quarta-feira, 30 de março de 2016

Flamenguinho


Gordinho era apaixonado por futebol, e desde que se conhecia por gente acompanhava as partidas do clube de coração ao lado do pai, num tempo do famoso videoteipe, quando a TV transmitia o jogo horas depois de finalizado. Sonhava em montar um time de futebol e, unindo vários úteis e agradáveis, sempre que alguém perguntava que presente gostaria de ganhar, era enfático:
- Uma camisa do Flamengo!
- Mas, você já não tem muitas?
- Sim, mas eu vou fazer um time de futebol com elas.
Enquanto ganhava umas, outras ficavam curtas e apertadas. Conseguiu juntar 5 camisas, cada uma diferente da outra – era o que dava para fazer. Os números foram feitos com cadarço branco de tênis costurados nas costas. E, então, ele e uns amigos de infância formaram um grupo para jogarem juntos quase todos os dias.
Passado algum tempo, um contratempo: o time acabou desfalcado do melhor jogador, que era uma menina. Como estavam crescendo, surgiram as diferenças características dos sexos e, por motivos óbvios – e para a tristeza geral –, deu-se a aposentadoria precoce de alguém insubstituível.
Chegou um dia que o parceiro que dividia com a “recém-aposentada” o título de melhor jogador do time, falou em disputar o campeonato que aconteceria no clube onde jogavam sempre que sobrava algum dinheiro. Precisavam montar o "elenco", pois alguns abandonaram o projeto porque a grana era curta e não tinham como pagar a taxa cobrada.
A distância impediu que um vizinho da sua avó participasse, mas vieram outros jogadores pontuais.
A estreia foi terrível, um inacreditável 0x0 num jogo de futebol de salão. Era para dar tudo errado com aquele grupo de meninos sem um técnico, com roupas desiguais, que tiravam a camisa suada para o substituto vestir e entrar em quadra.
Para piorar, na rodada seguinte tomaram de 5x1 com direito a olé e tudo, daquele que seria o campeão do 1º turno, um time que voava em campo, com jogadores fortes e experientes, e que tinha um técnico e dono.
Vendo Gordinho triste, seu pai perguntou o que estava acontecendo. Ele respondeu que seu time estava meio desengonçado e tinha tomado uma goleada. Queria disputar o campeonato, mas de forma digna, e não servir de saco de pancadas.
Seu pai, que havia jogado no juvenil de times profissionais, decidiu tomar a frente, e já no próximo jogo veio a vitória tranquilizadora: 3x0.
Após algumas observações, seu pai viu que o time daria certo. Havia 2 atacantes excelentes – curiosamente, um deles tinha o talento, mas não o prazer de jogar futebol; preferia estudar, o que era algo raro naquela época. Os outros eram bons jogadores, mas faltavam peças para a defesa. Essa era a falha.
Como não havia técnico, jogadores com características ofensivas paravam na defesa. Apenas 2 possuíam características defensivas – um deles era Gordinho, o mais novo do grupo.
A linha estava formada, mas ainda faltava um goleiro, já que os meninos se revezavam na posição. Então, vieram 2 irmãos para fechar o gol. Com o time fechado, o pai, agora técnico, conversou com a esposa e juntos compraram um jogo de uniforme completo. Por uma boa causa gastaram um dinheiro que faria falta, e o único time que não tinha um jogo de camisas era agora o mais bem vestido, com meiões, shorts e camisas novas. E do Flamengo...
O time melhorou e chegou em 3º lugar no 1º turno, mas foi insuficiente para a classificação na final.
No 2º turno venceu o Miragem, campeão do 1º turno, por 2x1, demonstrando grande evolução. Não sofreu derrota, mas por questões técnicas ficou atrás do Frenético, vice-campeão do 1º turno e agora campeão do 2º turno.
Nas finais, cruzariam o campeão do 1º turno com o vice do 2º turno e o campeão do 2º com o vice do 1º. O Frenético descansou porque teria que enfrentar a si próprio. Já o Flamenguinho enfrentaria pela 3ª vez o Miragem, para o qual tomara a única goleada no campeonato e que estava entalada na garganta.
O jogo foi emocionante e, para a grande alegria de Gordinho e seus amigos, a goleada foi devolvida. Incríveis 5x1 no Miragem, com direito a confusão entre os jogadores do time adversário e tudo.
Veio a final. Um jogo disputadíssimo. O Flamenguinho perdeu de 2x1 por duas falhas tolas, mas o outro era o grande time do campeonato e fez jus à vitória. Ao Flamenguinho restou a defesa menos vazada do campeonato.
Como a criança não assimila facilmente a derrota, muitas lendas foram criadas: fulano entregou o jogo; havia espiões na “concentração”; Gordinho (que não falhou naquele jogo) só jogava porque era dono das camisas... Ora, ele criou o time e não havia nenhum outro jogador que o substituísse em sua posição. Era o mais novo de um campeonato que disputou bravamente, com 11 anos, entre crianças mais velhas, pois a idade limite era de 14 anos na linha e 15 anos no gol. A diferença de 2, 3 e até 4 anos é muito aguda nessa fase da vida.
O mais irônico (ou triste) é que no dia da premiação ele recebeu o troféu e 3 passos depois tropeçou, caiu e quebrou-o em duas partes.
O organizador do campeonato, responsável pelo clube, sorriu e disse para não se preocupar que daria um jeito – o que nunca aconteceu, mas suas palavras impediram a tristeza no momento que era para ser de alegria. Afinal, 14 times disputaram o campeonato e apenas um era melhor.
Os pais de Gordinho proporcionaram a ele o ano mais feliz de sua infância e pré-adolescência, e hoje ele fica assombrado pelo fato de seu filho não apenas não acompanhar, mas ser totalmente desinteressado por futebol. A vida nas grandes cidades e nos apartamentos tirou muito isso das crianças, e parece ser algo irreversível.
Gordinho vai ter que buscar, com sua esposa, outra forma de dar ao filho o ano mais feliz de sua vida.
Ah! Uma coisa ele lembra com muito orgulho: a camisa 10 do Flamenguinho era dele, porque era a de Zico, seu ídolo, o melhor do mundo que jogava no maior do mundo.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista



quinta-feira, 10 de março de 2016

Quando a Democracia pode ser a ditadura da maioria contra a minoria, o Brasil ainda consegue fazer pior (ou Sobre a Democracia II)


Em “Fragmentos do que li de Hayek em ‘O caminho da servidão’ (ou Sobre a Democracia I)[1], tratei brevemente da possibilidade de uma democracia tomar feições de uma ditadura da maioria sobre a minoria. Citando Hayek, apontei que o que vai ditar se o Estado é democrata ou totalitário é o grau de liberdade e igualdade gozado pelo povo. Já nesse ensaio, vou analisar a “democracia à brasileira”, na qual a maioria elege representantes que não a representam, pois formam uma minoria que atua em prol de sua própria ideologia e contra o que pensa e espera a maioria que deveria representar. Difícil? Vamos lá, então.
Antes, porém, vou denunciar uma prática muito comum de utilizar a linguagem como instrumento para manipular (e convencer) o público [2], como o termo democracia nominando países totalitaristas como a República Democrática do Congo e a República Popular Democrática da Coreia (do Norte).
Voltando ao Brasil, como explicar que um povo de maioria conservadora [3] seja manipulado por uma minoria cuja prioridade é imprimir seu padrão ideológico através de ataques frontais aos valores conservadores? Que objetiva implantar um regime de moldes totalitaristas de economia planificada?
A quase totalidade dos políticos atuantes é formada por progressistas de viés esquerdista que agem com astúcia para promover as transformações planejadas por Marx e pensadores de teorias paralelas. Mas, é pouco crível que um adepto consciente da filosofia conservadora, que (i) reconhece os valores das instituições; (ii) entende que tudo o que deu certo até aqui deve ser preservado, e não mudado apenas pela mudança; e (iii) acredita em valores morais, na propriedade e na família, elegeria, “sponte sua”, essas pessoas para cuidarem da educação, da saúde, da segurança, da economia e ditar os rumos do país.
Acontece que eles se aproveitam da ingenuidade e da baixa capacidade crítica de grande parte dos membros da sociedade. Através de propagandas mentirosas (como “precisamos de educação” enquanto sucateiam cada vez mais a educação), apresentam um modelo de mundo utópico, cor-de-rosa, onde “retrógrados e maus” devem ser vencidos por quem prega o bem da humanidade. Esquecem, logicamente, de dizer que há sempre muitos mortos e pessoas escravizadas em países que vivem o processo revolucionário. Anunciando que sabem o que é melhor para o mundo, enquanto querem é ter vidas confortáveis à custa alheia, eles defendem o progresso apenas pelo progresso, e atropelam os sentimentos do povo cuja maioria é conservadora e não está interessada em seu “produto”. Surge, então, um conflito.
O trabalho de convencimento geral requer a execução de um processo de subversão dos valores da sociedade, que começa na ocupação de espaços por intelectuais orgânicos forjados, anos a fio, especialmente nas universidades, a partir da massificação da ideologia marxista, seguindo a diretiva de Gramsci. Ao mesmo tempo, nas camadas mais baixas da sociedade, criam coletivos e fazem a pregação do ódio, instigado pela polarização do debate (o “nós contra eles”), para promover a divisão da sociedade em fatias, seguindo a tática de Sun Tzu (“dividir para conquistar”) [4]. E por esse caminho as ideias de Estado forte e planificação do pensar, do falar, do sentir, do agir, do produzir e do consumir tomaram conta da academia, dos veículos de informação e de entretenimento, e das editoras, com investidas até sobre as religiões.
Sempre à base de muita propaganda ideológica e da asfixia de ideologias contrárias, seguem arrebanhando adeptos na transição do processo revolucionário. Mas, a boa notícia é que essa forma fraudulenta de fazer política e conduzir o destino da nação ainda não conseguiu subverter totalmente a mentalidade do brasileiro, apesar de causar estragos.
Eles ainda contam com mecanismos democráticos que permitem a eleição de adeptos de um pensamento político-filosófico diametralmente oposto ao de seus eleitores. Para Alexandre Borges, há falta de candidatos do espectro político da direita [5]. Porém, esse fato atípico, que caminha “pari passu” com o “paradoxo de Garschagen” (o brasileiro odeia os políticos e entrega o Estado que adora nas mãos desses mesmos políticos odiados para o administrarem [6]), pode ser explicado pelo costume do brasileiro de votar em pessoas, e não em ideias, revelando total desconhecimento da orientação de políticos e dos programas partidários, dispensando, assim, um fator de muito interesse da sociedade. Na ampla maioria das vezes o voto é entregue a qualquer um circunstancialmente conhecido, por quem se nutre empatia ou se deve algum favor. A atuação política do candidato (projetos, votos contrários e favoráveis) é irrelevante.
O sistema de eleições proporcionais, utilizado na escolha de representantes do Legislativo nos cargos de deputado federal, estadual e distrital e de vereador (todos responsáveis por elaborar e votar as leis, e adstritos ao âmbito em que foram eleitos), permite que candidatos que não alcançaram a votação mínima para conquistar o cargo possam assumi-lo.
Segundo o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Santa Catarina [7], o sistema proporcional foi criado para que o eleitor, ao votar num candidato, informe que se sente representado pela ideologia de sua legenda (composta pelo partido ou coligação). Os votos serão submetidos ao cálculo de quociente eleitoral, que é obtido a partir da “divisão do número de ‘votos válidos’ [de toda a eleição] pelo de ‘vagas a serem preenchidas’”. Encontrado o “número mágico”, será feita a soma total de votos da legenda e o número achado será dividido pelo “número mágico”, estipulando quantas cadeiras cada legenda ocupará. Os cargos serão distribuídos pelos candidatos mais votados, segundo o número de cadeiras da legenda, tenham eles, individualmente, alcançado ou não o “número mágico”, pois as sobras dos colegas de legenda poderão ser computadas a seu favor.
Ficção maior impossível. Mormente porque é comum que os políticos atuem contrariamente à plataforma de seu partido, tenham convicções distintas das dos seus correligionários e vez por outra abandonem o partido, transitando na extrema-esquerda, na centro-esquerda ou no centro [8]. Sem contar as dificuldades do eleitor em assimilar esse sistema.
Como prova desse absurdo, em 2014, apenas 35 dos 513 deputados federais, o equivalente a 6,8%, alcançaram votos necessários para ocuparem a cadeira [9], enquanto 478 deputados (a grande maioria) foram guindados aos cargos através desse sistema. Significa dizer que, não fosse o antidemocrático mecanismo do quociente eleitoral, não estariam eles autorizados a tomar medidas que vão de encontro à vontade e à visão de mundo do eleitor, conspirando contra ele, pois sequer se preocupam em criar partidos para atender ao pensamento corrente entre a maioria do povo, de quem o poder emana. Tanto que, dos 35 partidos existentes atualmente, o único autodeclarado do espectro da direita, e mesmo assim apenas liberal, é o Partido Novo.
Ora, se a democracia é um sistema político que dá voz à maioria, no Brasil não há democracia, uma vez que: (i) há pouquíssimos políticos conservadores, o que é inversamente proporcional ao percentual de adeptos dessa filosofia entre o povo; (ii) não possui um único partido genuinamente conservador; e (iii) pelo sistema proporcional, vários candidatos ocupam cadeiras sem terem sido escolhidos diretamente, mas por força de mecanismos legais.
Essas circunstâncias admitem a conspiração contra o pensamento majoritário. E isso é fato, pois os progressistas de viés esquerdista vêm amoldando o ordenamento jurídico a seu talante, como fez FHC e continuaram Lula e Dilma.
Voltando ao domínio da linguagem, o que mais se lê e ouve por aí é que a elite conservadora, coxinha, fascista e golpista é reacionária porque não adere às ideias progressistas que esses seres iluminados pretendem impor à maioria. Como já foi explicado, embora representem a minoria, estrategicamente são maioria na política. E eles não aceitam somente ser a maioria na política. Para levarem a cabo o projeto totalitarista típico dos regimes desse jaez, lutam pela total hegemonia, nem que para isso seja preciso desqualificar grupos e pessoas, criar cismas, destruir reputações.
A última coisa que passa pela cabeça dessas pessoas é honrar os votos que lhes foram confiados, e para exemplificar a falta de sintonia entre representantes e representados, temos o Estatuto do Desarmamento e a inimputabilidade penal de menores. Embora o povo tenha demonstrado inúmeras vezes seu amplo e total descontentamento com a atual legislação, cobrando medidas para que se promova a alteração, continuam impondo-a goela abaixo da sociedade.
Finalmente, cumpre indagar: Que raios de democracia é essa a praticada no Brasil, se nem a vontade da maioria prevalece?
Respondo. É aquela que admite a falta de compromisso com a promessa de campanha, o desconhecimento da orientação filosófica e da atuação política dos candidatos e dos objetivos dos partidos, seja por preguiça, pela falta de divulgação ou por incapacidade crítica; aquela que sofre com o quociente eleitoral que “põe pra dentro” candidatos não eleitos diretamente pelo povo, e convive com a venda ou troca de votos por tijolos, sacos de cimento etc. Mas, acima de tudo, vale repetir, é aquela que convive com o excesso de poderes que a elite dirigente não se cansa de avocar para si, e em porções cada vez maiores, criando situações esdrúxulas como a eleição de representantes que não representam os representados porque, ao contrário do pensamento que norteia esses últimos, os primeiros se preocupam em transformar um Estado cujo povo é conservador num Estado totalitário socialista, que retira a liberdade e paulatinamente encaminha à escravidão todo aquele que viver em seu território.

NOTAS
[1] Peixoto, Fernando César Borges. Fragmentos do que li de Hayek em “O caminho da servidão” (ou Sobre a Democracia I). Blog Impressões e confissões expressas, 03/03/2016. Disponível em <http://fernandopeixotoes.blogspot.com.br/2016/03/fragmentosdoquelidehayekemo.html>. Acesso em 03/03/2016;
[2] Excelente texto sobre o tema é o de Quintás, do qual podemos retirar alguns excertos: “Numa democracia as coisas não são fáceis para o tirano. Ele quer dominar o povo, e deve fazê-lo de forma dolosa para que o povo não perceba, pois, numa democracia, o que os governantes prometem é, antes de tudo, liberdade. Nas ditaduras se promete eficácia à custa das liberdades. Nas democracias se prometem níveis nunca alcançados de liberdade ainda que à custa da eficácia. Que meios um tirano tem à sua disposição para submeter o povo enquanto o convence de que é mais livre do que nunca? Esse meio é a linguagem. A linguagem é o maior dom que o homem possui, mas também, o mais arriscado. É ambivalente: a linguagem pode ser terna ou cruel, amável ou displicente, difusora da verdade ou propagadora da mentira. A linguagem oferece possibilidades para, em comum, descobrir a verdade, e proporciona recursos para tergiversar as coisas e semear a confusão. Basta conhecer tais recursos e manejá-los habilmente, e uma pessoa pouco preparada mas astuta pode dominar facilmente as pessoas e povos inteiros se estes não estiverem de sobreaviso”. E o autor ainda lembra Stalin: “De todos os monopólios de que desfruta o Estado, nenhum será tão crucial como seu monopólio sobre a definição das palavras. A arma essencial para o controle político será o dicionário”. (Quintás, Alfonso López. A Manipulação do Homem através da Linguagem. Disponível em <http://www.hottopos.com/mp2/alfonso.htm#>. Acesso em 23/07/2015);
[3] ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007;
[4] TZU, Sun. A arte da guerra. Porto Alegre: L&PM, 2014;
[5] “É perfeitamente possível aceitar que mais de 70% dos brasileiros estão ideologicamente no centro, centro-direita e direita. Na matéria, o jornal ainda comete o absurdo de dizer que ideologia ‘não se traduz em voto’ porque o brasileiro, mesmo sendo de direita, não vota em candidatos de direita. O jornal só deixa de mencionar mais explicitamente que o Brasil não tem candidatos de direita, o que invalida a conclusão. (...) O povo hoje só não vota na direita porque não tem alternativa. A política brasileira é a negação do livre mercado até nisso: os ‘consumidores’ gritando por um produto e todos os vendedores oferecendo outro, completamente diferente, e que só uma minoria engole com prazer”. (BORGES, Alexandre. A verdadeira cabeça do brasileiro. Reaçonaria, 30/10/2013. Disponível em <http://reaconaria.org/colunas/alexandreborges/a-verdadeira-cabeca-do-brasileiro/>. Acesso em 07/03/2016);
[6] GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo... Rio de Janeiro: Record, 2015;
[7] TRE-SC. Eleições majoritárias e proporcionais. Disponível em <http://www.tre-sc.jus.br/site/eleicoes/eleicoes-majoritarias-e-proporcionais/>. Acesso em 25/02/2016;
[8] Nessa linha de sempre algo pior pode surgir. O PSD, refundado por Gilberto Kassab, assim se remeteu à ideologia do partido: “Ele não será de direita, não será de esquerda, nem de centro... Nem contra, nem a favor, muito menos pelo contrário” (http://noblat.oglobo.globo.com/editoriais/noticia/2011/04/psd-golpe-na-fidelidade-partidaria-373918.html, acesso em 29/02/2016). A contradição também é demonstrada em sua página, já que, ao falar de princípios e valores, o partido se diz defensor da iniciativa e da propriedade privadas e da economia de mercado, enquanto contraditoriamente é defensor de um Estado forte (http://psd.org.br/principios-e-valores/, acesso em 29/02/2016). A desfaçatez é tamanha que Kassab, logo após refundar o PSD, cujo objetivo era diminuir o DEM – oposição ao PT (situação à época) –, tentou refundar outro partido, o PL, agora com o intuito de diminuir o PMDB, empreitada que ainda não logrou êxito (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1607874-kassab-nega-articular-criacao-de-nova-sigla-mas-nao-descarta-fusao-com-psd.shtml, acesso em 29/02/2016 );
[9] SARDINHA, Edson. Só 35 deputados se elegeram com a própria votação. Congresso em Foco, 06/10/2014. Disponível em <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/so-35-deputados-se-elegeram-com-a-propria-votacao/>. Acesso em 29/02/2016.


