segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O conservador de escol




Luís Henrique Palhares de Albuquerque Leitão fazia questão de ser antecedido pelo título de Comendador, conquistado há anos, ao ser agraciado com a Medalha Tupinambá, maior comenda distribuída pelo Município de Araruama, na Região dos Lagos, Rio de Janeiro.
Sua família havia conhecido a riqueza, mas agora era decadente. Custava-lhe compreender a loucura de famílias tradicionais empobrecerem enquanto surgiam novos-ricos aos borbotões.
De ocupação incerta, um homem que ainda não havia chegado aos quarenta, fazia uso de linguajar por vezes erudito, por vezes empolado. Fumava charutos cubanos, bebericava vinhos e uísques refinados, e usava gravata borboleta, suspensório, bengala, relógio de bolso e pince-nez. Em alguns compromissos, um chapéu panamá completava o vestuário.
Dizia-se um conservador de estirpe, alguém com lastro para enfrentar um mundo moderno que, a seu ver, ia sendo tragado por questões de segunda linha, como discussões sobre a destruição sistemática da Cultura Ocidental por esquemas de poder global. Achava tudo isso um tédio, fruto de teorias da conspiração. Ora, pensava, bastaria impulsionar a economia, para a pujança financeira esmagar todos os problemas. Essa era a sua simples resposta ao “caos”.
Gostava de caminhar por seu bairro de classe média, e de empreender conversas com vizinhos e frequentadores, qualquer que fosse sua camada social. Considerava-se imerso em verdadeiros estudos sociológicos, os quais, um dia, pretendia ver compilados num livro de sabedoria popular. Embora fosse tratado com reservas, em razão da excentricidade da figura peculiar e de linguajar não usual, pensava que era em respeito a sua classe.
O interlocutor preferido era um faz-tudo bastante requisitado no bairro. Esperto e comunicativo, fazia desde compras de supermercados até limpeza de terrenos para seus fiéis clientes, e ainda tirava os sábados para lavar carros no decorrer do dia. O Comendador sentia uma necessidade irresistível de saber da vida alheia, e não se importava em atrapalhá-lo na execução dos serviços, nem se envergonhava pelo fato do rapaz saber que o seu carro era sempre limpo pelas mãos de outro lavador, que cobrava menos.
Certo dia, enquanto era interpelado sobre a mobília da casa de um coronel aposentado, que ficava no fim da rua principal, Miguel – era o nome do faz-tudo – fez um comentário atípico, sobre uma mocinha muito bonitinha que vinha pela calçada.
- Lá vem a galinhona que passa na mão de tudo que é noiado da rua de baixo. – Não gostava dela porque havia inventado várias histórias maldosas e contado para a caixa do mercadinho, em quem ele dava umas beliscadas vez em quando.
O Comendador cultivava certa afeição pela moça que fora alvo da ofensa e, chateado, disse ao rapaz:
- Não vos comporteis de forma leviana, e com esse ar empertigado, meu caro. A dama merece tratamento respeitoso.
Num misto de surpresa e aborrecimento, e desinteressado em traduzir o que havia acabado de ouvir, ele respondeu:
- O Sr. sempre fala assim, tão difícil, que imagino que tenha fodido muito quando era mais novo, hein, Comendador?
Enrubescido, o Comendador lançou um olhar estupefaciente enquanto emendava:
- Não tanto quanto desejei, nobre rapaz, mas andei por aí dando galopes em algumas potrancas, e me embaralhando com cabrochas.
- Eu quis dizer a paciência dos outros, Comendador - retrucou o outro.
De início, o silêncio; depois, o desespero. Com essa observação, acabrunhado, o Comendador titubeou por alguns segundos, que pareciam horas, e se retirou, dizendo que devia voltar para casa.
Ao chegar, dirigiu-se à sala de fumo (na realidade, o quartinho de empregada) do apartamento de dois quartos, para experimentar os Monte Cristo que ganhara do único primo abastado. Serviu-se de uma taça de xerez, e pôs-se a meditar sobre os jovens indelicados produzidos pelas escolas desses tempos de “ai meu Deus”.
