domingo, 8 de maio de 2016

O último ano do sinhozinho


Betinho já contava com 10 anos de idade e todos os anos seus pais moviam céus e terra para elegê-lo “sinhozinho” na festa junina da escola – festividade de vital importância para arrecadar dinheiro para o caixa.
O sinhozinho era a atração da festa: havia a entrega da faixa, um prêmio pela vitória e a sensação de poder absoluto sobre os amiguinhos.
Estudava num colégio estadual do subúrbio. O Regime Militar chegava ao fim e as escolas particulares ainda não eram diferenciadas a ponto de se transformarem na última esperança de um aprendizado de melhor qualidade. Com isso, a escola pública não era frequentada apenas pelos mais carentes, o que dificultava levar o prêmio.
É que cada pai e cada mãe têm a exata certeza de que seus filhos são as pessoas mais importantes do mundo, e isso fazia com que houvesse uma disputa carnívora entre genitores das “celebridades familiares pelos momentos de destaque no dia da festa. A mãe de Betinho empurrava vários carnês para o pai vender na repartição pública em que trabalhava, enquanto passava nas casas de amigas, conhecidas e parentes para vender votos e arrecadar brindes, brindes esses que também valiam pontos. As pessoas eram mais receptivas e menos ressentidas naqueles tempos, e não se sentiam incomodadas com o pedido de ajuda, ao contrário da repulsa demonstrada nos dias atuais, quando alguém vem “incomodar pedindo dinheiro”.
Estava a 5ª série do ginasial e nem sabia por que havia cedido ao apelo das professoras para inscrever seu nome na disputa daquele ano. Ele passava por uma nova fase da vida, vivenciava novas experiências. Acabara de sair do primário, em que havia uma única professora, para o ginasial, no qual tinha aulas com oito professores. Uma baita mudança que acarretava maiores obrigações com os estudos e a obtenção de mais informações sobre o “sentido da vida”. As “coisas de criança” ficavam para trás. Na realidade, no lugar de puxar a quadrilha, do “Arraiá” da escola preferia participar da apresentação de patins no dia da festa, evento que havia sido motivo de ciumeira por parte de um colega de longa data, na disputa pela melhor patinadora.
A mãe percebeu a mudança e foi conversar com ele sobre a falta de entusiasmo. Com seu amor infinito pelo único filho homem, e ainda por cima temporão, olhou-o no fundo dos olhos e perguntou se realmente queria participar e vencer a disputa naquele ano. Em sua inocência, ele achava que era importante para ela, e meio constrangido, mesmo sem pressão alguma, disse sim. Ela percebeu o sim chocho, mas não perguntou novamente para não pressionar. E lá foi ela mover mundos e fundos para ele vencer outra vez.
No dia da apuração, ele estava em aula e a sua mãe foi ao colégio. Encerrado o evento, ela foi à sala de aula. Ia aproveitar para levá-lo embora com ela. Quando a viu, ele percebeu um semblante amuado, e perguntou:
- Perdi?
Ela, então, abriu um sorriso e disse:
- Não. Você venceu de novo. Enganei o bobo. Não foi fácil, porque uma das mães quis ser mais esperta que as outras e desembolsou um bom dinheiro após a apuração dos votos vendidos. Seu filho arrecadou mais, mas ela esqueceu os brindes.
Mãe e filho foram embora, cúmplices, parceiros. Mais uma vitória no caixa.
No dia da festa, já não corria pelo pátio da escola, nem exibia, garboso, a faixa de sinhozinho como antes. Aliás, havia pedido à mãe para guardá-la em sua bolsa, porque ficava com vergonha de usar aquilo perto de seus amigos. Ela observava de longe, com ar de nostalgia, o menino que mudava a cada dia. Então, sorriu, com olhos marejados – seu bebê estava crescendo.
Quando mais tarde ele se aproximou e disse que estava cansado e queria ir embora, ela perguntou:
- Esse foi o último ano, né?
- É, mãe – disse ele. Acho que já estou grande demais para isso. Obrigado pelo esforço, sei que não foi fácil. A senhora é a melhor mãe do mundo.
Deu um beijo nela e partiu para se despedir dos amigos.
Sua mãe era uma mulher de temperamento empedernido, mas sua generosidade e seus ensinamentos permeariam toda a vida de Betinho. Acima de tudo, uma certeza ele teria até o fim de seus dias: acontecesse o que tivesse que acontecer, ninguém nesse mundo o amaria como ela o amou.




