domingo, 5 de julho de 2020

Perplexidade



Era o vigésimo sétimo dia de março de 2020 d.C. O tempo, naquela tarde, estava bastante fechado, e garoava. No mundo inteiro, diante da TV ou nas redes sociais, pessoas acompanhavam, apreensivas, os passos claudicantes daquele idoso vestido de branco, numa caminhada que parecia não ter fim.
O mundo estava assombrado pela devastação que uma peste vinda da China causava por todo o globo, em especial na Itália; e a imprensa massacrava o público com notícias apocalípticas. O combate eficaz àquele sofrimento parecia muito distante.
Havia uma tenda instalada no centro da Praça, para onde ele se dirigia; ao fundo, duas peças sacras de inestimável valor eram mostradas aos fiéis de várias nacionalidades.
Aquele senhor, o Papa Francisco, caminhava para dar a Bênção “Urbi et Orbi” extraordinária com indulgência plenária – concedida, por tradição, apenas nas celebrações da Páscoa e do Natal e na eleição de um novo Papa [1].
O ícone de Maria Protetora do Povo Romano (“Maria Salus Populi Romani”) era uma das peças expostas. A reverência prestada tem origem na cura da peste negra [2], na pandemia de 593 d.C., uma das piores manifestações da história. Consta que após o Papa Gregório I determinar que o ícone fosse levado pelas ruas de Roma, a doença sucumbiu [3]. Já em 1873 d.C., o Papa Gregório XVI rezou ao lado da imagem, por ocasião de uma pandemia devastadora de cólera [4].
A outra peça existe por conta de um milagre: o crucifixo do altar principal da Igreja de San Marcello al Corso – em Roma, a míseros quilômetros do Vaticano – foi encontrado intacto, junto a uma pequena lamparina que ardia a seus pés, após um incêndio de grandes proporções arrasar a Igreja, em 1519 d.C. Apenas três anos depois, em 1522 d.C., quando nova pandemia de peste negra mais uma vez dizimou parcela considerável da população, os católicos, com muita fé, carregaram a imagem por dezesseis dias pelas ruas de Roma, e receberam a graça da cura ao final da procissão [5].
Eram tempos duros, mas eram tempos de fé. Ninguém atendeu ao “fique em casa”. Nas ruas, sem máscaras e sem álcool gel, unidos e em procissão, os fiéis, apoiados e irmanados com as autoridades eclesiásticas, pediram a Deus que pusesse fim àquele sofrimento e foram atendidos, porque creram N’Ele. Quando a vida voltou ao normal, não houve fome e desemprego, pessoas não estavam com as mentes adoecidas pelo confinamento, empresas não quebraram...
Voltemos à bênção papal.
Feita a leitura do Evangelho segundo São Marcos 4, 35-41, o Papa iniciou a homilia e citou vários trechos da Bíblia, como Joel 2, 12 (“Retornai a Mim de todo vosso coração”); o Evangelho de São João 17, 21 (“... que todos sejam um”); e a Primeira Epístola de São Pedro 5, 7 (“Tu tens cuidado de nós”), merecendo destaque, todavia, a citação ao Evangelho de São Mateus 14, 27: “não tenhais medo” [6].
Após a breve bênção, houve a adoração ao Santíssimo.
Muitos se sentiram aliviados, mas, por serem demasiadamente humanos, logo em seguida voltaram à rotina do isolamento, do uso da máscara, da não aglomeração, e da conivência com decretos estatais autoritários que permitem a invasão de culto celebrado em família [7] e criam regras que afrontam nossos costumes, estabelecendo limites absurdos para familiares e amigos velarem e enterrarem seus mortos [8]. (Nem vou falar dos relatos sobre falsa comunicação da “causa mortis”.) Porque perderam a fé no divino, continuaram a xingar e a delatar quem não aderiu ao comportamento de manada, à histeria; quem não entrou em pânico; quem não demonstrou fraqueza e nem tentou impor ao outro sua crença no cientificismo e em políticos e burocratas mal intencionados. Queriam a bênção para continuar suas vidas de religiosos “pro forma”, que não acreditam no real poder do Deus que cura, mas acreditam nos “deuses” da ciência que a cada minuto inventam soluções inócuas para combater o vírus e preveem um número futuro aleatório de vítimas [9].
As autoridades eclesiais da Igreja Católica, instituição que é expoente no processo civilizatório do Ocidente e do Brasil – inclusive estimulando o seu descobrimento [10] –, praticamente se calaram, como já vêm se calando há muito, abrindo mão de combater o bom combate em nome de um bem ou de uma paz que nunca virá, incapazes de perceber que Gog e Magog e seus seguidores jamais se sentirão saciados, mas estarão sempre preparados para empreender novos avanços até a total destruição da Igreja de Cristo.
Ah! Se tivéssemos ao menos a fé dos leigos da Idade Média, a fé perdida para o lobby “iluminista”, antropocentrista, com a facilitação dos vários grupos de interesse infiltrados ao longo da história. Já não é possível contar com a mesma fibra, pois a Igreja, conformada, aos poucos foi se adequando ao mundo moderno. Tanto que a maior parte de seus membros hierárquicos prestou apoio ao slogan manipulador do “fique em casa”, ou apenas se calou diante dos fatos e da invasão do Estado no direito ao culto, a qual jamais irá retroceder, mas só avançar [11, 12, 13], até o ponto em que os sacramentos não poderão ser celebrados, o Código Canônico não poderá ser aplicado e o catecismo não poderá ser ensinado por determinação de normas seculares.
Naquele dia, no Vaticano, a belíssima imagem do rosto de Cristo no crucifixo, molhado pela chuva, comoveu a todos. Ele parecia chorar por sua Igreja, que padece pelas sucessivas ações de grupos que querem destruí-la desde dentro, e por seus filhos, vítimas do vírus, da maldade do socialismo, da ganância pelo poder e da ignorância, toda a obra do pai da mentira [14].
A solenidade emocionou; só não emociona, nessa hora tão sensível, a forma covarde, conformada, silenciosa, polida e, por vezes, maliciosa com que o Clero, que já foi honrado por inúmeros santos mártires, vem conduzindo esse tema tão importante à sua própria sobrevivência e à salvação dos que creem.