Matutou por muito tempo, e concluiu, como sempre, que se a economia estivesse “bombando” (ele gostava do linguajar pós-moderno), jamais haveria conversas como essa. O mancebo mui provavelmente andava envolto em problemas, e certamente adotaria comportamento adequado diante do fidalgo se estivesse com os bolsos cheios de dinheiro, circunstância que, para esse último, transformava qualquer pessoa num ser humano de boa cepa como num passe de mágica, e livrava a sociedade de suas mazelas.
Fazendo roscas de fumaça, encerrou-se em seus pensamentos.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, até certo ponto, é um saudosista.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Inferno dantesco




A tempestade que caiu na hora do rush da tarde, impediu que Paranhos deixasse o escritório, onde chegava, todos os dias, britanicamente, às sete e meia da matina.
O trânsito não andava, as ruas do velho centro da cidade alagavam, e como nada poderia ser feito, aproveitou para adiantar tarefas do dia seguinte, já que desde a demissão de dois funcionários para contenção de despesas, estava sempre sobrecarregado de serviços.
Apesar disso, não estava infeliz, e muito menos engrossava o coro dos descontentes que adoravam demonizar o patrão. Afinal de contas, era outra crise econômica daquelas, e o cara conseguia manter a empresa de pé, mesmo com a enorme lista de tributos pagos mês a mês, e os clientes fugindo ou não pagando os serviços prestados. Dava, isso sim, graças a Deus por estar empregado e receber em dia.
Lá pelas oito e meia da noite, a situação melhorou um pouco, e ele resolveu puxar a carroça. Foi para o ponto, esperar o ônibus da única linha que atendia seu bairro, no subúrbio. Nos dias de aumento da demanda, táxis não rodavam no taxímetro, e os aplicativos também funcionavam “no tiro”, principalmente depois que as avançadas leis trabalhistas e tributárias praticamente inviabilizaram a prestação desse serviço como era prestado quando chegou ao país. Estava resignado, pois não podia pagar.
Chegou em casa às dez e trinta e cinco, todo molhado, e foi tomar banho. A mulher e a única filha, adolescente, haviam ido dormir, e sua janta estava servida num prato que estava envolto e amarrado por um pano, e pousava sobre a panela já com água, pronta para o banho-maria.
Sentiu que a resistência do chuveiro havia queimado outra vez, e não teve saída: tomou um banho “tcheco” gelado, xingando sua sorte internamente, com todos os nomes feios que conhecia, e anteviu uma gripe forte para os próximos dias.
Colocou a comida para esquentar e serviu-se de uma dose da pinga “da boa” que o vizinho havia trazido da roça, com muitas recomendações de “a melhor que já tomei na vida”.
Já estava quase cochilando sobre o prato de comida, quando a mulher levantou para ir ao banheiro, e deu-lhe um susto ao abrir despreocupadamente a porta empenada do quarto, cujo barulho se ouvia lá na esquina. Após as últimas garfadas, foi deitar. Antes de dormir, rezou Ave-Maria e Pai Nosso. Pediu pela saúde de seus sogros, da mulher e da filha, e pelas almas dos pais e da cunhada, morta dois meses antes.
Logo, logo adormeceu. E foi aí que tudo começou.
Primeiro, viu-se com a família no Polo Comercial da Cidade, uma grande avenida, no dia da parada gay, que não sabia que tinha sido programada. Para sair do meio da confusão, entrou numa pequena galeria de doze lojas, no máximo. Por seus cálculos, se pegasse a saída dos fundos, chegaria ao seu carro, que deixara num local afastado, para não pagar o estacionamento. Foi entrando.
Na vitrine da terceira loja, estavam expostos vários pênis de borracha, de todos os tamanhos, e um rapaz de sunga fio dental, bem na porta, conversava alto com o vendedor, dizendo que queria comprar um sapato de salto descomunal, porque o dele havia quebrado no desfile.
Ao passar com sua família, eles os olharam com cara de deboche, talvez pelo misto de vergonha e assombro estampado em seus rostos. Mas o pior estava no interior da loja: uma série de manequins com pênis salientes, vestidos por lingeries sexys e mínimas.
Ao fundo, no lugar da saída, havia a porta de um Templo, com a imagem de um santo numa gruta bem ao lado. Respirou aliviado, e nem se deu ao trabalho de perguntar o que estaria fazendo, ali, uma Igreja Católica.
Entrou com a família, e viu cabritos, pessoas dançando – com roupas semelhantes às usadas na parada gay –, luzes de boate e algumas imagens de deuses hindus... Ficou chocado. Conseguiu alcançar um altar lateral, onde havia várias velas acesas e outras por acender, por quem fosse fazer pedido ou oração. Acendeu uma e pediu a Deus que perdoasse a si e a todas as criaturas que viviam em pecado. Em seguida, fechou os olhos por alguns segundos. Agora, a luz era fraca, e sua atenção foi chamada para olhar um homem que estava lá adiante, num palco iluminado, falando como se fizesse uma homilia.
Com a aparência de Jesus Cristo no Santo Sudário, estava vestido como as pessoas se vestiam em Seu tempo. Porém, ele pregava uma nova religião, suas palavras apontavam o caminho de um ecumenismo que faria surgir a religião universal, um misto de elementos de todas as religiões, em que se pregaria o respeito a tudo e a todos, conferindo idêntico valor aos homens, aos animais e à natureza, e que se prestaria culto, em pé de igualdade, ao Deus-Pai e à Mãe-Terra.
Perguntou quem seria o sujeito, e alguém de olhos vidrados esboçou um nome impronunciável. Disse que era o novo Messias, que havia abandonado uma vida de abundâncias, de mago da computação, para levar palavras de amor, paz e fraternidade a todos os povos. Os devotos estavam num transe coletivo, falavam em línguas estranhas, viravam os olhos... Parecia o efeito de alguma substância alucinógena.
Naquele momento, Paranhos viu que borrifadores espalhados por todo o recinto, que era grande, espirravam um líquido de cheiro estranho. Ele puxou mulher e filha pelos braços, e juntos saíram pela porta lateral, que dava num corredor que, enfim, alcançava a rua onde havia deixado o carro. Duas pistas precisavam ser vencidas, e ele foi à frente, para trazer o carro mais para perto. Estava tudo muito deserto por ali, e quando começou a manobrar o carro, sua esposa bateu no vidro, pedindo para entrar.
Perguntou pela menina, e ela respondeu que a havia deixado no parquinho, se divertindo. Quis voltar, mas ela disse para seguirem direto pra casa, porque havia algo urgente a fazer. Ele seguiu em frente e, chegando a casa, foi vencido por um sono irresistível. De repente, acordou e começou a procurar a filha, sem achar. Passou, então, a gritar pela mulher, perguntando da menina. Desespero total.
Agora ele realmente acordava, assustadíssimo, do sonho em que estava sonhando, e constatou que seus gritos jamais seriam ouvidos, pois a chuva e o banho gelado lhe presentearam, antecipadamente, com uma afonia e uma tosse de cachorro.

Eram quatro e meia da manhã. Esticou as mãos para o lado, e sentiu que a mulher estava ali, dormindo. Levantou, e conferiu que a filha estava na cama. Voltou ao seu quarto, e ajoelhou ao lado da cama, pedindo a Deus que salvasse suas almas, pois estava com a nítida impressão de ter ido ao inferno e voltado, numa viagem interminável e angustiante, em que não gostou de nada do que viu.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, até certo ponto, é um saudosista.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Smith Silva




Smith, sobrenome Silva, chamado de Shit por muitos, era um microempresário moralmente fracassado que, há pelo menos 10 anos, participava da “Academia da Birita”, grupo de 30 pessoas que se reunia às quartas e aos sábados para beber, comer, e jogar cartas e conversa fora. Dela participavam professores, empresários de todos os portes, profissionais liberais, servidores públicos, poetas e boêmios. O local de encontro era um boteco bem localizado e frequentado, plantado no coração do bairro mais nobre da cidade.
As vagas eram bastante disputadas, e seus membros só saíam no caixão. E se só se saía no caixão, evidentemente, ninguém arredava o pé de lá. Mas, infelizmente, eram amigos de boteco, local que, embora sugira um aparente catalizador de amizades, há também muita falsidade. Parte dos membros era de desajustados, que lançavam impropérios e faziam críticas pesadas contra “acadêmicos” ausentes. Às vezes o faziam na presença mesmo. Eram os “peregrinos”, que, pulando de grupelho em grupelho, pregavam maledicências de uns contra os outros, e de outros contra uns.
Nitidamente, os mais infelizes ocupavam a vida a falar de dinheiro, e invejavam e difamavam os que haviam obtido sucesso, sem, contudo, poupar outras pessoas. Uns chegavam a tomar por ofensa pessoal o fato de alguém ser financeiramente melhor sucedido.
Mas quem mais provocava suas frustações e seu desprezo, eram os que não haviam enriquecido e mesmo assim viviam felizes. Principalmente, porque, desses cidadãos de segunda classe, não era possível obter quaisquer vantagens. Questionavam-se, afinal: como alguém pode ostentar tamanha felicidade, tal estado de espírito, sem dinheiro no bolso ou no banco?
Naquele dia, Smith procurava Timóteo, que havia lhe pedido para conseguir o cartão de apresentação de Felício, um contador que frequentava o mesmo local, e com quem tivera um entrevero semanas antes.
Não era um pedido, mas uma ordem. E embora Smith soubesse que Timóteo iria prejudicar Felício, usando a influência e o prestígio de que gozava perante pessoas influentes, que participavam de uma sociedade secreta da qual era membro prestigiado. Aliás, tais figuras não se fariam de rogadas para vasculhar a vida e entregar informações confidenciais de qualquer pobre diabo, para atender a interesses escusos de confrades.
O microempresário simplesmente não se importava com a sorte de Felício, já que esse pobre coitado lhe provocava uma inveja figadal e silenciosa. Ademais, não poderia deixar de ser útil a Timóteo, pois não se menosprezava a gratidão de alguém de tamanha envergadura.
A desavença entre Timóteo e Felício havia alcançado os campos político, filosófico e comportamental, e Timóteo não se conformava em perder um debate, ainda porque o opositor reunia um arcabouço intelectual muito superior. Isso era inaceitável.
“Feito o serviço”, Smith se emocionou ao receber um abraço “afetuoso” de tamanduá. Pediu uma pinga, espremeu meia rodela de limão, lambeu uma pitada generosa de sal, e se recolheu em pensamentos que atormentavam sua porca vida desinfeliz, como a esposa insatisfeita, os filhos que não o suportavam, os amigos que não se importavam. A única coisa que o consolava era lembrar o valor de suas economias, que já estavam na casa dos milhões.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Apertadinho



Naquela época, Dr. Tomás beirava os cinquenta anos. Não era um homem bonito, nem feio. Estava na melhor forma física de sua vida, fruto de uma operação bariátrica bem sucedida; e sua carreira o permitia ter acesso a certos prazeres da vida.
Estava no interior para acompanhar o sobrinho de um grande cliente, intimado para uma audiência no Judiciário.
A população do Município, na maior parte, era formada de descendentes de italianos e de alemães que traziam a preservação das tradições muito presente, como era possível verificar, inclusive, na arquitetura dos prédios.
Não havia chegado cedo o suficiente para o almoço, e resolveu lanchar. Como não havia lanchonetes por ali, recorreu a um botequim que lhe pareceu limpo e confiável.
Foi direto à estufa sobre o balcão, para ver o que lhe esperava.