Fernando César Borges Peixoto. Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Como estilhaços de granada


Desde muito cedo descobriu que seu coração era grande. Luzias, Luísas, Cláudias, Carlas, Beatrizes, Lúcias, Marias, todas tinham morado dentro dele (seu coração) antes de completar 12 anos de idade. Mas, tudo foi diferente com Verônica, o terceiro ou quarto “primeiro amor” de sua vida.
O enamorado compulsivo apontara seu radar para a mocinha vistosa e pujante que, na realidade, era uma cavala, com uma diferença de idade significativa nessa época de nossas vidas: completaria 15 anos até o fim do ano. Sim, estava atrasada na escola. Culpa dos pais, que não paravam em lugar nenhum.
Era um menino tímido, mas obstinado, e logo deu um jeito de se aboletar para o lado dela e das amigas, desenvolvendo a amizade para curtir o amor platônico mais de pertinho.
Um dia, criou coragem e perguntou se ela gostava de alguém (naquele tempo, era isso que se perguntava: “você gosta de alguém?”). Ela disse que não e foi inconveniente o bastante para devolver a pergunta. Ela, sabida, sabia. A seu turno, ele enrolou o quanto pode, até que num dia, diante da insistência dela, aproveitou que seu ônibus estava parado no ponto recolhendo passageiros para sussurrar em seu ouvido:
- Você, Verônica.
Fingindo-se surpresa, ela falou algo enquanto ele corria:
- Eu? Jamais poderia imaginar.
Entrou no ônibus envergonhado – após aquela que não seria a única amarelada que daria em sua vida. Tinha certeza que ela não era para ele. Muita coisa, muito tudo. Pensou em nunca mais voltar à escola, mas não teve jeito.
O tempo passou. Ela nada mais falou. Lógico! Ele se afastou sem conseguir superar a vergonha. Lógico! Mas, não sem antes sair para bater com seu coração volúvel noutras freguesias.
Os dias se arrastaram até que, finalmente, acabou o ano letivo. A potranca saiu da escola porque foi morar na capital com o pai, recém-separado de sua mãe.
Três anos se passaram, e lá estava ele deslocado, numa festa americana muito louca – quem frequentou bem sabe como ficavam as almas depois do mix de frutas, empadão, pastel, biscoitos, refrigerante, cachaça, vinho de 5ª e vodca de 10ª.
Tinha a galera da maconha tocando músicas “cabeça” no violão, e os boyzinhos que saíam à caça das meninas que ficaram a noite toda com alguém que já tinha ido embora àquela altura – quando rolava o famoso “beijar homem por tabela”. Depois de meia-noite já começava “no woman, no cry”, seguida de músicas de Beto Guedes, 14 Bis, Rita Lee, Luiz Melodia, e seguia para Ultraje, Paralamas, Barão, Repemê e o grandioso Lobão, com a indefectível “Me chama”. Quantas vezes, nas madrugadas, vozes embriagadas não desafinaram aos berros e aos quatro ventos que: “nem-sem-pre-se-vê lágrimas no escuro”?
Voltando ao nosso herói, ele não acreditou quando olhou para o lado e viu seu “ex-inesquecível primeiro amor”, que continuava linda. Foi em sua direção e se preparou para fazer a clássica pergunta (idealizada por um amigo): “viste alguém que te interessaste?” (dessa forma, ou “sic”), quando um velho conhecido chegou por trás, abraçou e beijou a musa.
Cebola era o seu nome, um Zé Mané convencido, fedido, mas que era mais velho, fumava e trabalhava. Quase causou uma síncope no agora desolado adolescente, que não acreditava que o maior mentiroso, trambiqueiro, metido a pegador e difamador de meninas estava ali no bem-bom com Verônica. Inveja? Ciúme?
Cumprimentos trocados, suas vidas seguiram. Até que ela foi ao banheiro e Cebola, aproveitando para ser insuportável como sempre, mandou a letra:
- Conhece? Facinha...
O agora rapaz ficou sem voz. Já havia se apaixonado ao menos umas seis vezes naquele período em que perderam o contato, mas isso não dava a ela o direito de “fazer aquilo com ele” – aquela volta triunfal às avessas. No momento em que a avistou seu coração bateu mais rápido e forte. Agora, era só decepção.
Bebeu de uma só golada uma cuba-libre feita de refrigereco e três fazendas, tomou o violão do maconheiro que acabara de dizer que “amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito” e tocou “Canção da despedida”. Cada acorde, um sofrimento: “Já vou embora, mas sei que vou voltar...”.
Não. Ele não iria voltar. Aliás, quase não chegou. Engatou na birita, foi a pé pra casa e não soube nem como foi parar só de cuecas em sua cama.
A música que tocou não fala de “dores de amores”, mas de exílio. Só que, sem querer, acertou. Estava no exílio, afastado e saudoso, não de uma terra, mas daquele tempo da paixão platônica, em que, no fundo, nutria esperanças em ter para si uma mocinha ingênua com mais idade que ele. A realidade, àquela altura, era por demais cruel.
Estranhamente, entrava na adolescência com saudades da infância, daquela inocência de um eterno apaixonado.
E só havia passado três anos...


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista