sábado, 19 de novembro de 2016

Carta a um liberal (neo-)ateu que não irei enviar


Dias atrás, alguém postou no facebook que liberais são favoráveis à liberação das drogas porque as pessoas devem ter o poder da escolha. E completou, com uma fina ironia, dizendo que isso faz sentido, pois é do conhecimento geral que viciados em drogas fazem escolhas com muita sabedoria.
Eu fiz um comentário e até compartilhei em minha timeline. Então, veio um liberal neo-ateu e disse que, se fosse assim, deveria ser proibido “martelar” uma religião na cabeça de uma criança. Por seu raciocínio, “da mesma forma” que o viciado não é livre para escolher se drogar, a criança também não possui a liberdade de escolher não ser “catequizada”. Mais adiante, ele ainda afirmou que “não concorda” que a religião católica seja um dos pilares da nossa civilização, pois “a civilização antecedeu a religião”.
É necessário dizer que o relativismo que impregna nossa sociedade impressiona muito – e negativamente. A religião “martelada”, logicamente, é o inimigo a ser batido, o que mais incomoda e o mais fácil de atacar. Qualquer progressista, não obstante sua instrução seja monotemática ou limitada, conclui de bate-pronto que quem se opõe à liberação de drogas é um reaça religioso, e de preferência fanático. E, sem importar se os argumentos utilizados são ligados ou não à doutrina religiosa, o cristianismo é atacado – o islamismo não o é porque está muito longe de sua realidade. Puro condicionamento – bate no espantalho aquele que tem pregui... [1].
A campanha é pesada contra esse que é o último bastião que resiste, impedindo a total derrocada do Ocidente. Quem desconhece isso é um alienado, ou se preocupa tanto com a economia que não percebe que nossa sociedade atual, formada por ampla maioria de cristãos, diga-se, sofre em razão do estágio em que chegou o marxismo cultural. Mas, vamos por partes.
Quanto ao nosso ordenamento jurídico, cabe observar que o artigo 5º, inciso VI, da CRFB/1988 dispõe que o ensinamento religioso não pode ser proibido, pois a liberdade de crença é inviolável, o culto religioso é assegurado a todos e os locais de culto devem gozar de proteção [2].
Já o artigo 1.634 do CC, que trata do poder familiar, atribui aos pais o dever de dirigir a criação e a educação dos filhos.
Por fim, o artigo 12 do Pacto de San Jose da Costa Rica [3] trata da “liberdade de consciência e de religião”, assim dispondo em seu item nº 4:
4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
A religião Católica nos forneceu o conceito de moralidade, as faculdades, o avanço em vários ramos das ciências e a noção de caridade, entre muitas outras coisas. Apesar disso, é alvo dos que utilizam sua liberdade, algo muito caro à nossa civilização, para criticá-la covarde e exageradamente.
É preciso ter em mente que em nome da liberdade aconteceu a matança na Revolução Francesa, e o genocídio dos regimes comunistas de Lênin/Stálin e Mao Tsé-Tung; e defender a agenda da esquerda não ajuda o liberal a estabelecer seu pensamento político-filosófico, pois, tão logo seus “parceiros de luta pela liberdade e pelas causas sociais” cheguem ao poder, a liberdade será sacrificada em nome da (falsa) igualdade e da (falsa) fraternidade, custeadas pelo contribuinte, porque essa é a esquerda.
Nesse estágio, são insuficientes as respostas de Mises ou Rothbard para identificar e combater, efetivamente, os ardis criados pela esquerda, porque os economistas da Escola Austríaca não trataram da ocupação de espaços, da desinformação, da geração de instabilidade, da mobilização da militância ou da utilização da força para chegar e se manter no poder. Ajamos com prudência, então.
Há uma excelente exposição de Alexandre Borges nesse sentido, numa “live” transmitida no facebook. Ao ser questionado se Barack Obama é comunista, ele afirmou que o esquerdismo do “pior Presidente dos EUA” é menos preocupado com a economia e mais com as questões sociais; e que esse é o retrato da esquerda do século XXI [4]:
