quarta-feira, 2 de março de 2016

O candidato na curimba


Era o filho mais novo de Célio e Lavínia, um operário e uma dona de casa que, para complementar a renda familiar, vendia doces caseiros em casa e enviava os filhos menores pela vizinhança para venderem as iguarias em tabuleiros, de porta em porta. Francisco, o herói da história, era um deles. Já os irmãos mais velhos, estavam todos empregados nas fábricas próximas de casa.
Ao completar 21 anos de idade, Francisco, que sempre fora inteligente e aplicado, resolveu se candidatar a vereador, atendendo aos pedidos dos amigos que o convenceram que seu bairro precisava ter um representante político.
Era 1954 e, diferentemente dos irmãos, ele trabalhava numa repartição pública do Distrito Federal, quando começou a assimilar aquela ideia, que tomou corpo.
O partido escolhido não possuía representatividade, mas lá se ia com os amigos, todos animados, fazer propaganda boca-a-boca. Participava de bailes, festas, bingos, leilões... Em qualquer clube, Paróquia ou templo em que comparecesse dava um jeito de ser anunciado.
Um de seus amigos trabalhava numa gráfica, onde conseguiram um grande desconto para fazer material de panfletagem. O dinheiro foi arrecadado através de vaquinha, e Zeca, seu cabo-eleitoral, imprimiu quantidade muito superior à encomendada, arriscando seu emprego.
À noite, saíam pela cidade colando os panfletos com uma goma feita a de água e farinha de trigo, em postes, muros e até no lombo de burros que porventura dessem sopa pelo caminho.
Mas, apesar de conhecido e bem quisto, sua campanha não decolava. Não tinha marqueteiro, e como não era rico (nem seus amigos), não conseguia penetração na elite da Cidade, o que seria vital para deslanchar a candidatura.
Um dia estava desanimado no trabalho quando o chefe do setor, homem de família conhecida e abastada, perguntou como andavam as coisas para o pleito e ele respondeu que estava quase desistindo, pois os votos de conhecidos e de moradores do seu bairro seriam insuficientes para garantir a cadeira na Câmara.
Então, o Doutor Camilo falou:
- Francisco, você quer mesmo ser vereador? Vou conseguir muitos votos para você. Espere aqui um pouquinho.
E saiu, voltando após o almoço para perguntar se Francisco teria compromisso na próxima sexta-feira. Ele disse que iria à casa da noiva, mas que poderia desmarcar porque ela incentivava sua campanha.
O Doutor Camilo passou um papel com um endereço e falou:
- Esteja lá antes das dez da noite. Depois que o portão é fechado ninguém mais entra, ninguém mais sai.
Não falou mais nada. Saiu apressado, firmando sua bengala com força no chão e dando passos firmes, fazendo um barulhão no assoalho.
Francisco leu o endereço e viu que ficava do outro lado da cidade. Pensou como iria fazer para voltar de lá. O compromisso começava às 22h e o último bonde passava antes de meia noite em frente à sua casa, para encerrar o expediente no pátio. E só voltaria a funcionar no dia seguinte, às seis da manhã.
Como não queria ir sozinho, chamou seu amigo Aldair para fazer companhia, mas não soube informar o que funcionava no local.
Na sexta-feira os dois deixaram as noivas em casa e seguiram alegres para aquele endereço misterioso. Depois de uma longa viagem, chegaram ao destino – num bairro nobre –, e alcançaram a rua anotada no papel que lhe fora entregue.
Havia uma ladeira no final da rua, mas assim que chegarem ao início da subida viram o número num extenso muro branco com um portão largo de ferro, que terminava com lanças afiadas.
Ao chegarem ao portão, foram recebidos por um negro muito alto e forte, todo vestido de branco, que educadamente respondeu que aquele era o endereço que procuravam – o Terreiro do Pai Cipriano de Oxóssi.
Francisco e Aldair se entreolharam surpresos, com vontade de rir, porque não tinham a menor noção de que o Doutor Camilo, que Aldair também conhecia, frequentava um Terreiro de Candomblé.
Eram outros tempos...
Os dois eram de famílias de católicos fervorosos, mas deixaram pra lá. Já estavam ali mesmo, iriam entrar... Pensaram que valeria à pena pela campanha.
Depois de informarem quem os convidou, foram encaminhados para o interior do imóvel. Passaram por um quintal enorme até chegarem a uma construção nos fundos, onde se acotovelavam várias pessoas que aguardavam para entrar e se encaminhar à assistência. Todos os médiuns estavam lá dentro, encerrando os preparativos.
Aberta a porta do terreiro, começaram a ouvir as preces e os pontos de abertura dos trabalhos. O toque dos atabaques era muito bem executado.
Ao se aproximarem, tomaram o maior susto. Reconheceram o Doutor Camilo, que havia incorporado o exu Tranca Rua. Estava vestido com uma capa preta, usando cartola e segurando um tridente.
Como contaram aos amigos no dia seguinte, o homem estava fumando quatro charutos, todos logicamente acesos, enfiados “dois na boca e dois nas ventas”.
Não aguentaram. Surpresos, mas sentindo medo, deram meia volta, enquanto cambonos e seguranças avisavam que ninguém sairia depois de aberta a sessão.
Uma ova. Saíram em disparada. Empurraram alguns, escaparam de outros, correram e pularam o muro alto com uma agilidade de fazer inveja a muito atleta.
Foram a pé para casa, rindo de se acabar, mas de vez em quando olhavam para trás, ressabiados. E se assustavam com o barulho de gatos e cães vadios.
Na repartição, as coisas ficaram esquisitas para Francisco.
A candidatura não decolou, e ele então desistiu de ser vereador. Também, era tudo culpa sua mesmo, que não ficou para ter seus caminhos abertos pelo Tranca Rua... Doutor Camilo bem o sabia.


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista

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