Quincas apertou o
passo quando a chuva aumentou significativamente. Sua cabeça ia a mil, longe
dali, e sequer o incomodava a camisa colada ao corpo, tão molhada que estava.
Andou três longos quarteirões sem marquises até chegar ao destino, pois
Epaminondas negara a carona alegando atraso para encontrar Bianca, a “essa é
para casar” da última semana.
Enquanto andava,
prometia a si próprio que deixaria de ir às reuniões do Clube do Velório, formado
vinte anos antes, no dia da morte por afogamento de Gaspar, amigo e ponto de
referência dos nove participantes. Em homenagem ao morto, assumiram um
compromisso eterno de amizade e mútua colaboração: na saúde e na doença, na
tristeza e na alegria, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de suas
vidas. O ambiente se tornara tóxico nos últimos anos.
A convivência e o
propósito do grupo transformaram suas vidas. Foram anos de amizade intensa, influência
do espírito agregador de Gaspar. Em determinado momento, porém, algo aconteceu
e o viço se perdeu. Alguns passaram a se comportar estranhamente, outros viviam
distantes. As presenças já não eram constantes e criavam-se querelas por motivos
fúteis; os jogos de entretenimento passaram a ser apostados, o que acirrou
ainda mais os ânimos.
Quincas havia sofrido
um baque financeiro, a multinacional na qual ocupava um alto posto retirou as
atividades do país. Tinha oportunidade de se mudar para a Suécia, mas preferiu
ficar e não prejudicar os filhos, que não criavam raízes em razão das
transferências regionais. Não era a primeira vez que se via desempregado, mas se
sentia desconfortável por causa da idade.
Nunca havia socializado
problemas nem pedido dinheiro ou favores a ninguém; buscava apenas apoio moral,
mas fora-lhe negado. Como da vez anterior, quando faliu a rede de minimercados,
Norberto e Epaminondas deram os primeiros sinais, e passaram a evitá-lo. À
época, cogitou que fosse coisa de sua cabeça, mas ao vasculhar a memória admitiu
que fizeram o mesmo com Aderbal, logo após ele perder as padarias e os postos
de gasolina. Por sorte, não demorou muito para o confrade receber uma polpuda herança,
e tudo voltar ao normal, deixando nítido que não era coincidência, e que certos
confrades queriam apenas tocar projetos pessoais.
A grana, a maldita
grana e o prestígio motivavam suas ações e considerações; e ao primeiro sinal
de queda financeira de alguém, promovia-se um afastamento velado através da
apresentação de desculpas como um novo amor; reclamações da esposa sobre as
reuniões; problemas na ONG que administrava... Telefonemas ou mensagens eram
solenemente ignorados.
E não ficava apenas nessa
seara. Alguns confrades passaram a exigir insistentemente a indiscrição de outros,
a fim de lhes extrair inconfidências sobre negócios e intimidades alheias. Seria
inveja? Curiosidade doentia? Espionagem profissional? Ou apenas queriam tais
informações para revelá-las em outros círculos, onde exibiriam suas boas relações?
O tempo teria os
transformado... Gente louca!
Quincas sentia, mas
não estava disposto a preservar algo que há muito deixara de existir. Resolveu
se ensimesmar definitivamente. Quem realmente importava estava ao seu lado, o
resto não faria falta. Em verdade, o resto não passava de resto pelas próprias
circunstâncias. Amigo não é quem está junto a nós apenas na bonança, não reclama
a satisfação de curiosidades inconvenientes nem exige que abandonemos nossos
valores para alimentar suas idiossincrasias. O ambiente para mantermos relações
de puro interesse é o meio profissional, onde, infelizmente, não há pudores.
Tais elucubrações o
distraíram no trajeto até chegar a casa, onde não havia ninguém, pois estavam
visitando sua sogra.
Tirou a roupa encharcada,
tomou banho, esquentou leite, bebeu uma xícara e tentou descansar, mas não
conseguiu. Uma sentença o atormentava: idem velle, idem nolle. “Sim, os mesmos desejos e as mesmas aversões,
é isso que constitui uma amizade sólida e verdadeira”, pensava.
* * *
Tempos depois daquele
evento, sua vida voltou ao normal; conseguiu uma atividade rentável, em um estado
bem distante, onde havia morado pouco tempo antes de voltar à cidade natal.
Voltou de mala e
cuia; a família adorou o retorno. Não encarava como um fardo a sua atividade laboral
e seguia diariamente para a empresa como o homem mais feliz do mundo, ciente de
sua capacidade intelectual e escravo das prioridades que traçou para sua vida.
Fez uma completa depuração;
deletou definitivamente a Confraria de sua vida, e sequer desculpava a ausência
se um confrade cobrava uma visita — não havia um parente vivo a justificar seu
retorno ao estado de origem.
Passou a ser exigente
na escolha de amizades e estava disposto a evitar fadigas, não se permitindo
agradar a ninguém a custa de sua paz de espírito.
Em seu novo lugar no
mundo, celebrou amizades verdadeiras e bem estruturadas, nos termos daquela
preciosa sentença. Encarou desafios, criou novos hábitos, aprendeu coisas novas
que mudaram o seu ser.
Quando os filhos já estavam
criados e seguindo suas vidas, ele já dava valor a coisas que jamais haviam
chamado sua atenção anteriormente, como ver o simples pôr-do-sol na praia ou
ler um clássico da literatura universal.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, um saudosista.
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