a única questão econômica que preocupa é a chamada desigualdade. Para seus adeptos, se montar um “welfare state”, tirar dinheiro de um e der para outro, está tudo resolvido. Eles não estão tão mergulhados assim na agenda econômica – o que faz, inclusive, com que eu tenha uma divergência profunda com alguns liberais (ou pseudo-liberais), que entram no cenário da discussão política falando apenas de economia. Ora, essa agenda é do século passado (XX), é uma agenda ultrapassada.
Segundo o articulista, isso é mais bem compreendido na comparação entre o PT e o PSOL: o PT é a esquerda do século XX, que fala na economia planificada, no trabalhismo, no capital, na luta de classes, na questão do opressor vs. oprimido. Já o PSOL, raramente fala em economia. Ele defende o Uber, o Netflix, o vale do silício, o Google... Seus membros querem falar de desconstrução de gênero, negar a (ciência) Biologia, negar que o homem nasce homem e a mulher nasce mulher – sua preocupação é que o menininho e a menininha frequentem, por direito, o mesmo banheiro no colégio...
Alexandre Borges ainda acrescenta que é triste ver os liberais pensarem que a luta contra a esquerda envolve apenas questões econômicas (diminuição da máquina estatal e da carga tributária). Embora seja um tema muito importante, essa não é a preocupação da nova esquerda, que defende a desconstrução de tudo e entendeu que a melhor maneira de acabar com a civilização ocidental é desconstruindo seus pilares, como religião, educação, família, patriotismo, ao mesmo tempo em que introduz a ideologia de gênero, o aborto... A ruína não virá da economia, mas das chamadas instituições.
E, para finalizar, ele entende que as pessoas que se dizem liberais porque defendem a propriedade privada, o livre-mercado e tal, mas concordam com todas essas questões da agenda social da esquerda, talvez não saibam, ou não tenham entendido, mas são esquerdistas. E essa ignorância é fruto da falta de leitura.
A esquerda busca o “progresso” a qualquer custo, e não importa se se sacrificam valores; evita o “retrocesso”, assim chamado tudo aquilo que não está inserido em sua ideologia ou do qual não pode tirar vantagem em favor dessa ideologia. Por fim, sempre mascara algo em suas ações para promover sua ideologia, como inserir termos dúbios em dispositivos legais [5].
A maconha, prejudicial à saúde e capaz de transformar os jovens que fazem uso continuado em esquizofrênicos [6], é o boi de piranha para a liberação de outras drogas mais fortes, incluídas as sintéticas, as que têm a substância ativa mais elevada (THC, p.ex.) e as que transformam pessoas em zumbis.
Defensores da liberação não questionam quem cria, produz e fomenta o consumo de drogas, nem o porquê. Ora, se produtos liberados para produção e comercialização são falsificados e contrabandeados, como cigarro, cerveja e uísque, imagine-se que drogas serão desenvolvidas, produzidas e traficadas fora da regulamentação estatal. Imagine, ainda, quem possui o know-how de venda e distribuição, senão os traficantes [7].
Usuários que perderam o controle de suas vidas buscarão vítimas na sociedade para manter seu vício, e será a “morte” de muitas famílias, por que a dependência química é uma doença contagiante.
A Holanda, um paraíso de drogados, vive às turras com a permissão para o uso.
Por fim, essa permissão requer maior controle do Estado. Isso não dá urticária no liberal [8]?
Deve ser um sonho governar pessoas entorpecidas, adoecidas, abobalhadas e desumanizadas pelo efeito causado pelas drogas.
Mas, para refutar esses questionamentos, os progressistas utilizam o princípio da liberdade, ao passo que recorrem ao argumento “ad hominem” e apelam para a questão religiosa, para atacar aqueles que eles dizem que tentam usurpar a sua liberdade.
Voltando à questão da religião, vale à pena lembrar que a editora Simonsen, numa parceria com a ONG Estudantes Pela Liberdade (EPL), realizou campanha de “crowdfunding” pela kickante, para publicar o livro “Dissidente”, de Thomas Edward Woods Jr. [9], autor apresentado como membro-sênior do Ludwig von Mises Institute e editor da “Libertarian Papers”.
De posse dessas informações, podemos concluir que, minimamente, Woods é um liberal, o que torna mais interessantes suas considerações sobre a Igreja Católica, constantes num livro que, inclusive, rendeu uma série com 13 programas no History Channel [10], de quase 6 horas de duração. Eis um trecho de seu pensamento [11]:
Os conceitos que o catolicismo introduziu no mundo enraizaram-se tanto que até mesmo os movimentos contrários estão frequentemente impregnados deles. Murray Rothbard fez notar até que ponto o marxismo, uma implacável ideologia laica, foi buscar ideias religiosas nas heresias cristãs do século XVI. E os intelectuais da progressista era americana dos inícios do século XX, que se congratulavam por terem abandonado a sua fé (largamente protestante), continuavam a discorrer servindo-se fundamentalmente de um vocabulário claramente cristão.
Estes dados só reforçam o que já vimos: a Igreja Católica não apenas contribuiu para a civilização ocidental – a Igreja construiu essa civilização. É verdade que bebeu elementos do mundo antigo, mas fê-lo de um modo que transformou a tradição clássica, melhorando-a.
Ao que parece, a Igreja Católica é sim um dos pilares da Civilização Ocidental, junto com o Direito Romano e a Cultura/Filosofia Grega, e não é possível encontrar nenhuma teoria séria que afirme que os “bons selvagens” tenham criado essa Civilização anteriormente.
Então, vamos às considerações finais.
O objetivo era mostrar que, o fato de odiarmos algo ou alguém com todas as nossas forças, não nos capacita a sermos oráculos, não transforma em verdade o que pensamos ou falamos a esse respeito.
Palavras não devem ser jogadas ao vento, especialmente em relação a um tema de tamanha relevância. É preciso ter bagagem teórica para iniciar e permanecer na discussão, e, consequentemente, evitamos fazer o papel de tolos.
Essa bobagem já estava esquecida, mas depois que reli um trecho muito interessante da obra de Theodore Dalrymple, resolvi escrever o ensaio. Trata-se de algo simples, que todos sabemos, mas que é difícil ser dito, como bem lembrou um amigo [12]:
É comum que se pense que ter uma opinião sobre um assunto, algo que é ativo, é mais importante do que ter qualquer informação sobre aquele assunto, que é passivo; e que a veemência (sentimento) com que se sustenta uma opinião é mais importante do que os fatos (conhecimento) em que ela se baseia.
Não adianta falar grosso, falar muito e não dizer nada. O achismo aliado à inaptidão, à ignorância sobre determinado assunto, fruto da educação e da cultura que se deterioram a cada dia, talvez seja um dos grandes males do século.
É muito comum ver pessoas refutando questões complexas com um simples “eu acho”, “eu entendo”. Eu convivi com um advogado assim, que achava que as teorias de Direito que saíam de sua cabeça eram a legislação vigente ou a jurisprudência formada. Mas, há algo ainda pior: a utilização do temível “argumento kákáká” e do estupefaciente “argumento vai estudar” sem que uma única referência embase seu desacordo.
Isso é tão pueril quanto fugir do enfrentamento após atiçar uma discussão, ou tecer comentários que desqualificam temas, pessoas ou instituições, apenas por ser incompatível a coexistência entre eles e seus valores pessoais. Como um comunista pode falar do Deus católico, se a moral cristã vai de encontro a sua visão materialista?
Por fim, todas as vezes que um ateu, seja ou não liberal, resolve enaltecer sua ideologia diante de alguém que não partilha suas ideias, uma das saídas que utiliza é ligar o “automático” e fazer referência ao cristianismo com um toque (leve ou pesado) de menosprezo – sempre acompanhado da falta de conhecimento para além do MEC. É uma espécie de adaptação do “argumentum ad hitlerum” à Igreja de Jesus Cristo, que assanha a crítica destrutiva ou a ridicularização daquela que é a religião “mais facinha” de ofender, pela passividade de seus seguidores.
Talvez tenha passado da hora de elevar o tom e começar a rebater os detratores.

NOTAS




[1] Ideia retirada de uma tirinha de gibi, onde o personagem vai a um açougue e pede 1 kg de “lingui...”. O açougueiro, então, pergunta o porquê de não falar “linguiça”, e ouve como resposta: - Porque eu tenho pregui...;

[2] Essa proteção, infelizmente, está no papel, porque não foram poucas as vezes que militantes do movimento LGBT vandalizaram, atacaram e humilharam religiosos, dogmas, símbolos e locais de culto dos cristãos. Eles ainda chamam os religiosos de intolerantes, o que demonstra que o problema dos militantes é mental e moral. Um militante escalafobético chegou a dizer que pegaria em armas se preciso fosse, numa comissão no Congresso Nacional;

[3] O Plenário do STF, no HC 87.585/TO, reconheceu que o Pacto de San Jose da Costa Rica (ou Convenção Americana sobre Direitos Humanos) possui caráter de norma supralegal, tendo em vista que sua internalização no Brasil, pelo Decreto nº 678, de 06/11/1992, não seguiu o rito do artigo 5º, §3º, da CRFB/1988. Logo, hierarquicamente, está acima das leis e abaixo da Constituição Federal;

[4] A resposta começa nos 20 minutos da transmissão, aproximadamente (- 1:11:30). (Borges, Alexandre. Eleições Americanas – Trump! Transmissão ao vivo no perfil de Alexandre Borges no facebook, 10/11/2016, às 20h12m. Acesso em 12/11/2016);

[5] Um exemplo, no Brasil, foi o lobby do movimento LGBT para a edição da “Lei da Homofobia”. Dizia-se que a luta era pela liberação do casamento entre pessoas do mesmo sexo – quando já existia o instituto da união estável, que atendia à demanda. O real objetivo era promover o silêncio de líderes religiosos contra qualquer afronta à doutrina da fé cristã. A punição prevista era de crime inafiançável contra quem violasse direitos dos homossexuais, ou seja, a prisão do sacerdote que se negasse a realizar o casamento na Igreja Cristã, ou admoestasse uma dupla gay que fosse se beijar no templo ou no átrio. Outro exemplo, mas não tão escancarado, envolve as clínicas de aborto nos EUA, presentes nos bairros pobres, com o sugestivo nome de “planejamento familiar”. O que se busca, na verdade, é interromper o crescimento da população carente, especialmente a negra, já que a mentora intelectual, a eugenista Margareth Sanger, era envolvida com a Ku Klux Klan. (Conheça a feminista que defendia o aborto como meio de exterminar a população negra. Portal Conservador. Disponível em https://portalconservador.com/conheca-a-feminista-que-defendia-o-aborto-como-meio-de-exterminar-a-populacao-negra/. Acesso em 17/11/2016);

[6] Dentre as inúmeras matérias sobre o tema, separei essa: Entrevista do Dr. Valentim Gentil Filho ao programa Roda Viva da TV Cultura (a partir de 31’52’’), exibida em 04/11/2013. Disponível em http://tvcultura.com.br/videos/13381_valentim-gentil-filho-04-11-2013.html. Acesso em 25/09/2015;

[7] Favaro, Thomaz. Mudanças na vitrine. Veja.com, 05/03/2008. Disponível em http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/conteudo_272408.shtml. Acesso em 18/11/2016;

[8] Holanda endurece regras para uso de maconha nos cafés. Veja.com, 02/01/2012. Disponível em http://veja.abril.com.br/mundo/holanda-endurece-regras-para-uso-de-maconha-nos-cafes/. Acesso em 18/11/2016;

 

[9]DISSIDENTE, o novo livro de Thomas Woods. Campanha do Kickante encerrada em 02/08/2016. Disponível em https://www.kickante.com.br/campanhas/dissidente. Acesso em 17/11/2016;

 

[10] WOODS JR., Thomas Edward. A Igreja Católica: Construtora da Civilização. Youtube, 23/01/2013. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ng8dume3V6k. Acesso em 16/07/2014;

[11] WOODS JR., Thomas Edward. Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental. 8. ed. São Paulo: Quadrante, 2013, p. 206;

[12] DALRYMPLE, Theodore. Podres de mimados – As consequências do sentimentalismo tóxico. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 32.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista contista e, de certa forma, saudosista

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A um passo do início


Quincas apertou o passo quando a chuva aumentou significativamente. Sua cabeça ia a mil, longe dali, e sequer o incomodava a camisa colada ao corpo, tão molhada que estava. Andou três longos quarteirões sem marquises até chegar ao destino, pois Epaminondas negara a carona alegando atraso para encontrar Bianca, a “essa é para casar” da última semana.

Enquanto andava, prometia a si próprio que deixaria de ir às reuniões do Clube do Velório, formado vinte anos antes, no dia da morte por afogamento de Gaspar, amigo e ponto de referência dos nove participantes. Em homenagem ao morto, assumiram um compromisso eterno de amizade e mútua colaboração: na saúde e na doença, na tristeza e na alegria, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de suas vidas. O ambiente se tornara tóxico nos últimos anos.

