Dias atrás, viajei para uma cidade do
interior – crescidinha, mas do interior. Interior onde se diz que as pessoas
são mais amigáveis e generosas – e sempre foi assim mesmo.
Ia buscar as crianças, que passaram a
única semana de férias numa roça; e a poucos quilômetros do perímetro urbano, o
carro esquentou. Com hora para chegar, parei repetidas vezes, esperando que
esfriasse para, em seguida, continuar. Até que não deu mais, e liguei pedindo
ajuda a minha cunhada, que trouxe uns dez litros de água para resolver o
problema. Mesmo assim, continuei andando e parando para completar a água do
radiador, pois havia um vazamento. Foi assim até chegar a uma oficina de bom
porte.
Era um sábado, pouco mais das dez e
meia da manhã, e porque a oficina fecharia às onze horas, sequer quiseram olhar
o carro. De nada adiantou explicar que vivo a oitenta quilômetros de distância;
que fui buscar meus filhos para cumprir compromissos no domingo, na Igreja; e que
as aulas voltariam na segunda-feira. O carro ficou lá, enguiçado, sendo que nem
mesmo o proprietário da oficina quis dar uma olhada. Pior: um funcionário ainda
soltou umas piadinhas.
Falei com minha esposa sobre tamanha falta
de sensibilidade, e nos perguntamos: “como e quando o mundo ficou assim?”
Nós não vimos: ela estava ocupada demais
com trabalho, administração da casa e maternidade, e eu trabalhava e estudava
muito, havendo dias em que nem via meus filhos acordados. Mas aconteceu de o
mundo dar essa volta de cento e oitenta graus e andar para trás, num retrocesso
civilizacional monumental – irônica, mas propositalmente –, promovido pelos que
se dizem “progressistas”.
O que sentimos é que acabou a consideração,
a comiseração; e restaram o descaso e os interesses. Só se ajuda quem possui moeda
de troca; e a possibilidade de dar algo em troca deve ser atual. Também não
importa o que se fez pelo outro no passado: quem não possui algo a dar na
atualidade é carta fora do baralho, da vida e do ciclo de amizades. Aos
poucos, fomos perdendo todo o legado moral da cristandade, um dos pilares da (nossa)
Civilização Ocidental.
Segundo Christopher Dawson, o Ocidente
experimentou idas e vindas no curso de sua formação; e num dado momento da Idade
Média, a sociedade já cristianizada, após tantos sofrimentos e ataques, retrocedeu
e foi tomada por um caráter belicista, por uma rudeza tamanha a ponto de o
comportamento de cristãos e bárbaros possuir diferenças mínimas. Mas, de forma
fortuita, isso facilitou a conversão dos últimos, no decurso do longo caminho de
interpenetração cultural e religiosa. Séculos depois, o amadurecimento do convívio
civilizado resultou na criação das comunas,
onde as pessoas decidiram, mediante juramento, conviver de forma pacífica,
solidária, e em torno das mesmas lideranças (Criação do Ocidente: a
Religião e a Civilização Ocidental.
SP: É Realizações, 2016, págs. 122, 204-205).
Como essa postura virtuosa, sem
interesses velados, surgiu após muitas adversidades e aglutinações, o que nos resta
é torcer pela alternância entre a barbárie e a restauração da sociedade, para que
seja um movimento cíclico e, então, surja um remédio que neutralize esse comportamento
crescente de negação aos valores da nossa própria cultura.
Enquanto não acontece, não podemos
descurar. E é por isso que, a cada dia sigo mais convicto o que disse
São Tomás de Aquino, como sempre reforça Olavo de Carvalho: “Ubi vera amicitia est, ibi idem velle, et idem nolle, tanto
dulcius, quanto sincerius” (Onde está a verdadeira amizade, aí está o mesmo
querer e o mesmo não querer, tanto mais agradável, quanto mais sincero).
Quer dizer, devemos ter ao nosso lado os que dividem os mesmos objetivos e gostos,
ao tempo em que repelem as mesmas coisas, pois é muito provável que quem esteja
fora desses parâmetros, na melhor das hipóteses, seja indiferente; já que, na
pior delas, assim que puder, se não
nos virar as costas, ele irá nos prejudicar.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma,
um saudosista que agora inventou de escrever poesia.
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