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vila Velha e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória.

domingo, 6 de março de 2016

O leitãozinho



Eram tempos felizes, apesar do ambiente belicista em razão da tomada do poder pelas Forças Armadas, para conter o processo de comunização do Estado brasileiro, já que alguns terroristas, que se autodenominavam revolucionários, queriam implantar no país uma ditadura do proletariado.
Seu Cláudio e dona Hortência se mudaram com os filhos Ricardo, Renata e Fernando para uma vila charmosa, de aparência bucólica que, por questões geográficas, isolava-se do frenesi da cidade que crescia a olhos vistos.
Em poucos dias já estavam inteirados com os vizinhos, e daí para se transformarem em amigos foi um pulo.
As crianças tinham novos amigos, a esposa com quem dividir as conversas e o Seu Cláudio arranjara parceiros para as serestas e farras dos fins de semana. Eram reuniões familiares, diga-se.
Um dos moradores da Vila era o Joaquim, que puxava de uma das pernas por problemas de nascença, mas que não se sentia inferiorizado por isso. Seus pais o haviam criado para enfrentar a vida de cabeça erguida e ele assimilou. Assimilou até demais, porque o danado aproveitava quando seus pais, mais idosos, já estavam dormindo, para chamar os vizinhos para pularem o muro de trás de sua casa e furtarem uma penosa para fazer tira-gosto. É que quando os quitutes trazidos pela turma começavam a acabar, elegiam uma vítima para fornecer o alimento que os ajudaria a esticar a noite. Geralmente quem não estivesse participando da brincadeira no dia. Era batata! Não havia carne em congelador, frango no quintal ou biscoito na despensa que superasse a mira dos festeiros.
Certo dia, Joaquim resolveu fazer uma arte maior. Chamou o Cláudio e o Agnaldo para furtarem juntos, um leitãozinho de um menino que andava de muletas e todas as tardes passava com vários porquinhos que recolhia para sua casa, que ficava depois de um areal que havia próximo à vila.
Foi o que fizeram na sexta, para que no sábado pudessem começar cedo e acabar bem tarde, varando a madrugada com serestas, brincadeiras e contando causos.
Pediram à dona Antônia, que tinha morado numa fazenda quando mais nova, para matar o suíno. Depois de realizado o serviço, foram distribuídos os pernis pelas casas. Numa época em que cada um possuía uma geladeira simples, e na qual geralmente não havia espaço sobrando, seu Gaspar, que era o violeiro do grupo e solteiro, permitiu que duas peças fossem parar em sua geladeira.
Apesar da quantidade de pessoas, era muita carne, e então decidiram que as duas da geladeira do seu Gaspar ficariam para o convescote da próxima semana.
A carne foi assada, a festa foi das mais animadas, e todos ficaram satisfeitos.
Quem ficou mais animada ainda foi a dona Antônia, que passou a mão num dos pernis que estava reservado para a semana seguinte e saboreou a tenra carne na semana todinha.
Quem não ficou animado foi o menino das muletas que, choroso, relatou no boteco do Vilmar que havia procurado, sem sucesso, e em tudo quanto é canto, o leitãozinho que sumiu e já estava vendido ao farmacêutico.
Seu Cláudio ficou sabendo e, jurando nunca mais participar daquele tipo de brincadeira, pediu a alguém para entregar o dinheiro ao rapaz, sem fazer alarde, para que ninguém fosse descoberto.
Ele foi perdoado por sucumbir ao remorso que lhe corroía e não deixar o rapaz no prejuízo.
Joaquim foi perdoado por seus pais, que sabiam que ele afanava as galinhas – a mentira tem pernas curtas.
Dona Antônia também foi perdoada, pois “ladrão que rouba ladrão” tem cem anos de perdão.

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista

quinta-feira, 3 de março de 2016

Fragmentos do que li de Hayek em “O caminho da servidão” (ou Sobre a Democracia I)


As necessidades inerentes a cada grupo, a cada indivíduo, dificilmente serão, todas elas, captadas e assimiladas por uma única pessoa, que poderá estar ciente dos próprios anseios e, no máximo, dos de seus parentes e amigos mais próximos – e até, vá lá!, dos mais distantes –, mas o alcance é limitado.
Na democracia, tais pessoas, com suas limitações, são eleitas para representar politicamente a população. E como é impossível chegarem a um consenso em plenário, para atender a todos esses anseios (os próprios e os dos representados – como realmente deveria ser), com vistas a evitar discussões estéreis que não levam a uma conclusão, delegam poder a comissões, em verdade constituídas de representantes dos representantes, para deliberarem sobre certos temas que irão regular a vida de todos.
Essa concentração de poder em poucos representantes vai muito bem no que diz respeito às questões gerais, mas é péssima no que tange à resolução de questões específicas, dada a enormidade de demandas, inclusive contraditórias.
Mas, apesar de longe do ideal, é dessa forma que se convencionou o exercício da democracia, cujo conceito é dado por Aderson de Menezes [1]:
Democracia “é o ambiente em que um governo de feitio constitucional garante, com base na liberdade e na igualdade, o funcionamento ativo da vontade popular, através do domínio da maioria em favor do bem público, sob fiscalização e crítica da minoria atuante”.