A convivência e o propósito do grupo transformaram suas vidas. Foram anos de amizade intensa, influência do espírito agregador de Gaspar. Em determinado momento, porém, algo aconteceu e o viço se perdeu. Alguns passaram a se comportar estranhamente, outros viviam distantes. As presenças já não eram constantes e criavam-se querelas por motivos fúteis; os jogos de entretenimento passaram a ser apostados, o que acirrou ainda mais os ânimos.

Quincas havia sofrido um baque financeiro, a multinacional na qual ocupava um alto posto retirou as atividades do país. Tinha oportunidade de se mudar para a Suécia, mas preferiu ficar e não prejudicar os filhos, que não criavam raízes em razão das transferências regionais. Não era a primeira vez que se via desempregado, mas se sentia desconfortável por causa da idade.

Nunca havia socializado problemas nem pedido dinheiro ou favores a ninguém; buscava apenas apoio moral, mas fora-lhe negado. Como da vez anterior, quando faliu a rede de minimercados, Norberto e Epaminondas deram os primeiros sinais, e passaram a evitá-lo. À época, cogitou que fosse coisa de sua cabeça, mas ao vasculhar a memória admitiu que fizeram o mesmo com Aderbal, logo após ele perder as padarias e os postos de gasolina. Por sorte, não demorou muito para o confrade receber uma polpuda herança, e tudo voltar ao normal, deixando nítido que não era coincidência, e que certos confrades queriam apenas tocar projetos pessoais.

A grana, a maldita grana e o prestígio motivavam suas ações e considerações; e ao primeiro sinal de queda financeira de alguém, promovia-se um afastamento velado através da apresentação de desculpas como um novo amor; reclamações da esposa sobre as reuniões; problemas na ONG que administrava... Telefonemas ou mensagens eram solenemente ignorados.

E não ficava apenas nessa seara. Alguns confrades passaram a exigir insistentemente a indiscrição de outros, a fim de lhes extrair inconfidências sobre negócios e intimidades alheias. Seria inveja? Curiosidade doentia? Espionagem profissional? Ou apenas queriam tais informações para revelá-las em outros círculos, onde exibiriam suas boas relações?

O tempo teria os transformado... Gente louca!

Quincas sentia, mas não estava disposto a preservar algo que há muito deixara de existir. Resolveu se ensimesmar definitivamente. Quem realmente importava estava ao seu lado, o resto não faria falta. Em verdade, o resto não passava de resto pelas próprias circunstâncias. Amigo não é quem está junto a nós apenas na bonança, não reclama a satisfação de curiosidades inconvenientes nem exige que abandonemos nossos valores para alimentar suas idiossincrasias. O ambiente para mantermos relações de puro interesse é o meio profissional, onde, infelizmente, não há pudores.

Tais elucubrações o distraíram no trajeto até chegar a casa, onde não havia ninguém, pois estavam visitando sua sogra.

Tirou a roupa encharcada, tomou banho, esquentou leite, bebeu uma xícara e tentou descansar, mas não conseguiu. Uma sentença o atormentava:  idem velle, idem nolle. “Sim, os mesmos desejos e as mesmas aversões, é isso que constitui uma amizade sólida e verdadeira”, pensava.

*   *   *

Tempos depois daquele evento, sua vida voltou ao normal; conseguiu uma atividade rentável, em um estado bem distante, onde havia morado pouco tempo antes de voltar à cidade natal.

Voltou de mala e cuia; a família adorou o retorno. Não encarava como um fardo a sua atividade laboral e seguia diariamente para a empresa como o homem mais feliz do mundo, ciente de sua capacidade intelectual e escravo das prioridades que traçou para sua vida.

Fez uma completa depuração; deletou definitivamente a Confraria de sua vida, e sequer desculpava a ausência se um confrade cobrava uma visita — não havia um parente vivo a justificar seu retorno ao estado de origem.

Passou a ser exigente na escolha de amizades e estava disposto a evitar fadigas, não se permitindo agradar a ninguém a custa de sua paz de espírito.

Em seu novo lugar no mundo, celebrou amizades verdadeiras e bem estruturadas, nos termos daquela preciosa sentença. Encarou desafios, criou novos hábitos, aprendeu coisas novas que mudaram o seu ser.

Quando os filhos já estavam criados e seguindo suas vidas, ele já dava valor a coisas que jamais haviam chamado sua atenção anteriormente, como ver o simples pôr-do-sol na praia ou ler um clássico da literatura universal.

 

 Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, um saudosista.