A proprietária o atendeu, e foi logo dizendo que o “serve selfice” havia sido recolhido, mas se ofereceu para fritar uns pastéis ou até um bife, se fosse necessário.
Ele não quis incomodar, e perguntou sobre o enroladinho de salsicha que estava ali, dando sopa. Pela aparência, era “de hooooje”, mas surpreendentemente o sabor não era ruim. Comeu dois, acompanhados de uma coca de garrafa de vidro.
Agora o estabelecimento estava vazio. Os dois fregueses remanescentes do almoço deram a última lapada na pinga que degustavam, assim que o estranho adentrou o recinto. Um papudinho chamou o outro e foram embora. Era normal que, àquela hora, o pessoal da cana estivesse descansando para se preparar para o “turno da noite”.
Ela puxou assunto com o freguês. Era uma jovem senhora, não muito bonita, mas bastante comunicativa, como deve ser mesmo todo comerciante.
Tomás havia saído de seu estado natal, Rio de Janeiro, há muito, mas pensou na diferença daquela comerciante para os Manoéis e Joaquins dos botecos da Baixada Fluminense - grossos iguais a pentelho de barrão, como diria o comediante cearense Mução.
Ele, que pensava ter perdido o sotaque, achou engraçado quando ela afirmou que ele não era dali. Também não atinou para o fato de que, numa cidade pequena, todo mundo se conhece.
Respondeu com uma afirmativa, e o papo avançou, até que ele dissesse que era do Rio, mais precisamente de Belford Roxo, um lugar de muita violência, que talvez fosse difícil para ela imaginar.
Ela surpreendeu ao dizer:
- O senhor é que pensa. O interior está ficando perigoso.
Ele falou aquilo porque a TV estava ligada, noticiando em plantão, um atentado terrorista ocorrido contra um capitão do Exército, único candidato à Presidência da República do espectro da direita política em trinta anos no país.
Havia uma forte comoção, muitos estavam preocupados, ao mesmo tempo em que, do lado da oposição, aquele evento havia aflorado o sentimento mais mesquinho que pode contagiar o ser humano. Estavam felizes, torcendo pela morte do adversário. 
Ele insistiu, dizendo que, pelo menos, aquele tipo de violência não existia por aquelas bandas, mas ela respondeu:
- Ahã! Dia desses, um carro sinistro estava rodando a cidade, vidros tão escuros, não se via nada lá dentro. De repente, uns bandidos saltaram e assaltaram a Farmácia. Deram um tirambaço na moça que não conseguia abrir a caixa registradora. Todo mundo ouviu. Foi uma correria desgraçada por isso aí tudo. Só dois policiais no plantão, e o senhor  acha que eles colocaram a cabecinha de fora? De noite, eles nem saem. Fica tudo lá no posto, quietinho, com o cuzinho apertadinho, fingindo que num tem ninguém lá... – e fechou o indicador e o polegar da mão direita até não poder mais, de forma que, realmente, não poderia passar nem vento.
De repente, surgiu o marido, até então em silêncio, do fundo do bar. Carregava um prato com uma montanha de comida, já destroçada pela metade. Deu um trupicão ao bater com a sandália havaiana numa falha do piso, e por pouco não saiu da cena tão rápido quanto entrou, para ganhar a rua arrastando o banjo no chão.
Dizia ele, momentos antes de ter que se equilibrar:
- Ô, mulher! Cê tá conversando esse assunto com quem?
Tomás entendia o porquê de não haver mais comida do “serve selfice”. Tudo parecia estar no prato do comerciante, que ficara espantado ao constatar que a voz desconhecida era mesmo de alguém que ele jamais havia visto.
O clima ficou esquisito, todos estavam, àquela altura, constrangidos, e foi a deixa para o advogado pagar a conta, cumprimentar o casal e ganhar a rua.
E lá se foi, gargalhando gostosamente até chegar ao Fórum, e perceber que aquela era uma história para contar aos netos que esperava um dia ter.
E ele fazia isso agora, após tantos anos passados, rindo como se tudo estivesse acontecendo novamente.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.