma grande guerra. Por isso, o povo britânico conferiu ao governo, durante a guerra, poderes especiais para intervir no setor trabalhista. Mas em tempos normais o povo de um país democrático não transferirá para o governo sua liberdade de escolha. Um governo democrático deve portanto conduzir o planejamento econômico de modo a preservar ao máximo a liberdade de escolha de cada cidadão.
O Estado intervencionista, com sua economia planificada, retira liberdades, cria empecilhos e desenvolve um ordenamento jurídico paquidérmico, o que garante que as pessoas a todo o momento estejam infringindo alguma norma. Dignas de nota são as normas que regulamentam situações ligadas à esfera íntima dos indivíduos, como a proibição de saleiro em mesa de restaurante, o que beira o ridículo.
Voltando à questão da tributação, pesquisa do Banco Mundial apontou que no Brasil são necessárias 2.600 horas por ano para que uma empresa de médio porte cumpra as exigências tributárias [10].
Porém, a burocracia e a alta carga tributária também são cruéis com o micro e o pequeno empreendedor, e isso reflete no mercado de consumo. Como exemplo, os obstáculos criados para o setor e-commerce pelo Convênio nº 93/2015 do CONFAZ, quanto à tributação de ICMS das empresas nas transações interestaduais, em especial para aquelas que aderiram ao Simples Nacional. Foram estabelecidas exigências incompatíveis com a natureza do negócio, e mais ainda com o porte dessas empresas.
Pelo que se viu até aqui, não é por acaso que o Brasil sempre frequenta baixíssimas posições nas pesquisas da Fundação Heritage sobre o índice de liberdade econômica – em 2016 estamos em 122º lugar [11].
Essas ações aparvalhadas (e maldosas) do Estado servem apenas para: (i) promover a baixa competitividade; (ii) formar uma elite empresarial parceira e dependente de subsídios e isenções tributárias; (iii) suscitar a desonestidade no empresário; e (iv) fomentar ainda mais o afã de enriquecer rapidamente, “antes que mude a maré”, como que se preparando para épocas de vacas magras. Todas essas circunstâncias acarretam prejuízos ao consumidor.
Quanto à baixa competitividade, duas questões a considerar: burocracia e alto custo.
A burocracia engessa a atividade empresarial ao exigir o cumprimento de inúmeros regulamentos e uma romaria por diversos órgãos públicos. As obrigações e o tempo gasto levam o empreendedor a dispensar menos atenção ao consumidor e mais ao Estado. Tanto que, ao ser interpelado por alguma irregularidade, seu primeiro argumento é alegar que agiu segundo as exigências normativas do Estado. Foi nesse sentido a defesa da Samarco no caso do rompimento da barragem de resíduos oriundos da atividade de mineração em Mariana-MG.
 Em consequência, essas dificuldades limitam a concorrência e facilitam certos setores ou empreendedores com maior trânsito perante órgãos governamentais.
Outro fator é o alto custo do empreendimento, que envolve a contratação de profissionais para atender à burocracia (advogados, contadores e despachantes, p.ex.), a carga tributária incidente em todo o processo de produção, o alto preço dos serviços públicos e o paternalismo nas relações trabalhistas. Sem contar o investimento em espaço físico, equipamentos e produtos. Por isso, muitos preferem não se arriscar e partem para o mercado informal ou, se tiverem recursos, para o mercado financeiro/ especulativo ou o estrangeiro, onde seja mais fácil empreender, como tem ocorrido no Paraguai – 83º no ranking da Fundação Heritage.
Há ainda a questão típica de países intervencionistas: financiamentos e facilitação a empresários “amigos do rei”, formando uma elite empresarial. A elite dirigente confere benesses aos parceiros através de empréstimos com juros subsidiados e de isenções tributárias para seus produtos. Em contrapartida, devem devolver por meio de doações os favores obtidos com as canetadas oficiais. É o que se lê por aí em relação a Lula, seus filhos e aos tesoureiros de campanhas de candidatos lulopetistas. Porém, essa burguesia “suportada” no Estado totalitário pode ser alijada dos negócios quando não houver mais interesse na parceria ou se alguma negociata vier a conhecimento público.
Além do Eike Batista, um fenômeno na “Era PT” e espécie de “rei do camarote” do BNDES, há notícias de favorecimentos com subsídios para a cervejaria Itaipava, o frigorífico Friboi e todas as construtoras envolvidas na “Operação Lava Jato”. Outros exemplos são as medidas provisórias que estabeleceram a isenção de IPI ao setor automotivo, e cuja ilicitude vem sendo investigada pela Polícia Federal na “Operação Zelotes” [12]. Os fatos se deram nos governos Lula e Dilma e, mais uma vez, são notórios, divulgados amplamente na imprensa.
O resultado disso é (novamente) a degradação da competitividade e a consequente falta de compromisso com a oferta de produtos e serviços de qualidade por quem goza das benesses estatais. Como exemplo, as estradas públicas.
Por outro lado, algo lamentável merece destaque. Embora necessários investimentos pesados na infraestrutura e nos sistemas de saúde, educação, segurança e moradia, o dinheiro do contribuinte brasileiro foi usado sem permissão para empresas “amigas do rei” realizarem obras em países governados com mãos de ferro por “ditadores amigos do rei”. Isso só é possível em regimes totalitários. Voltando.
Um agente complicador é o monopólio estatal. O Estado é péssimo administrador. Suas empresas prestam serviços caros, de baixa qualidade e conseguem ser deficitárias, mas sobrevivem porque geram um excelente capital político para a elite dirigente, que goza do apoio da imensa legião de servidores públicos com salários polpudos. A conta da festa, como sempre, é jogada no colo do contribuinte, e os maus administradores nunca são punidos, com a honrosa exceção da “Operação Lava Jato”.
Além dos ineficientes serviços dos Correios, há o petróleo, cuja autossuficiência não nos serve, porque a gasolina é vendida mais cara aqui do que nos países vizinhos. O petróleo é nosso mesmo? Por que a Petrobras vende gasolina mais barata no Paraguai que no Brasil? [13]. Siga os tributos e suas alíquotas...
Há o mesmo problema nos serviços públicos prestados por permissionárias e concessionárias que, em regra, mantêm seus contratos por décadas, sem renovação. E quando é aberta licitação, na maioria esmagadora das vezes vence um consórcio formado pelas empresas que já atuavam antes. É assim com os serviços de transporte público, de fornecimento de água, energia elétrica, telefonia, TV por assinatura e internet. A população segue prejudicada por falta de abertura à concorrência, embora seja importante dizer que o atual cenário não encoraja o investidor externo nesses setores.
A desonestidade do empreendedor em relação ao Estado pode ser vista em situações que envolvam o não pagamento de tributos, p.ex. Já em relação ao consumidor, há uma série de circunstâncias, que vão desde a venda de produtos vencidos até a cobrança por peças e/ou serviços não realizados, passando pela burla na apresentação do orçamento (p.ex., apresentar um problema pequeno e no decurso do conserto do bem, “descobrir” problemas maiores), não voltar para fazer alguns ajustes nos serviços já realizados, induzir o cliente a erro e não honrar serviços previstos em contrato.
Como profissionais e empresas são achacados pelo Estado, refazer ou reparar o serviço pode causar prejuízos, e então preferem ficar mal vistos e torcer para não serem demandados em juízo. Mas, é uma atitude desonesta. O fato de prejudicar os outros para obter proveito próprio é inaceitável.
Finalmente, há empresários que esperam fazer fortuna rapidamente porque não estão certos sobre o tempo em que conseguirão manter suas empresas funcionando, muito em razão dos problemas já expostos aqui e também de vários bugs havidos na nossa economia, de períodos de inflação altíssima. É que, repentinamente, sua atividade pode ser inviabilizada de vez, pois, no Brasil, o empresário praticamente não se pode dar ao luxo de fazer investimentos em longo prazo.
“Pari passu”, há empresários que se unem para formar cartéis, prática criminosa que nunca foi efetivamente combatida, especialmente em razão da tradição antiliberal que inibe a concorrência. Na realidade, acaba-se incentivando sua formação. Fosse uma economia de mercado, empresários disputariam a tapas os consumidores. Vejamos a solução segundo MISES [14]:
É absurdo ver o governo – que gera, por meio do próprio intervencionismo, as condições que possibilitam a emergência de cartéis nacionais – voltar-se contra o meio empresarial, dizendo “Há cartéis, portanto é necessária a interferência do governo nos negócios”. Seria muito mais simples evitar a formação de cartéis sustando a interferência governamental no mercado – interferência esta que vem a gerar as possibilidades de formação desses cartéis. A ideia da interferência governamental como “solução” para problemas econômicos dá margem, em todos os países, a circunstâncias no mínimo extremamente insatisfatórias e, com frequência, caóticas. Se não for detida a tempo, o governo acabará por implantar o socialismo. (Grifei)
A busca da implantação de um sistema de economia planificada no Brasil não é mais um segredo. E são aqueles que se autodenominam piedosos, humanistas, altruístas e ungidos que chegaram ao poder para corrigir as distorções sociais e econômicas do país que, na realidade, trabalham para nos guiar rumo ao caminho da servidão.
