Era o vigésimo sétimo dia de março
de 2020 d.C. O tempo, naquela tarde, estava bastante fechado, e garoava. No
mundo inteiro, diante da TV ou nas redes sociais, pessoas acompanhavam, apreensivas,
os passos claudicantes daquele idoso vestido de branco, numa caminhada que parecia
não ter fim.
O mundo estava assombrado pela
devastação que uma peste vinda da China causava por todo o globo, em especial
na Itália; e a imprensa massacrava o público com notícias apocalípticas. O
combate eficaz àquele sofrimento parecia muito distante.
Havia uma tenda instalada no centro
da Praça, para onde ele se dirigia; ao fundo, duas peças sacras de inestimável valor eram mostradas
aos fiéis de várias nacionalidades.
Aquele senhor, o Papa Francisco, caminhava
para dar a Bênção “Urbi et Orbi” extraordinária com indulgência plenária – concedida,
por tradição, apenas nas celebrações da Páscoa e do Natal e na eleição de um
novo Papa [1].
O ícone de Maria Protetora do Povo
Romano (“Maria Salus Populi Romani”) era uma das peças expostas. A reverência
prestada tem origem na cura da peste negra [2],
na pandemia de 593 d.C., uma das piores manifestações da história. Consta que após
o Papa Gregório I determinar que o ícone fosse levado pelas ruas de Roma, a doença
sucumbiu [3]. Já em 1873
d.C., o Papa Gregório XVI rezou ao lado da imagem, por ocasião de uma
pandemia devastadora de cólera [4].
A
outra peça existe por conta de um milagre: o crucifixo do altar principal da
Igreja de San Marcello al Corso – em Roma, a míseros quilômetros do Vaticano – foi
encontrado intacto, junto a uma pequena lamparina que ardia a seus pés, após um incêndio de grandes
proporções arrasar a Igreja, em 1519 d.C. Apenas três anos depois, em 1522 d.C.,
quando nova pandemia de peste negra mais uma vez dizimou parcela considerável
da população, os católicos, com muita fé, carregaram a imagem por dezesseis
dias pelas ruas de Roma, e receberam a graça da cura ao final da procissão [5].
Eram tempos duros, mas eram tempos
de fé. Ninguém atendeu ao “fique em casa”. Nas ruas, sem máscaras e sem álcool
gel, unidos e em procissão, os fiéis, apoiados e irmanados com as autoridades
eclesiásticas, pediram a Deus que pusesse fim àquele sofrimento e foram atendidos,
porque creram N’Ele. Quando a vida voltou ao normal, não houve fome e desemprego,
pessoas não estavam com as mentes adoecidas pelo confinamento, empresas não
quebraram...
Voltemos à bênção papal.
Feita a leitura do Evangelho segundo
São Marcos 4, 35-41, o Papa iniciou a homilia e citou vários trechos da Bíblia,
como Joel 2, 12 (“Retornai a Mim de todo vosso coração”); o Evangelho de São
João 17, 21 (“... que todos sejam um”); e a Primeira Epístola de São Pedro 5, 7
(“Tu tens cuidado de nós”), merecendo destaque, todavia, a citação ao Evangelho
de São Mateus 14, 27: “não tenhais medo” [6].
Após a breve bênção, houve a adoração
ao Santíssimo.
Muitos se sentiram aliviados, mas, por serem demasiadamente humanos, logo em seguida voltaram à rotina do isolamento, do uso da máscara, da não
aglomeração, e da conivência com decretos estatais autoritários que permitem a invasão de culto celebrado em família [7] e criam regras que afrontam nossos costumes, estabelecendo limites absurdos para familiares e amigos velarem e enterrarem seus
mortos [8].
(Nem vou falar dos relatos sobre falsa comunicação da “causa mortis”.) Porque
perderam a fé no divino, continuaram a xingar e a delatar quem não aderiu ao comportamento
de manada, à histeria; quem não entrou em pânico; quem não demonstrou fraqueza
e nem tentou impor ao outro sua crença no cientificismo e em políticos e burocratas mal
intencionados. Queriam
a bênção para continuar suas vidas de religiosos “pro forma”, que não acreditam no real poder do Deus que cura, mas acreditam nos “deuses” da ciência que a cada minuto
inventam soluções inócuas para combater o vírus e preveem um número futuro aleatório
de vítimas [9].
As autoridades eclesiais da Igreja
Católica, instituição que é expoente no processo civilizatório do Ocidente e do
Brasil – inclusive estimulando o seu descobrimento [10] –, praticamente se calaram, como já vêm se calando
há muito, abrindo mão de combater o bom combate em nome de um bem ou de uma paz
que nunca virá, incapazes de perceber que Gog e Magog e seus seguidores jamais se
sentirão saciados, mas estarão sempre preparados para empreender novos avanços
até a total destruição da Igreja de Cristo.
Ah! Se tivéssemos ao menos a fé dos
leigos da Idade Média, a fé perdida para o lobby “iluminista”, antropocentrista,
com a facilitação dos vários grupos de interesse infiltrados ao longo da
história. Já não é possível contar com a mesma fibra, pois a Igreja,
conformada, aos poucos foi se adequando ao mundo moderno. Tanto que a maior
parte de seus membros hierárquicos prestou apoio ao slogan manipulador do “fique
em casa”, ou apenas se calou diante dos fatos e da invasão do Estado no direito
ao culto, a qual jamais irá retroceder, mas só avançar [11, 12, 13], até o ponto em que os sacramentos não poderão ser celebrados, o
Código Canônico não poderá ser aplicado e o catecismo não poderá ser ensinado por determinação de
normas seculares.
Naquele dia, no Vaticano, a
belíssima imagem do rosto de Cristo no crucifixo, molhado pela chuva, comoveu a todos. Ele parecia
chorar por sua Igreja, que padece pelas sucessivas ações de grupos que querem destruí-la
desde dentro, e por seus filhos, vítimas do vírus, da maldade do socialismo, da ganância pelo poder e da ignorância,
toda a obra do pai da mentira [14].
A solenidade emocionou; só não
emociona, nessa hora tão sensível, a forma covarde, conformada, silenciosa,
polida e, por vezes, maliciosa com que o Clero, que já foi honrado por inúmeros
santos mártires, vem conduzindo esse tema tão importante à sua própria
sobrevivência e à salvação dos que creem.
Notas
[1]
Bênção Urbi et
Orbi e Indulgência plenária com Papa Francisco.
Rede Vida,
27/03/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VUIDliD2MVo&t=1030s;
[2]
Peste negra: se transmitida por pulgas e ratos
infectados, é a peste bubônica; se transmitida pelo contato com humanos, é a
peste pneumônica;
[3]
Souza, Francisco. Conheça a história
do ícone para o qual o Papa rezou pedindo o fim da Pandemia. Comunidade Shalom, 28/03/2020.
Disponível em: https://www.comshalom.org/conheca-a-historia-do-icone-para-o-qual-o-papa-rezou-pedindo-o-fim-da-pandemia/;
[4]
As duas orações do Papa para invocar o “fim da pandemia”. CNBB – Regional Leste 2, 16/03/2020.
Disponível em: https://www.cnbbleste2.org.br/noticia/as-duas-oracoes-do-papa-para-invocar-o-fim-da-pandemia--16032020-102613;
[5]
DAUD, Maria Paola. A história do crucifixo milagroso que salvou Roma da peste. Aleteia, 19/03/2020: https://pt.aleteia.org/2020/03/19/a-historia-do-crucifixo-milagroso-que-salvou-roma-da-peste/;
[6]
Texto integral da homilia do Papa
Francisco neste 27 de março. Vaticano: Vatican
News, 27/03/2020. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-homilia-oracao-bencao-urbe-et-orbi-27-marco.html;
[7]
COSTA JR., Hélio. Governador de Santa Catarina exige hóstia embalada para comunhão. Santa
Catarina: Estudos Nacionais, 22/04/2020. Disponível em: https://www.estudosnacionais.com/23317/governador-de-santa-catarina-exige-hostia-embalada-para-comunhao/;
[8]
BRANDINO, Géssica. Prefeitura de São Paulo restringe horário e público em velório para
evitar contágio por coronavírus. São Paulo: Uol, 19/03/2020.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/prefeitura-de-sao-paulo-restringe-horario-e-publico-em-velorio-para-evitar-contagio-por-coronavirus.shtml;
[9]
Sem isolamento e ações contra a
Covid-19, Brasil pode ter até 1 milhão de mortes na pandemia, diz estudo. G1, 27/03/2020. Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/27/sem-isolamento-e-acoes-contra-a-covid-19-brasil-pode-ter-ate-1-milhao-de-mortes-na-pandemia-diz-estudo.ghtml;
[10]
Portugal, um país extremamente católico, ao se lançar ao mar, também buscava
cumprir o que nos exorta o Evangelho de São Marcos 16,15: “Ide por todo o
mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura”;
[11]
Estado de Sergipe. Decreto nº 40.598, de 18 de maio de 2020. Disponível
em:
https://www.se.gov.br/uploads/download/midia/37/5c2a2962e8b8c9e943342d2836532fe7.pdf;
[12]
Estado de Pernambuco. Decreto nº 49.024, de 14 de
maio de 2020. Acrescentou o inciso XXXVII ao Anexo I do Decreto nº 49.017/2020,
passando a considerar atividade
essencial [apenas] a celebração religiosa transmitida
por meios de comunicação. Disponível em: https://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?tiponorma=6&numero=49024&complemento=0&ano=2020&tipo=&url=;
[13] Nota Oficial dos Bispos de Santa Catarina. CNBB –
Regional Sul 4: Florianópolis, 22/04/2020. Disponível em: https://cnbbsul4.org.br/wp-content/uploads/sites/77/2020/04/Deus-nunca-nos-abandona-Nota-Oficial.pdf;
[14] Evangelho de São
João 8,44: “Vós tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos de vosso
pai. Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a
verdade não está nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque
é mentiroso e pai da mentira”.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta
de escrever e, de certa forma, é um saudosista.