Seria impossível estabelecer uma democracia pós-moderna em que o poder fosse exercido diretamente, com o voto de todos. Mas, esse não é o pior dos mundos.
Luiz Felipe Pondé, citando Tocqueville, afirma que “a sociedade democrática pode se tornar uma tirania da maioria”. E após lembrar que o autor foi “mais longe, ao tratar da questão da qualidade dessa maioria”, traça um paralelo com a obra de Nelson Rodrigues, que disse: “a maioria é constituída de idiotas[2].
Num modelo ideal, para ser bem representada, a maioria formada deve ser capaz de entender o cenário sócio-político-econômico e de cobrar de seus representantes discernimento e compromisso com as pautas de quem os elegeu, em busca do melhor para todos. E não para por aí. Cabe à minoria, ao menos, ser capaz de identificar possíveis descompassos na condução dos interesses comuns a fim de exercer seu direito de fiscalizar e de formular críticas.
Como essa realidade está muito longe de acontecer, o ambiente democrático acaba contaminado, abrindo espaço para a prática de arbitrariedades e para o desvio de objetivos. É por isso que somos submetidos a leis que atendem (direta ou indiretamente) mais aos interesses da classe dirigente que os da população.
Hayek também nos leva à reflexão nessa temática [3]:
... [A] ênfase desmedida no valor da democracia é responsável pela crença ilusória e infundada de que, enquanto a vontade da maioria for a fonte suprema do poder, este não poderá ser arbitrário. (...)
Não é a fonte do poder, mas a limitação do poder, que impede que este seja arbitrário.

Não basta acreditar que o simples fato da maioria eleger seus representantes garantirá o cumprimento de compromissos assumidos em nome da democracia.
A liberdade e a igualdade inseridas no conceito de Aderson de Menezes irão impor limites ao poder para que não sejam cometidas arbitrariedades em plena democracia, como lembrou Hayek. Com efeito, o poder popular é o “patrão” num ambiente democrático; e é na medida dos direitos e liberdades individuais concedidos para formação do “contrato social” que está a solução para frear os abusos da democracia. Esse contrato que não comporta cláusulas leoninas que submetam os atores da sociedade às migalhas concedidas pelo Estado forte, invasivo, com referendo da elite dirigente. Isso, infelizmente, é corriqueiro em Estados cuja democracia é mais frágil.
Hayek, sobre a liberdade, ensina que [4]:
O estado no qual o homem não está sujeito a coerção pela vontade arbitrária de outrem é frequentemente chamado de liberdade “individual” ou “pessoal”. (...)
A tarefa de uma política de liberdade deve consistir, portanto, em minimizar a coerção ou seus efeitos negativos, ainda que não possa eliminá-la completamente.
Assim, o significado de liberdade que adotamos é, aparentemente o significado original da palavra.

De acordo com Marcelo Novelino, o princípio da igualdade surgiu em sua concepção formal, segundo a qual todos os homens são iguais, sem importar “o conteúdo do tratamento dispensado e nem as condições ou circunstâncias de cada indivíduo”. Porém, a partir do Estado social, “a crescente intervenção estatal nas relações sociais, econômicas e culturais veio acompanhada por uma releitura do princípio da igualdade”. Verificou-se, que a concepção formal era “insuficiente para definir quem deveria receber tratamento igual ou desigual e em que medida isso deveria ocorrer”. Surgia a concepção material de igualdade para não mais “permitir diferenciações arbitrárias e injustas[5]. Já Nelson Nery e Rosa Maria de A. Nery, ao tratarem do princípio da igualdade, recorreram ao voto do Min. Celso de Mello, do STF, no MI 58/DF, com destaque para o seguinte excerto [6]:
Esse princípio (...) deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios, sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei (...) constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório.

Evitar desequilíbrios a partir da igualdade material, aquinhoando igualmente os iguais e de forma desigual os desiguais, motiva discussões uma vez identificadas discrepâncias (o que não é raro) nas relações havidas em sociedade. Esse mecanismo do Estado Social, que não acaba com as incertezas e gera tensões, na realidade dão sustentação para que o Estado cada vez mais abuse da ingerência nas relações privadas, na vida do indivíduo, ao argumento de evitar ou diminuir conflitos.
A experiência demonstra que não há filantropos na política, e os que lutam pelo poder nunca se satisfazem, querendo sempre mais, não importando se vão ou não extrapolar os limites dos poderes que lhes foram concedidos.
Há resquícios de autoritarismo no país onde o poder popular é desprestigiado por pseudo-democratas que, velada ou escancaradamente, atuam em prejuízo de todos, firmando acordos escusos que desfalcam os cofres públicos, e ainda exigem, num segundo momento, que os próprios prejudicados paguem a conta. Também há resquícios de autoritarismo no país onde o empresariado amigo recebe vantagens – e também regimes totalitários estrangeiros, alinhados às forças políticas –, enquanto a população se vê desassistida dos serviços mais básicos. Por fim, há resquícios de autoritarismo quando a elite política é responsável pela falência política, econômica e moral do país.
Partindo dessa premissa, e diante dos acontecimentos recentes envolvendo os ocupantes do poder em países participantes do Foro de São Paulo, e em especial o Brasil, onde há uma cultura intervencionista que cresce paulatinamente e onde a cada dia surgem novas notícias de corrupção, abusos e crimes diversos, pode-se seguramente afirmar que a democracia há muito tempo deixou de ser o regime de governo. Mudanças profundas devem ser realizadas e o poder devolvido ao titular, que, segundo a Constituição Federal de 1988, é o povo, nos termos do seu artigo 1º, parágrafo único [7].