Não é difícil perceber que, quando Estado quer, ele cria inúmeras barreiras que freiam o desenvolvimento do país. Em alguns casos, inclusive, chega ao absurdo de se imiscuir no dever de ditar o que deve ser oferecido (estabelecendo quantidades, material a ser utilizado etc.), quem deve oferecer e qual o valor praticado.
Por um período vivenciamos uma pequena melhora. Foi no governo intervencionista de Fernando Henrique Cardoso, um social-democrata que, ao lado de algumas medidas liberais, criou agências reguladoras, aumentou a carga tributária e avançou na agenda globalista, editando leis que investiram pesado na ofensiva contra os valores morais ocidentais. A desestatização de certas empresas atribuiu ao neoliberal a pecha de “direita”, mas seu governo em nada se aproximou do liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX, defendido por liberais e conservadores de boa cepa [15].
Apesar disso, fomos bem. Com uma moeda forte o Brasil entrou nos eixos e voltou a crescer após mais de uma década perdida. Porém, quando parecia que o empresariado se acostumaria à estabilidade, veio um longo período de lulopetismo – esquerda mais radical que a ala fabiana de FHC. Nenhum país sobreviveria incólume a esses tempos de mais aumento da carga tributária somado a irresponsabilidades e gastanças imoderadas e sem lastro. Na mesma ocasião surgiu o maior esquema de corrupção jamais visto no país, quiçá do mundo. Last, but not least, esses mesmos governos conduziram o país deliberadamente em direção à recessão.
Uma nova retomada do crescimento exigiria a mudança da atual matriz econômica e a volta do tripé econômico (responsabilidade fiscal, sistema de metas de inflação e taxa de câmbio flutuante), além da concessão de mais liberdade ao empresário com a diminuição da carga tributária e a desburocratização. O consumidor seria o maior beneficiário num ambiente de livre concorrência, já que é ele quem movimenta a mão invisível reguladora do mercado, ditando regras sobre o que contratar e quanto gastar.
Aliás, em relação ao quanto gastar, segundo HAYEK, é o preço que “permite aos empresários ajustar sua atividade à de seus concidadãos pela observação das oscilações” do mercado para direcionar seu negócio. E ele complementa: “É importante assinalar que o sistema de preços só cumprirá sua função se a concorrência predominar[16].
Com regras mais frouxas, há o incremento dos negócios, novos postos de emprego são abertos, a geração de riquezas insere mais pessoas no mercado e o capital gira, formando um ciclo de crescimento. Isso torna quase que totalmente despicienda a interferência do Estado na economia, e dispensa a criação e a manutenção de projetos sociais eleitoreiros, pagos com o sacrifício da parte da população que é refém do Fisco. Para sustentar uma boa administração, basta cuidar de segurança, saúde e educação – as duas últimas através da terceirização e do sistema de vouchers; e sem compadrio –, mas sem esquecer o respeito à propriedade privada e aos demais direitos individuais.
A mudança requer muito trabalho, mas situação poderia ser pior se a sociedade não estivesse se movimentando e continuasse com a visão obnubilada pelas falácias dos avanços sociais. Mesmo assim, percebemos que as instituições estão aparelhadas e alguns simpatizantes atuam sem temor nem freios morais.
É importante ter em mente que não é possível retroceder, uma vez que esses tempos difíceis são o resultado de uma ação orquestrada pela elite dirigente, que aplicou um golpe ao desviar bilhões da Petrobras para patrocinar campanhas e se investir de um poder ilimitado e por tempo indeterminado, como o claudicante Maduro e o finado Chavez conseguiram fazer na pobre Venezuela e o Evo Morales procura fazer na Bolívia. E eles não irão parar de “sponte sua”.
