quarta-feira, 30 de março de 2016

Flamenguinho


Gordinho era apaixonado por futebol, e desde que se conhecia por gente acompanhava as partidas do clube de coração ao lado do pai, num tempo do famoso videoteipe, quando a TV transmitia o jogo horas depois de finalizado. Sonhava em montar um time de futebol e, unindo vários úteis e agradáveis, sempre que alguém perguntava que presente gostaria de ganhar, era enfático:
- Uma camisa do Flamengo!
- Mas, você já não tem muitas?
- Sim, mas eu vou fazer um time de futebol com elas.
Enquanto ganhava umas, outras ficavam curtas e apertadas. Conseguiu juntar 5 camisas, cada uma diferente da outra – era o que dava para fazer. Os números foram feitos com cadarço branco de tênis costurados nas costas. E, então, ele e uns amigos de infância formaram um grupo para jogarem juntos quase todos os dias.
Passado algum tempo, um contratempo: o time acabou desfalcado do melhor jogador, que era uma menina. Como estavam crescendo, surgiram as diferenças características dos sexos e, por motivos óbvios – e para a tristeza geral –, deu-se a aposentadoria precoce de alguém insubstituível.
Chegou um dia que o parceiro que dividia com a “recém-aposentada” o título de melhor jogador do time, falou em disputar o campeonato que aconteceria no clube onde jogavam sempre que sobrava algum dinheiro. Precisavam montar o "elenco", pois alguns abandonaram o projeto porque a grana era curta e não tinham como pagar a taxa cobrada.
A distância impediu que um vizinho da sua avó participasse, mas vieram outros jogadores pontuais.
A estreia foi terrível, um inacreditável 0x0 num jogo de futebol de salão. Era para dar tudo errado com aquele grupo de meninos sem um técnico, com roupas desiguais, que tiravam a camisa suada para o substituto vestir e entrar em quadra.
Para piorar, na rodada seguinte tomaram de 5x1 com direito a olé e tudo, daquele que seria o campeão do 1º turno, um time que voava em campo, com jogadores fortes e experientes, e que tinha um técnico e dono.
Vendo Gordinho triste, seu pai perguntou o que estava acontecendo. Ele respondeu que seu time estava meio desengonçado e tinha tomado uma goleada. Queria disputar o campeonato, mas de forma digna, e não servir de saco de pancadas.
Seu pai, que havia jogado no juvenil de times profissionais, decidiu tomar a frente, e já no próximo jogo veio a vitória tranquilizadora: 3x0.
Após algumas observações, seu pai viu que o time daria certo. Havia 2 atacantes excelentes – curiosamente, um deles tinha o talento, mas não o prazer de jogar futebol; preferia estudar, o que era algo raro naquela época. Os outros eram bons jogadores, mas faltavam peças para a defesa. Essa era a falha.
Como não havia técnico, jogadores com características ofensivas paravam na defesa. Apenas 2 possuíam características defensivas – um deles era Gordinho, o mais novo do grupo.
A linha estava formada, mas ainda faltava um goleiro, já que os meninos se revezavam na posição. Então, vieram 2 irmãos para fechar o gol. Com o time fechado, o pai, agora técnico, conversou com a esposa e juntos compraram um jogo de uniforme completo. Por uma boa causa gastaram um dinheiro que faria falta, e o único time que não tinha um jogo de camisas era agora o mais bem vestido, com meiões, shorts e camisas novas. E do Flamengo...
O time melhorou e chegou em 3º lugar no 1º turno, mas foi insuficiente para a classificação na final.
No 2º turno venceu o Miragem, campeão do 1º turno, por 2x1, demonstrando grande evolução. Não sofreu derrota, mas por questões técnicas ficou atrás do Frenético, vice-campeão do 1º turno e agora campeão do 2º turno.
Nas finais, cruzariam o campeão do 1º turno com o vice do 2º turno e o campeão do 2º com o vice do 1º. O Frenético descansou porque teria que enfrentar a si próprio. Já o Flamenguinho enfrentaria pela 3ª vez o Miragem, para o qual tomara a única goleada no campeonato e que estava entalada na garganta.
O jogo foi emocionante e, para a grande alegria de Gordinho e seus amigos, a goleada foi devolvida. Incríveis 5x1 no Miragem, com direito a confusão entre os jogadores do time adversário e tudo.
Veio a final. Um jogo disputadíssimo. O Flamenguinho perdeu de 2x1 por duas falhas tolas, mas o outro era o grande time do campeonato e fez jus à vitória. Ao Flamenguinho restou a defesa menos vazada do campeonato.
Como a criança não assimila facilmente a derrota, muitas lendas foram criadas: fulano entregou o jogo; havia espiões na “concentração”; Gordinho (que não falhou naquele jogo) só jogava porque era dono das camisas... Ora, ele criou o time e não havia nenhum outro jogador que o substituísse em sua posição. Era o mais novo de um campeonato que disputou bravamente, com 11 anos, entre crianças mais velhas, pois a idade limite era de 14 anos na linha e 15 anos no gol. A diferença de 2, 3 e até 4 anos é muito aguda nessa fase da vida.
O mais irônico (ou triste) é que no dia da premiação ele recebeu o troféu e 3 passos depois tropeçou, caiu e quebrou-o em duas partes.
O organizador do campeonato, responsável pelo clube, sorriu e disse para não se preocupar que daria um jeito – o que nunca aconteceu, mas suas palavras impediram a tristeza no momento que era para ser de alegria. Afinal, 14 times disputaram o campeonato e apenas um era melhor.
Os pais de Gordinho proporcionaram a ele o ano mais feliz de sua infância e pré-adolescência, e hoje ele fica assombrado pelo fato de seu filho não apenas não acompanhar, mas ser totalmente desinteressado por futebol. A vida nas grandes cidades e nos apartamentos tirou muito isso das crianças, e parece ser algo irreversível.
Gordinho vai ter que buscar, com sua esposa, outra forma de dar ao filho o ano mais feliz de sua vida.
Ah! Uma coisa ele lembra com muito orgulho: a camisa 10 do Flamenguinho era dele, porque era a de Zico, seu ídolo, o melhor do mundo que jogava no maior do mundo.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista



Nenhum comentário:

Postar um comentário