Notas
[1] Bênção Urbi et Orbi e Indulgência plenária com Papa Francisco. Rede Vida, 27/03/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VUIDliD2MVo&t=1030s;
[2] Peste negra: se transmitida por pulgas e ratos infectados, é a peste bubônica; se transmitida pelo contato com humanos, é a peste pneumônica;
[3] Souza, Francisco. Conheça a história do ícone para o qual o Papa rezou pedindo o fim da Pandemia. Comunidade Shalom, 28/03/2020. Disponível em: https://www.comshalom.org/conheca-a-historia-do-icone-para-o-qual-o-papa-rezou-pedindo-o-fim-da-pandemia/;
[4] As duas orações do Papa para invocar o “fim da pandemia”. CNBB – Regional Leste 2, 16/03/2020. Disponível em: https://www.cnbbleste2.org.br/noticia/as-duas-oracoes-do-papa-para-invocar-o-fim-da-pandemia--16032020-102613;
[5] DAUD, Maria Paola. A história do crucifixo milagroso que salvou Roma da peste. Aleteia, 19/03/2020: https://pt.aleteia.org/2020/03/19/a-historia-do-crucifixo-milagroso-que-salvou-roma-da-peste/;
[6] Texto integral da homilia do Papa Francisco neste 27 de março. Vaticano: Vatican News, 27/03/2020 Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-03/papa-francisco-homilia-oracao-bencao-urbe-et-orbi-27-marco.html;
[7] COSTA JR., Hélio. Governador de Santa Catarina exige hóstia embalada para comunhão. Santa Catarina: Estudos Nacionais, Disponível em: https://www.estudosnacionais.com/23317/governador-de-santa-catarina-exige-hostia-embalada-para-comunhao/;
[8] BRANDINO, Géssica. Prefeitura de São Paulo restringe horário e público em velório para evitar contágio por coronavírus. São Paulo: Uol, 19/03/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/prefeitura-de-sao-paulo-restringe-horario-e-publico-em-velorio-para-evitar-contagio-por-coronavirus.shtml;
[9] Sem isolamento e ações contra a Covid-19, Brasil pode ter até 1 milhão de mortes na pandemia, diz estudo. G1, 27/03/2020. Disponível em https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/27/sem-isolamento-e-acoes-contra-a-covid-19-brasil-pode-ter-ate-1-milhao-de-mortes-na-pandemia-diz-estudo.ghtml;
[10] Portugal, um país extremamente católico, ao se lançar ao mar, também buscava cumprir o que nos exorta o Evangelho de São Marcos 16,15: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura”;
[11] Estado de Sergipe. Decreto nº 40.598, de 18 de maio de 2020. Disponível em: https://www.se.gov.br/uploads/download/midia/37/5c2a2962e8b8c9e943342d2836532fe7.pdf;
[12] Estado de Pernambuco. Decreto nº 49.024, de 14 de maio de 2020. Acrescentou o inciso XXXVII ao Anexo I do Decreto nº 49.017/2020, passando a considerar atividade essencial [apenas] a celebração religiosa transmitida por meios de comunicação. Disponível em: https://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?tiponorma=6&numero=49024&complemento=0&ano=2020&tipo=&url=;

[13] Nota Oficial dos Bispos de Santa Catarina. CNBB – Regional Sul 4: Florianópolis, 22/04/2020. Disponível em: https://cnbbsul4.org.br/wp-content/uploads/sites/77/2020/04/Deus-nunca-nos-abandona-Nota-Oficial.pdf;

[14] Evangelho de São João 8,44: “Vós tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”.



Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.