Para nossa sorte, algo fora dos planos aconteceu e o espantoso esquema de corrupção entranhado em toda a máquina pública foi descoberto. A popularidade de Dilma despencou a 7% e depois a 5%. Caíram as máscaras de bom mocismo de muitos políticos e empresários até então intocáveis, e a população parece estar dando conta de que se aproxima do abismo mais profundo para o qual o país já foi levado. É de vital importância livrar o país das crias do Foro de São Paulo, como fez a Argentina ao enxotar os populistas do poder.
Aproveitando essa repentina conscientização de muitos, é possível derrubar as estruturas já corroídas do poder e trazer frescor e novas lideranças ao país, que trabalhem para implantar um projeto que impulsione a economia e nos traga um real e definitivo desenvolvimento.
Pois bem. O objetivo do ensaio não era santificar nem demonizar o empresário, mas discutir que a liberdade no exercício de sua atividade beneficia a todos, em especial a população – mais especificamente o consumidor, a quem cabe assumir o protagonismo para decidir os rumos do mercado e da saúde financeira do país.
De outro lado, é também o desejo do fornecedor em lucrar que movimenta a economia. Mas, para que possa lucrar, ele é obrigado a investir em tecnologia de ponta e a desenvolver novos produtos, novas técnicas e novos designs para despertar no consumidor o desejo de obter seus produtos ou utilizar seus serviços. Com disso, a concorrência se vê obrigada a fazer o mesmo, o que dá um “up grade” no mercado.
É urgente a diminuição da interferência do Estado na economia, a fim de evitarmos um processo de venezuelização no Brasil. Nas sociedades que experimentam maior interferência do Estado através da burocracia e da tributação pesada, a tendência é que o mais prejudicado seja exatamente quem possui menos recursos, pois irá arcar indiretamente com toda a tributação cobrada aos fornecedores, já que inserida nos cálculos para precificação de produtos e serviços. Salta aos olhos que quem possui mais recursos sentirá um baque menor sobre suas contas porque lhe sobra mais na relação ganhos vs. despesas. Ou seja, quem gasta tudo não tem como arcar com o aumento dos tributos, enquanto quem não gasta pode abrir mão de suas reservas.
Esse modelo ortodoxo de gerir a economia já foi testado muitas vezes, e em vários países, e o resultado sempre foi o fracasso total. Passou (e muito) da hora de arrancar do poder essas pessoas que conduzem o Estado segundo uma ideologia assassina que prega a inveja na condição do outro e comprovadamente não deu certo em nenhum país do planeta. É a liberdade dos brasileiros que está em jogo.

NOTAS
 [1] MISES, Ludwig von. As seis lições. 7. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2009, pág. 29;
[2] Stephen Kanitz, em 06/02/2016, postou em sua conta no facebook o seguinte comentário: “... O problema do Brasil é outro. Os Governos FHC e PT destruíram todos nossos bancos pequenos, os Bancos Comunitários. Áustria tem 600 bancos Comunitários, pequenos, que atendem você e não um número de conta. Graças ao PSDB e o PT temos um oligopólio de somente cinco grandes bancos. Isto somente nós administradores percebemos”;
[3] Taxa é, na realidade, uma modalidade de tributo vinculada a uma atividade estatal;
[4] Ver sobre a Inconfidência (ou Conjuração) Mineira;
[5] Brasileiro trabalha 151 dias para pagar imposto, que come 41,4% do salário. UOL, 21/05/2014. Disponível em <http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/05/21/brasileiro-trabalha-151-dias-para-pagar-imposto-que-come-414-do-salario.htm>. Acesso em 12/12/2015;
[6] O ex-presidente Lula, em discurso vitimista respondendo a um questionamento do candidato Enéas Carneiro no pleito presidencial de 1994, denominou “elite dirigente”. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=lx0qDkODcMY>. Acesso em 07/02/2015;
[7] GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo... Rio de Janeiro: Record, 2015, págs. 40, 253 e 263/264;
[8] HAYEK, Fredrich August von. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto von Mises Brasil, 2010, pág. 56;
[9] HAYEK, Fredrich August von. Ob. cit., págs. 18/19;
[10] Estudo apresentado em junho de 2015 pelo Banco Mundial através do projeto Doing Business. Disponível em <http://portugues.doingbusiness.org/data/exploretopics/paying-taxes >. Acesso em 16/02/2016;
 [11] Fundação Heritage. Índice de liberdade econômica 2016. Disponível em <http://www.heritage.org/index/ranking>. Acesso em 16/02/2016;
[12] Bomfim, Camila. Zelotes apura pagamento de propina para edição de 3 medidas provisórias. TV Globo, 26/10/2015. Disponível em <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/10/zelotes-apura-pagamento-de-propina-para-edicao-de-3-medidas-provisorias.html>. Acesso em 12/12/2015;
[13] Andrada, Martim. Petrobras anuncia redução no preço do combustível para o Paraguai. Globo, 12/02/2015. Disponível em <http://g1.globo.com/hora1/noticia/2015/02/petrobras-anuncia-reducao-no-preco-do-combustivel-para-o-paraguai.html>. Acesso em 12/12/2015;
[14] MISES, Ludwig von. Ob. cit., pág. 57;
[15] Segundo José Monir Nasser, o que se chama neoliberalismo, não só se opõe ao liberalismo como é, de fato, o seu inverso. O neoliberalismo não é um movimento pró-capitalista. Em termos bem práticos, para o liberalismo não cabe ao governo resolver problemas que competem apenas aos indivíduos. Ou seja, os liberais dizem que se o Estado deixar o homem atuar com liberdade, o resultado concreto será economicamente muito maior que se forem estabelecidas restrições e limitações. O neoliberalismo é o modo pelo qual os governos socialistas modernos descobriram que poderiam parecer menos socialistas, é uma personagem traiçoeira que nos faz achar que não existe mais socialismo no mundo, quando exatamente é o contrário, pois o que se conseguiu com o neoliberalismo foi aprofundar o socialismo e não diminuí-lo. Hoje o corpo de empresários nada mais é do que agentes captadores do Estado. Eles só servem para financiar o Estado, e isso significa que a taxa de tributos que incide sobre o PIB, ou seja, que incide sobre o esforço pessoas que trabalham de fato só irá aumentar. (Diferenças entre liberalismo e neoliberalismo. Programa Mídia sem Máscara na TV. Canal 21, Curitiba. A partir de 28’02’’. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Q_0xCc2EUrk&list=PLbq4Ha-7vsP2akUnxholHk1380WIDlZ7v&index=7>. Acesso em 12/01/2016);
[16] HAYEK, Fredrich August von. Ob. cit., pág. 70.

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vila Velha e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

O TJRJ e a “revanche” contra a cruzada antienriquecimento indevido nas decisões envolvendo relações de consumo


De acordo com matéria publicada no Portal da Conjur, anunciando o Anuário da Justiça do Rio de Janeiro 2016, apesar de reconhecidamente um estado com índices alarmantes de criminalidade, os recursos oriundos de ações penais são dos menos protocolados no Tribunal de Justiça do estado (TJRJ) [1]:
Levando em conta os casos novos recebidos pelos dois grupos de câmaras com especialização definida, a constatação é que as queixas de consumidores contra fornecedores praticamente dobram as da área criminal – em sua maioria, tráfico de droga e roubos. Assim, enquanto as cinco câmaras especializadas em Direito do Consumidor receberam 44 mil recursos para julgar até setembro de 2015, as oito câmaras criminais receberam 24 mil.
Os dados confirmam uma tendência verificada em 2014, quando o número de processos que deram entrada na segunda instância criminal também ficou na lanterna, com 16% do total. Em números absolutos, foram 33 mil casos criminais, contra 64 mil recursos de consumidores e 107 mil ações cíveis em geral.
De posse da informação de que no Rio de Janeiro ações consumeristas contabilizam quase o dobro de ações penais, creio que há problemas de duas vertentes que exercem influências nesse resultado.
O primeiro não é objeto desse ensaio, mas quero dizer que qualquer pesquisa oficial sobre a criminalidade deve ser encarada “cum grano salis”. Prova disso é a baixa taxa de resolução de crimes, que impede confrontar o real percentual de criminosos processados com o número de crimes praticados e noticiados pelas vítimas (e veja que muitas delas nem procuram a polícia). Isso reflete no baixo número de ações criminais e de recursos em juízo, não obstante os problemas de criminalidade dominarem o noticiário local e o fato da população sentir na pele a violência que a inepta Secretaria de Segurança Pública daquele estado não consegue combater.
Nesse sentido, o desembargador Paulo Baldez, que preside o grupo de trabalho das Câmaras Criminais do TJRJ, afirma que a polícia e o Ministério Público atuam abaixo do nível satisfatório na solução de ocorrências e que por isso “o número de julgamentos é proporcional ao número de ações criminais que chegam ao Tribunal[2]. Sem adentrarmos o mérito sobre o número de servidores, a tecnologia disponível e a cooperação de outras instituições e/ou entes federativos, tudo leva a crer que é isso mesmo. Ponto.
O segundo problema escancara a falha da política adotada pelo Tribunal no trato com as relações de consumo. Ora, se de um lado os danos morais, em regra o pedido mais frequente dos consumidores, não são vistos com interesse por seus julgadores, de outro lado, empresas de grande porte são as grandes vilãs, responsáveis por um grande número de demandas sem se esforçar para melhorar o trato com os clientes.
Em 2013, eu publiquei o ensaio “Indústria do dano moral às avessas”, denunciando que os magistrados daquele tribunal fixavam (quando fixavam) baixas quantias a título de danos morais com o objetivo de “desestimular a procura do Judiciário e, assim, desafogar suas instâncias, pois, como boa empresa que se preze, tem metas a cumprir, e a grande enxurrada de ações propostas inviabiliza essa árdua missão[3]. (grifei)
Lembrei, ainda, um caso real em que o juiz negou a inversão do ônus da prova e julgou improcedente o pedido, ao argumento de que os documentos juntados pelo Requerente, únicos obtidos perante a própria instituição financeira Requerida, eram insuficientes para deslinde da ação.
Sobre os problemas oriundos dessa postura, alertei que fixar quantias irrisórias incentiva a continuidade de atos reprováveis em detrimento dos consumidores, pois fica mais barato para as empresas irem a juízo (é o risco calculado). Também comentei que a produção de decisões a toque de caixa para engordar estatísticas e atingir metas com respaldo em supostas celeridade e eficiência não dispensam a prolação de decisões com qualidade. Curiosamente, o TJRJ não exige das empresas que julga a eficiência cobrada dos magistrados quando abre mão de uma condenação mais austera.
Como os julgadores não condenam o fornecedor [4] de forma exemplar, fixando a reparação dos danos sofridos em quantias ínfimas para evitarem o enriquecimento indevido, o resultado lógico é o desdém dispensado ao consumidor, o que certamente abre portas para uma enxurrada de ações. Essa prestação jurisdicional com vistas a desestimular as demandas é um tiro no pé, pois as vítimas insatisfeitas continuam ajuizando ações e buscando a “justiça” em grau recursal.
E olha que nem todo consumidor lesado bate à porta do Judiciário. Ademais, quem julga os recursos dos Juizados Especiais não é o Tribunal, mas as Turmas Recursais. Logo, o número desse tipo de ação é muito maior.
Não é necessário muito esforço para concluir que, para reduzir custos, certas empresas não se dedicam a melhorar produtos e serviços, nem investem em material humano. Preferem transferir para o Judiciário o serviço da resolução das demandas fornecedor vs. consumidor. Já o investimento em tecnologia é perceptível, pois, em regra, visa a facilitar a cobrança, traçar o perfil do consumidor e expor a marca.
Analisando o modelo empresarial do TJRJ, que alcança altíssimos índices de produtividade, mormente se comparado com as demais Cortes Judiciais do país, o texto de abertura do Anuário da Justiça do Rio de Janeiro 2016 é bem didático [6]:
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro passa por um período de reflexão, que decorre de uma constatação perversa: fazer o máximo possível e alcançar 100% de eficiência não basta no atual cenário do Judiciário brasileiro, caracterizado por um índice de litigiosidade sem precedente. Mesmo apresentando os maiores índices de produtividade na Justiça do país, o TJ-RJ não consegue vencer o desafio de dar fim ao estoque de mais de 10 milhões de processos em tramitação, a 2,5 milhões de casos novos a cada ano e à taxa de congestionamento de 73,5% na fase de conhecimento na primeira instância.
Repito: enquanto os magistrados se empenharem mais em diminuir a carga de demandas que se preocuparem com a qualidade das decisões, o consumidor continuará acionando o Judiciário e devolvendo os processos à 2ª instância, e o percentual de ações congestionadas no piso só aumentará. Em suma, não adianta investir nos danos morais para desencorajar o ajuizamento de novas ações se “não combinarem com os russos”, que são os consumidores.
A solução é desencorajar a reincidência. Então, no lugar de tentar suprimir do consumidor a garantia constitucional da inafastabilidade da apreciação e da prestação jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da CF/1988), o julgador deveria punir mais severamente o fornecedor que descumpre leis e delega ao Estado a responsabilidade de resolver problemas que deveriam ser solucionados pelo serviço de atendimento ao cliente (SAC). Começando por determinar a adequação da sua estrutura para manter melhor relação com o consumidor. Todos sairiam ganhando.
Não é novidade que as grandes empresas abarrotam e atravancam o Judiciário. Invariavelmente, são as que menos se importam em estar no dia a dia dos fóruns e tribunais para resolver em juízo problemas que poderiam ser solucionados no âmbito privado. São várias demandas geradas pela cobrança de valores indevidos; negativação ilícita; venda de alimentos vencidos ou estragados; entrega de produtos com defeito ou com atraso; e negativa de prestar serviços contratados, dentre outros. E não adianta mostrarem boa vontade no mutirão do fim do ano realizado para desafogar o Judiciário se elas são as principais causadoras dessa mobilização.
Em relação ao pequeno e médio empresariado, eles também estão adstritos à lei e não merecem favores extraordinários. Logo, é possível um enrijecimento que não prejudique nem inviabilize sua atividade, podendo ser aplicados os critérios do caráter pedagógico e punitivo da decisão e do porte econômico da empresa na fixação do “quantum” devido a título de danos morais. Então, os valores fixados facilmente atenderiam à sua realidade e, principalmente, seriam um estímulo à melhoria no atendimento aos anseios do consumidor.
Quanto aos consumidores que buscarem a tutela do Estado por oportunismo devem ser punidos com muito rigor, por litigância de má fé.
Entretanto, é necessário fazer uma ressalva em relação às fórmulas criadas pelo Judiciário para diminuir ou evitar demandas, inclusive no âmbito extrajudicial. De nada adianta criar meios de solução de conflitos se o mote é viabilizar um projeto pautado na ameaça velada a empresas a partir da criação de uma lista que gradua o “grau de colaboração” com o Judiciário na diminuição de demandas. Nesse diapasão, as ameaças ao consumidor através de um cadastro na Câmara Online que demonstra sua “boa vontade” na busca da solução pré-processual do litígio. Vejamos [6]:
A primeira fase do projeto, denominado Câmaras de Solução Online, com ênfase em questões relacionadas ao Direito do Consumidor, um dos principais gargalos da Justiça comum, começou a funcionar (...). A expectativa é de que o sistema esteja disponível em todo o estado já no primeiro semestre de 2016.
(...)
Mesmo que não consiga solução para o problema, o consumidor que fizer uso das câmaras online tem a vantagem adicional de ter provada sua boa-fé na tentativa de um acordo pré-processual, caso a questão acabe sendo levada ao Judiciário. Isto porque ficaria demonstrado que o eventual ajuizamento de ação judicial, em caso de malogro da conciliação, se deveu exclusivamente à inércia e incapacidade da empresa de atendê-lo a partir do momento em que tomou ciência da reclamação.
Simultaneamente à instalação das primeiras câmaras online, o TJ-RJ também inovou no programa de conciliação por e-mail com o lançamento de aplicativo para telefones celulares que permite ao usuário buscar acordo com grandes empresas, públicas e privadas, previamente cadastradas, antes de recorrer à via judicial. O sistema é extremamente simples e tem sido apontado como peça de fundamental importância no chamado Projeto de Solução Alternativa de Conflitos, por estimular ainda mais a conciliação e, consequentemente, a solução de conflitos de consumo, sem necessidade de ajuizamento de processos.
(...)
Um grupo de 30 empresas, entre as mais demandadas no Judiciário fluminense – operadoras de telefonia e planos de saúde, bancos, grandes redes de comércio varejista e concessionárias de serviços públicos – participam do projeto. Com o aplicativo, o consumidor que se sentir prejudicado entra em contato com uma área específica da empresa, expõe o problema e aguarda proposta de solução. Para estimular as empresas a participar do programa, o tribunal planeja criar uma espécie de ranking positivo para destacar as empresas que mais fazem acordos extrajudiciais, que servirá como contraponto ao ranking atual das empresas mais demandadas no Judiciário fluminense. (grifei)
Sem contar que o TJRJ arroga para si a função que seria dos PROCONS na solução prévia de conflitos, outras circunstâncias tornam não muito salutares as medidas simpáticas criadas tão-somente para o desafogo do Judiciário, sem considerar o principal: uma prestação jurisdicional justa.
Com efeito, o Estado obriga o jurisdicionado a procurar essas Câmaras sob pena de, “mutatis mutandis”, ser tratado como responsável por não haver um acordo pré-processual. Da mesma forma, constrange (de forma ilícita a meu ver) as empresas a firmarem acordos buscando um bom posicionamento no ranking das colaboradoras.
Vamos ser claros e objetivos: qual o prêmio de quem se “comportar direitinho”? O consumidor que não buscar a solução extrajudicial para exercer sua garantia constitucional perante o Judiciário será prejudicado em seus direitos? As empresas bem colocadas no ranking terão “descontos” nas possíveis condenações em demandas que não conseguirem finalizar na fase pré-processual?
Por esse prisma, é ilegal, é imoral e não se admite, num Estado Democrático de Direito, ameaças aos litigantes de maior rigor na apreciação judicial simplesmente por buscarem a tutela judicial.
Para finalizar, se a fixação de valores baixos na reparação de danos morais visa a evitar o enriquecimento indevido do consumidor; e se até aqui não gerou bons resultados, os magistrados devem alterar essa tática.
De outro lado, se a empresa joga a responsabilidade da resolução dos problemas sobre o Judiciário, deixando claro o propósito de diminuir custos, ou aumentar lucros, como queira, possivelmente irá utilizar o mesmo fundamento para manter seu nome nos primeiros lugares da lista de “colaboradores”, com o intuito de ser vista com “melhores olhos” pelos magistrados, que aplicarão penas menores. Aqui também não há enriquecimento indevido da empresa?
A jurisdição deve ser prestada nos termos estabelecidos em lei. Quem se preocupa demasiadamente com a quantidade de demandas a julgar, ou o acúmulo de trabalho, e lança mão de meios heterodoxos para resolver problemas cuja solução é simplesmente levantar o tom contra infratores contumazes para eliminar (ou tentar eliminar) na raiz o surgimento de novas demandas, pode pegar seu banquinho e sair de fininho. Quer dizer, não adianta enxugar gelo ou criar mecanismos mirabolantes que atentem contra o Estado de Direito, para evitar o acúmulo de demandas que continuarão se multiplicando se o problema não foi tratado em seu cerne, através da coação legal contra fornecedores para que busquem meios definitivos de frear as demandas. Afinal, a belíssima e necessária função do magistrado é julgar, e não lhe é dado o direito de fazer contornos que o impeçam de apenar adequadamente quem não se intimida perante o Poder Judiciário. Para tanto, é beneficiário de um belo subsídio cumulado com vantagens bastante significativas para cumprir seu mister.
Caso continue insatisfeito, há muitas outras profissões dignificantes por aí, e qualificação para abraçar uma delas certamente não lhe faltará.

Notas
 [1] SOUZA, Giselle. TJ-RJ tem duas vezes mais casos de consumidor do que de crime. ConJur, 19/11/2015. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-nov-19/tj-rj-duas-vezes-casos-consumidor-crime >. Acesso em14/12/2015;
[2] SOUZA, Giselle. TJ-RJ tem duas vezes mais casos de consumidor do que de crime...;
[3] PEIXOTO, Fernando César Borges. Indústria do dano moral às avessas. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3824, 20/12/2013. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/26200>. Acesso em: 15 jan. 2014;
[4] O termo engloba tanto o fornecedor de produto quanto o prestador de serviços, pois segundo o artigo 3º do CDC: “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”;
[5] Anuário da Justiça 2016. TJ-RJ tem nota máxima em eficiência, mas não responde às demandas sociais. ConJur, 10/12/2015. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-dez-10/justica-rio-eficiente-nao-responde-demandas-sociais>. Acesso em 11/12/2015;

[6] Anuário da Justiça 2016. TJ-RJ tem nota máxima em eficiência, mas não responde às demandas sociais...

Fernando César Borges Peixoto
Advogado, Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vila Velha-ES e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória-ES.