NOTAS
[1] MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1996, pág. 277;
[2] COUTINHO, João Pereira, PONDÉ, Luiz Felipe e ROSENFIELD, Denis. Por que virei à direita. São Paulo: Três Estrelas, 2014, pág. 71;
[3] HAYEK, Fredrich August von. O caminho da servidão. 6. ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pág. 86;
[4] HAYEK, Fredrich August von. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1983, págs. 4-5;
[5] NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, págs. 376-377;
[6] NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada... 2. ed. São Paulo: RT, 2009, pág. 235;
[7]Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vila Velha e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória.

quarta-feira, 2 de março de 2016

O candidato na curimba


Era o filho mais novo de Célio e Lavínia, um operário e uma dona de casa que, para complementar a renda familiar, vendia doces caseiros em casa e enviava os filhos menores pela vizinhança para venderem as iguarias em tabuleiros, de porta em porta. Francisco, o herói da história, era um deles. Já os irmãos mais velhos, estavam todos empregados nas fábricas próximas de casa.
Ao completar 21 anos de idade, Francisco, que sempre fora inteligente e aplicado, resolveu se candidatar a vereador, atendendo aos pedidos dos amigos que o convenceram que seu bairro precisava ter um representante político.
Era 1954 e, diferentemente dos irmãos, ele trabalhava numa repartição pública do Distrito Federal, quando começou a assimilar aquela ideia, que tomou corpo.
O partido escolhido não possuía representatividade, mas lá se ia com os amigos, todos animados, fazer propaganda boca-a-boca. Participava de bailes, festas, bingos, leilões... Em qualquer clube, Paróquia ou templo em que comparecesse dava um jeito de ser anunciado.
Um de seus amigos trabalhava numa gráfica, onde conseguiram um grande desconto para fazer material de panfletagem. O dinheiro foi arrecadado através de vaquinha, e Zeca, seu cabo-eleitoral, imprimiu quantidade muito superior à encomendada, arriscando seu emprego.
À noite, saíam pela cidade colando os panfletos com uma goma feita a de água e farinha de trigo, em postes, muros e até no lombo de burros que porventura dessem sopa pelo caminho.
Mas, apesar de conhecido e bem quisto, sua campanha não decolava. Não tinha marqueteiro, e como não era rico (nem seus amigos), não conseguia penetração na elite da Cidade, o que seria vital para deslanchar a candidatura.
Um dia estava desanimado no trabalho quando o chefe do setor, homem de família conhecida e abastada, perguntou como andavam as coisas para o pleito e ele respondeu que estava quase desistindo, pois os votos de conhecidos e de moradores do seu bairro seriam insuficientes para garantir a cadeira na Câmara.
Então, o Doutor Camilo falou:
- Francisco, você quer mesmo ser vereador? Vou conseguir muitos votos para você. Espere aqui um pouquinho.
E saiu, voltando após o almoço para perguntar se Francisco teria compromisso na próxima sexta-feira. Ele disse que iria à casa da noiva, mas que poderia desmarcar porque ela incentivava sua campanha.
O Doutor Camilo passou um papel com um endereço e falou:
- Esteja lá antes das dez da noite. Depois que o portão é fechado ninguém mais entra, ninguém mais sai.
Não falou mais nada. Saiu apressado, firmando sua bengala com força no chão e dando passos firmes, fazendo um barulhão no assoalho.
Francisco leu o endereço e viu que ficava do outro lado da cidade. Pensou como iria fazer para voltar de lá. O compromisso começava às 22h e o último bonde passava antes de meia noite em frente à sua casa, para encerrar o expediente no pátio. E só voltaria a funcionar no dia seguinte, às seis da manhã.
Como não queria ir sozinho, chamou seu amigo Aldair para fazer companhia, mas não soube informar o que funcionava no local.
Na sexta-feira os dois deixaram as noivas em casa e seguiram alegres para aquele endereço misterioso. Depois de uma longa viagem, chegaram ao destino – num bairro nobre –, e alcançaram a rua anotada no papel que lhe fora entregue.
Havia uma ladeira no final da rua, mas assim que chegarem ao início da subida viram o número num extenso muro branco com um portão largo de ferro, que terminava com lanças afiadas.
Ao chegarem ao portão, foram recebidos por um negro muito alto e forte, todo vestido de branco, que educadamente respondeu que aquele era o endereço que procuravam – o Terreiro do Pai Cipriano de Oxóssi.
Francisco e Aldair se entreolharam surpresos, com vontade de rir, porque não tinham a menor noção de que o Doutor Camilo, que Aldair também conhecia, frequentava um Terreiro de Candomblé.
Eram outros tempos...
Os dois eram de famílias de católicos fervorosos, mas deixaram pra lá. Já estavam ali mesmo, iriam entrar... Pensaram que valeria à pena pela campanha.
Depois de informarem quem os convidou, foram encaminhados para o interior do imóvel. Passaram por um quintal enorme até chegarem a uma construção nos fundos, onde se acotovelavam várias pessoas que aguardavam para entrar e se encaminhar à assistência. Todos os médiuns estavam lá dentro, encerrando os preparativos.
Aberta a porta do terreiro, começaram a ouvir as preces e os pontos de abertura dos trabalhos. O toque dos atabaques era muito bem executado.
Ao se aproximarem, tomaram o maior susto. Reconheceram o Doutor Camilo, que havia incorporado o exu Tranca Rua. Estava vestido com uma capa preta, usando cartola e segurando um tridente.
Como contaram aos amigos no dia seguinte, o homem estava fumando quatro charutos, todos logicamente acesos, enfiados “dois na boca e dois nas ventas”.
Não aguentaram. Surpresos, mas sentindo medo, deram meia volta, enquanto cambonos e seguranças avisavam que ninguém sairia depois de aberta a sessão.
Uma ova. Saíram em disparada. Empurraram alguns, escaparam de outros, correram e pularam o muro alto com uma agilidade de fazer inveja a muito atleta.
Foram a pé para casa, rindo de se acabar, mas de vez em quando olhavam para trás, ressabiados. E se assustavam com o barulho de gatos e cães vadios.
Na repartição, as coisas ficaram esquisitas para Francisco.
A candidatura não decolou, e ele então desistiu de ser vereador. Também, era tudo culpa sua mesmo, que não ficou para ter seus caminhos abertos pelo Tranca Rua... Doutor Camilo bem o sabia.


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista

terça-feira, 1 de março de 2016

Causos do sobrenatural


- Priii, priii, priii, priii, priii...
A velha Maria chamava suas galinhas às 5 e meia da manhã, com o dia já claro, e jogava milho para alimentá-las. O cheiro de café e do pão quentinho acordava a todos na casa e alcançava quem passasse por sua calçada.
Morava na Rua Dom João VI, em São Gonçalo, quase no limite com Niterói. Logradouro comprido e largo onde quase não passavam carros – somente bicicletas, cavalos e poucas carroças. Terminava numa enorme rocha, local de brincadeiras das crianças e de passeio das poucas cabras da vizinhança. Havia chácaras e casas com quintais espaçosos, separadas por muros baixos, com vários pés de frutas, galinheiros e pequenos chiqueiros. Comércios eram poucos: a venda do Euclides, a barbearia do Heleno e o botequim do Tomás portuga.
As galinhas chegavam uma a uma, mas dona Maria deu falta da mais espevitada. Olhou em direção à vizinha que trazia a trouxa de roupas para lavar e perguntou:
- Laura, você viu minha polaca aí pelo seu quintal?
- Não, Maria. Sumiu também? – respondeu.
- Sim. Que coisa estranha! Nessa semana já se foram o galo do Agenor, o gato da Quitéria, a cabrita do Nicanor... E agora a minha polaca.
Saiu e entrou para falar com seu marido, Valdir, que se aprontava para ir trabalhar na Fábrica de Tecidos, onde exercia o posto de encarregado. Cobrou dele a realização de uma força-tarefa para acabar com aquele absurdo.
Era uma sexta-feira, e o ano 1940. Estêvão, o caçula do casal, embora vivesse andando pela pedra como se fosse um cabrito, era um grande medroso quando o assunto era o sobrenatural. Não podia explorar toda a rocha, mas o espaço em que reinava era o suficiente para deixar seus joelhos totalmente ralados.
Enquanto muitos falavam em um ladrão e outros duvidavam que houvesse um ladrão de gatos são, Estêvão tinha para si que era um fantasma, e um frio lhe corria pela espinha. Para piorar, o medo de fantasma o impedia de dormir.
No sábado, às 3 da tarde, os vizinhos se reuniram. Alguns com facões, outros com umbigos de boi, garruchas e revólveres, e resolveram fazer buscas em todas as casas, para ver se achavam o bandido escondido. Eram 2 grupos que se dividiram e se dirigiram para cada lado da rua para fazer uma varredura.
Quase pelas 6 da tarde resolveram subir pelas laterais da rocha no fim da rua, pois sabiam que havia pequenas entrâncias onde alguém poderia se esconder. Numa delas, encontraram uma pequena fogueira apagada, folhas de jornal, fezes, penas de ave e o couro de um gato, além de ossos e alguns cotocos de cigarro de palha.
Não havia ninguém, mas já sabiam que quem estivera ali não era conhecido.
Voltaram. Foram tomar uma pinga e acertaram que ficariam em alerta à noite.
Lá pras duas da matina, o medroso do Estêvão, que não pregara os olhos, ouviu uma reza estranha, bem baixinha. Saiu da cama e, morto de medo, andou em direção à janela da sala, seguindo o som. Olhou pela persiana e viu um homem rolando por sobre jornais e bosta de cavalo, repetindo palavras estranhas, quando, de repente, deparou-se com um rosto todo peludo. Era um lobisomem...
O menino gritou, acordando os pais e alguns vizinhos, que chamaram os outros. O barulho assustou o bicho, que se levantou e correu de pé. Os vizinhos chegaram e atiraram. Ouviram um uivo, mas não conseguiram alcançá-lo.
No dia seguinte, a polícia apareceu para perguntar se alguém dali tinha atirado num homem que eles socorreram no Barreto, baleado no braço. Ele foi levado a um hospital, porém não se identificou; e assim que foi feito o curativo, sumiu na poeira. Todos responderam, de forma ensaiada, que nada de anormal acontecera na madrugada de sábado para domingo.
O homem que, segundo a polícia informou, se comportava como alguém do interior, não voltou mais. Por coincidência, os animais deixaram de sumir.
Estêvão cresceu e contou aquele causo em todas as reuniões da família durante anos. E continuava contando, agora aos seus bisnetos.


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista