sábado, 23 de abril de 2016

O paradoxo dos “meus direitos, seus deveres” que ataca nossa sociedade


Os sagrados direitos e deveres do indivíduo vêm sendo relativizados em nossa sociedade, intencional e equivocadamente. Potencializados os direitos e minimizados os deveres, vige o princípio da “farinha pouca, meu pirão primeiro”, que a meu ver resulta da junção de alguns aspectos da nossa sociedade com a inserção de certos elementos de manipulação. Fato é que grande parte da população, em regra desassistida das necessidades mais básicas, como condição financeira digna, saúde, educação e segurança, forma, portanto, uma grande massa acrítica, sem vigor, acovardada, desprotegida, com baixo poder de consumo e de investimento, e que apresenta dificuldades no aprendizado e incapaz de interpretar de forma firme e satisfatória o cenário político, econômico e social que se nos apresenta.
A condução do Estado sob uma visão social mais acentuada, de acordo com os direitos e garantias constantes do Título II, Capítulo I, da CF/1988, ao que parece, inebriou os atores da sociedade após anos de moderada castração [1]. Eles sentem dificuldades em reconhecer que as benesses foram indiscriminadamente distribuídas e, por isso, há limites ao seu desempenho no curso das relações interpessoais e em sociedade – esqueceram a máxima: “o direito de um termina quando começa o do outro”. Enfim, assimilados os “favores” (direitos) concedidos pelo ordenamento jurídico, os deveres caem no esquecimento.
Não há muito tempo, quando o tema não despertava apelo midiático, quando as liberdades eram vigiadas de forma menos velada (pois ainda era insipiente a ditadura do politicamente correto), quando o Estado era menos socializante, o indivíduo de “sponte sua” dispensava mais respeito ao próximo, aos bens públicos, aos direitos alheios e às instituições. Fazia-se presente a ordem. Cumpriam-se os deveres.
Só que as coisas saíram do eixo, apesar do princípio da solidariedade ser elevado ao status de objetivo fundamental no artigo 3º, inciso I, da CF/1988, lembrando a obrigação moral do indivíduo de primar pelo bem-estar da coletividade em geral e de cada pessoa individualmente ao exortar cada um a não agir, com o próximo, da forma que não gostaria que agissem contra si. Resumidamente, pela solidariedade cabe a todo membro da coletividade buscar o próprio bem-estar e o bem-estar do próximo, o que se assemelha à finalidade precípua da teoria utilitarista – a maior felicidade [2].
Saindo da questão jurídica e adentrando o campo das relações sociais a partir de uma abordagem empírica, diuturnamente somos bombardeados com notícias de comunidades que clamam às autoridades a dragagem de rios; a limpeza de terrenos e encostas; a construção, a reforma e a preservação de praças com academias populares, de abrigos de chuva, de quadras poliesportivas etc.
Em regra, há insatisfação popular com o poder público pela demora em atender aos seus anseios. Só que as mesmas pessoas, ou parentes, ou conhecidos, ou vizinhos, enfim, os membros das comunidades, com a entrega das benfeitorias, são direta ou indiretamente responsáveis por pichar e depredar; arrebentar portas, portões, tabelas, cestas e cercados; destruir redes, aparelhos e brinquedos; quebrar banheiros públicos e lâmpadas; e jogar lixo em locais proibidos ou colocá-lo nos depósitos destinados após ter sido feita a coleta. E a própria população paga a conta do vandalismo e do comportamento reprovável, seja através de tributos ou vitimizada por tragédias, como deslizamentos de encostas que atingem casas e outros bens encontrados no caminho, ou inundação de rios, ruas e casas em razão das galerias entupidas de lixo. Sem contar a propagação de mosquitos, ratos, baratas e outros animais em terrenos e em locais abandonados e cheios de lixo.
De outro lado, crianças e adultos podem se machucar em brinquedos ou aparelhos vandalizados nas praças e, por fim, os locais públicos de lazer depredados deixam de ser frequentados e acabam ocupados por moradores de rua ou por marginais.
As situações aqui narradas são corriqueiras – isso é fato e eu lamento. Contudo, o ser humano possui capacidade inesgotável, constantemente renovada, para praticar atos reprováveis e inconvenientes. Somos insaciáveis, não nos rendemos. Parecemos cópias de Joseph Klimber, personagem de um esquete de mesmo nome [3], que não se entrega facilmente, mesmo que a vida, “uma caixinha de surpresas”, nos pregue peças a todo instante. Continuamos agindo “como se não houvesse amanhã” [4], como se o próximo não estivesse próximo. Simplesmente porque não nos preocupamos. O outro? Que se lasque!
São vários os exemplos e vou elencar uns que constatei pessoalmente.
A Companhia Vale do Rio Doce criou no Espírito Santo o Parque Botânico e o oferece à visitação da população em contrapartida pela exploração das riquezas nacionais, como exigem esses tempos de governanças socializantes. Dentro de um determinado local com brinquedos para CRIANÇAS se divertirem, há um espaço reservado para os pequeninos, onde os pais podem acompanhá-los em pé, sem percalços, enquanto os filhos completam as atividades no escorregador, na casinha, na ponte etc. Só que pais “sem-noção”, filhos do Estado paternalista e relativista, então cobertos de direitos, esquecem, desconhecem ou burlam os chamados deveres. (lembre-se: somos insaciáveis!). Como resultado, “diligentes” que são, arvoram-se a subir com seus pequeninos nos brinquedos destinados também às outras crianças, obstruindo a passagem dos maiores e, pior, escangalhando os brinquedos, que ficam desativados. Ora, é possível vislumbrar que as crianças deixam de brincar e o conserto leva a empresa a arcar com gastos desnecessários. Dentre todas as circunstâncias inconvenientes geradas pelos pais que frequentam e permanecem nos brinquedos infantis, há o fato de que não foram desenvolvidos para suportarem o peso de um adulto. Num “estado normal de coisas”, isso já bastaria para os pais “se tocarem”. Mas, e daí, não é mesmo? A empresa lucra tanto, dizem. “Tem mais que” consertar o que foi estragado e ficar quieta (a Vale).
Certa feita, visitei com minha família o Museu Nacional, que fica na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão-RJ – e demos sorte de achá-lo aberto, pois vive fechado por falta de verba (pública!) para manutenção. Aquela mesma verba que é desviada em mensalões, petrolões, tremsalões, Copa do Mundo, Olimpíadas e assentamento de terras para defuntos.
Pois é. No local, várias placas proibiam a utilização de câmeras com flash, o que contribui para a degradação dos objetos em exposição. Mas, um grupo não se importava nem um pouco, e “a cada mergulho era um flash”. Eles “precisavam” guardar aquela lembrança.
Tal comportamento leva a pensar no descaso (asqueroso!) com a posteridade. E ele é agravado em razão da pouca probabilidade de um dia essas fotos virem a ser reveladas e, mais ainda, das pouquíssimas vezes (ou nenhuma) que serão vistas. Como os caríssimos álbuns de formatura e de casamento. Copiou?
As regras de boa convivência e da preocupação com o próximo são tratadas com irrelevância na medida em que vivemos num país onde até as próprias autoridades não dão exemplo – um ex-presidente da República chegou a afirmar que quando um banco era assaltado ele pensava que o banqueiro não sentiria falta do produto do roubo, pois ganhava muito dinheiro com especulação [5]. Aliás, esse é um pensamento recorrente, pautado em falsas premissas, como “ninguém sofre prejuízo na fraude do seguro para receber o prêmio”. Como não? Os segurados arcam com os custos conforme a análise dos cálculos atuariais, que englobam os prêmios pagos. Ou seja, o prejuízo é repassado aos clientes. Ademais, seguradoras empregam e pagam tributos. “Não existe almoço grátis”, ensina Milton Friedman.
Houve uma vez que, na beira do mar da Praia de Camburi, em Vitória-ES, um indivíduo mantinha seu “kite” vagando na água em meio aos banhistas, que eram empurrados para o lado a fim de evitarem um choque com a estrovenga. Mas, havia crianças por ali, e elas são curiosas por natureza. Quando se aproximavam para “olhar com as mãos o brinquedo” (o que é muito comum), o “dono da razão” – e da praia, talvez – dava uma bronca nelas. Se as crianças não deveriam mexer no equipamento, muito menos ele deveria estar ali atrapalhando os banhistas, mas...
Na mesma praia, agora no calçadão, depois de reivindicarem anos e anos, os ciclistas conquistaram uma ciclovia. Só que, além dos que trafegam em alta velocidade, há os que preferem os “atalhos”, dispensando a pista e pedalando no calçadão, em meio a pedestres e atletas ocasionais, pondo em risco a integridade física alheia.
Ainda sem sair das Praias do Espírito Santo, há vários relatos de bêbados e incautos dirigindo lanchas e jet skis de forma ameaçadora e irresponsável em local proibido [6]. Essas atitudes “non sense”, inclusive, já custaram as pernas de um menino [7] e de um atleta (e campeão) olímpico [8], mas parece que ainda não foi o suficiente, dadas as insistentes reincidências.
Lembro também que há alguns anos eu e uns amigos estávamos na Praia de Piratininga, em Niterói-RJ, e um mané, após tirar um fino de um de nós com sua prancha, avisou que ali era lugar de surfistas e que da próxima vez iria acertar a cabeça de alguém, para que “aprendêssemos”. O detalhe é que ao chegarmos não havia nenhum surfista no local. Bom. Os ânimos esquentaram e, para azar dele, éramos mais de quinze pessoas. Os parceiros do mané surfista, quando viram a encrenca em que se meteriam, resolveram ir com ele para um local a poucos metros dali, onde não havia banhistas. Não houve confusão. Na ocasião, a inconveniência dos “senhores de direitos” não prevaleceu, mas o bom senso sim. Eram outros tempos e fatalmente o “couro iria comer”.
Por fim, chego à utilização do espaço público para manifestações coletivas dos que querem expor argumentos, lutar por ideais ou mesmo manter empregos, privilégios ou exercer o direito à greve. Nessas ocasiões, o que mais se vê são exemplos de violação ao direito de ir e vir. Em dia e horários normais de trabalho da massa, são fechadas vias públicas, invadidos prédios públicos. Há engarrafamentos, prejuízos, tempo perdido... E há também violação do direito daqueles que não querem aderir a greves e são obrigados a não trabalhar para não serem agredidos.
Não repararei a partir de quando o mundo ficou tão chato, com teorias divisionistas disseminadas por quem busca o pleno poder, com essa soberba tão presente nas pessoas e com o descaso pelo alheio. O fato é que ficou.
Há certa gravidade nas relações. Há muito interesse e pouca consideração; há pouca amizade, pouco riso, muito patrulhamento, muita relativização e muito desejo de se tornar mediano. Há cada vez mais pessoas rudes, insensíveis e fechadas. Parece que estamos voltando à barbárie. Mas, até outro dia não éramos assim. O que aconteceu? Por que aconteceu? Por que deixamos isso acontecer?
Para reverter isso, temos que amplificar a paciência, tentar resgatar o amor e o respeito. Mas, também investir na educação, uma educação realmente de qualidade, e não numa educação doutrinária, pueril, demagógica. Se não o fizermos, o que há de “humano” em nós morrerá “um pouco mais e mais a cada dia” [9].
E enquanto isso não acontecer, é de se sentir “vergonha alheia”.

NOTAS
[1] Digo moderada ao comparar a ditadura brasileira iniciada em 1964 com as ditaduras muito mais repressivas – e repulsivas – dos demais países da América Latina e da África, e em especial com os modelos de ditadura que influenciaram esquerdistas e guerrilheiros que diziam lutar pela democracia, mas queriam mesmo era implantar uma ditadura do proletariado no Brasil, como já confirmaram textualmente Fernando Gabeira, Eduardo Jorge e Vera Sílvia Magalhães;
[2] Convém lembrar a lição de Ortega y Gasset, para quem, muito mais que o coletivismo, o liberalismo se preocupa com a sociedade – e nem tanto com o indivíduo:Mais importante, porém, que tudo isso é outra coisa. Quando, avançando pela centúria, chegamos aos grandes teorizadores do liberalismo – Stuart Mill ou Spencer – surpreende-nos que sua suposta defesa não se baseia em mostrar que a liberdade beneficia ou interessa a este, mas pelo contrário, em que interessa e beneficia à sociedade. O aspecto agressivo do título que Spencer escolhe para seu livro – O indivíduo contra o Estado – tem sido causa de que o não entendam teimosamente os que não lêem dos livros senão os títulos, porque indivíduo e Estado significam nesse titulo dois meros órgãos de um único sujeito – a sociedade. E o que se discute é se certas necessidades sociais são melhor servidas por um ou pelo outro órgão. Nada mais. O famoso "individualismo" de Spencer boxeia continuamente dentro da atmosfera coletivista de sua sociologia. O resultado, no final, é que tanto ele como Stuart Mill tratam os indivíduos com a mesma crueldade socializante com que os térmitas a certos de seus congêneres, os quais cevam para depois chupar-lhes a substância”. ORTEGA y GASSET, Jose. A rebelião das massas. Edição eletrônica. Ed. Castigat Mores, p. 12. Disponível em www.jahr.org;
[3] Companhia de Comédia Os melhores do mundo. Quadro Joseph Klimber. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gzMhifqIPm8. Acesso em 05/01/2015;
[4] VILLA-LOBOS, Dado e RUSSO, Renato e BONFÁ, Marcelo. Trecho da música “Pais e filhos”;
[5] SILVA, Luís Inácio Lula da. Revista Veja ed. 2.393 – ano 47, nº 40, 1º/10/2014, Coluna Veja Essa, p. 53: “Eu antigamente ia: ‘bandido roubou um banco’. Eu ficava preocupado, mas falava: ‘Pô, roubar um banqueiro... O banqueiro tem tanto que um pouquinho não faz falta’. Afinal de contas, as pessoas falavam: ‘Quem ganha às custas do povo, com os juros’. Eu ficava preocupado. (...) Era chato, mas era... sabe, alguém roubando rico”;
[6] MONTEIRO, Amanda. Lanchas e jet skis dividem espaço com banhistas em Guarapari, ES. Reportagem do G1 ES de 28/01/2012. Disponível em http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2012/01/ lanchas-e-jet-skis-dividem-espaco-com-banhistas-em-guarapari-no-es.html. Acesso em 07/01/2015;
[7] Garoto tem perna decepada após ser atropelado por lancha em Vitória. Gazeta On Line de 22/03/2009. Disponível em http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2009/03/69130-garoto+tem+ perna+decepada+apos+ser+atropelado+por+lancha+em+vitoria.html. Acesso em 07/01/2015;
[8] Há 12 anos, iatista Lars Grael sobreviveu a acidente no mar. Reportagem do G1 Brasil de 06/09/2010. Disponível em http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/09/ha-12-anos-iatista-lars-grael-sobreviveu-acidente-no-mar.html. Acesso em 07/01/2015;
[9] Santos, Lulu e NILO, Fausto. Trecho da música “Tudo com você”.

P.S.: Esse artigo foi escrito e publicado na internet em janeiro/2015, mas por questões pessoais o retirei da rede. Dei uma enxugada no texto e suprimi uma frase do título para republicá-lo em meu blog.

Fernando César Borges Peixoto. Advogado, especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vila Velha-ES e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória-ES.


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