domingo, 17 de março de 2019

Funeral




Sempre ouvi dizer que a pior hora é aquela em que se fecha o caixão, apertam-se as borboletas e alguém começa a cantar: “Com minha mãe estare-ei, na Santa Glória um diiia...”.

Não para mim. A pior hora foi aquela em que se fechou a parede de pedra, ergueu-se o muro isolando o corpo palpável, presencial, agora inerte, mas que pouco antes possuía vida — e uma vida tão importante —, para revelar a morte inapelável.

Ela se foi. A mulher que mais me amou, a que fez mais do que qualquer outra faria; quem daria facilmente a vida por mim.

Em seu lugar, um vazio. Perdeu-se aquela alegria. Nunca mais verei o riso fácil que espantava a saudade depois do encontro havido ao fim da longa viagem imposta pelo destino, aquele ingrato que estabeleceu o considerável espaço físico que nos separava. Falo do riso fácil que nem mesmo a doença covarde que apaga as pessoas aos poucos conseguiu roubar.

Agora é impossível rezar o Terço sem ouvir sua voz se destacando entre as demais. Para sua tristeza, tenho certeza disso, infelizmente, poucas vezes a acompanhei nessa demonstração de fé e da pequenez humana ao render graças ao metafísico, ao nosso Deus, o responsável por nossas vidas e por nossa concepção da moral, da fé, da esperança, da caridade e do amor.

É também impossível esquecer os conselhos da infância, sobre respeito a limites, colegas, bens alheios e pessoas mais velhas; e depois o timing dos novos conselhos na adolescência, sobre honrar compromissos, ser caridoso com os necessitados – confesso que aqui, por vezes, falhei –, e dos cuidados em relação a estudos, companhias, locais frequentados, drogas, amizades e, novamente, sobre limites e respeito, agora em novas perspectivas.

Apesar da rebeldia incurável, prevalecia o respeito; as broncas eram aprendizado, e não um incômodo, como de forma malfazeja percebem esses jovens das novas gerações de geleia. Lição ensinada, lição aprendida — a ação reprovada não seria repetida.

Seu cantinho preferido agora jaz vazio, e serve somente para machucar, lembrando a perda, aguçando a saudade, e provocando o pranto e a pontada lancinante que alcança o fundo da alma — há tanta coisa que poderia e deveria ser dita.

Dizem que uma criança definiu a saudade como “o amor que fica”. Não sei da autoria, mas abraço o conteúdo. No pós-facto, esse sentimento nos faz buscar, com urgência, imagens, fotos, escritos e tudo o que atice a memória, como se a inércia implicasse o esquecimento da vivência conjunta; ou como se fosse possível recuperar o tempo perdido; ou, ainda, como se tais ações permitissem a repetição presencial daqueles momentos.

Mas o tempo surpreende, e quando e onde menos esperamos, percebemos que quem partiu transcendeu ao se fazer reconhecer no jeito de sorrir dos filhos; no olhar da irmã; na careta de alguém próximo, vista de soslaio no reflexo do espelho; nas histórias recontadas mil vezes, e que a maior parte delas foi ouvida em sua companhia; nas músicas que compunham sua trilha sonora e faziam seus olhos brilharem.

A maior lembrança eu carrego comigo, a marca indelével deixada em meu próprio ser: a total influência na formação do caráter, dos pensamentos às atitudes, passando pelo gosto pela música até o tratamento dispensado ao próximo na melhor concepção da reciprocidade. Algumas das convicções que carrego, e das quais não abro mão, ainda me fazem pagar caro, pois não me permito cometer erros conscientemente para evitar a fadiga ou alcançar vantagens. Uma delas é que, em tempos de acomodações e de vitimismo, não é do seu tempo quem é ensinado a dar a cada um aquilo o que é seu.

Por fim, não é possível evitar aquela frase feita de consolo: “a vida continua”.

Para um cristão católico que tenta evitar o lugar-comum, a frase utilitarista mais incomoda que conforta; a humanidade, num movimento de retrocesso, volta à barbárie muito influenciada por essa cultura do eu, não importando que mil caiam ao seu lado e dez mil a sua direita. Basta que as circunstâncias promovam a felicidade pessoal, e a qualquer custo; o importante é ser feliz, dizem. Porém, se isso é o que importa para muitos, não importa para todos. Se a vida continua, falta-lhe um pedaço; um pedação, na verdade.

Ela se foi. E levou consigo algo de cada um dos que verdadeiramente se importavam. Eu fiquei, e cônscio de que, mais dia menos dia, a única verdade absoluta do futuro de qualquer um que nasça com vida vai bater à porta: “Ninguém veio para ser semente; é importante é estar preparado”, ela ensinou. E ensinou com propriedade; tinha toda a razão, pois está escrito na Palavra.

Ainda é difícil esvaziar os olhos marejados de lágrimas...

 

(Deus sabe o quão difícil foi escrever essas palavras.)

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, até certo ponto saudosista, metido a escrever.