sexta-feira, 13 de agosto de 2021

O Chuveiro de alkingel

 

Tempos difíceis nunca implicaram letargia na vida de Dione Ismit de Souza. Enquanto a maior parte da população sofria atônita com a pandemia do Covid-19, absorvendo as notícias apocalípticas veiculadas nas redes sociais e na TV pela grande mídia arcaica e prostituída, ele procurava soluções e lutava para patentear, o mais rápido possível, seu revolucionário “chuveiro de alkingel”, que sonhava ver instalado em cada unidade das redes de supermercado pelo país e, quiçá, em cada estabelecimento comercial do mundo livre.

Arranjar um investidor foi o mais difícil, pois o dinheiro circulante estava correndo para as mãos das maiores empresas e conglomerados nacionais e mundiais, dada a estrutura que possuíam para atender às demandas, com observância do protocolo exigido e repetido como mantra por especialistas, políticos, jornalistas e histéricos.

Douglas Castro foi o investidor, e o produto fez um estrondoso sucesso, especialmente entre os que vivem a melhor idade. Os idosos, esses meninos crescidos, faziam compras a conta-gotas e formavam filas nos boxes coletivos para se imunizarem com o álcool milagroso, da raiz do cabelo – quando os tinha – às plantas dos pés. Não demorou muito, os anciãos passaram a levar consigo os netos, que iam se divertir nos chuveirões coletivos.

Comemorando a ideia revolucionária, especialistas da área da saúde e de humanas, muito entendedores das ciências, surgiram aos borbotões, e de pronto passaram a discutir a eficácia desse método de tratamento e de combate à doença. Pulularam palestras e debates na mídia e na academia, entre pessoas com entendimento consensual; artigos acadêmicos bajulatórios dirigidos ao produto foram escritos; e revistas publicaram inúmeras matérias. Tudo foi compartilhado incansavelmente nas redes sociais e replicado em blogs e em colunas de entusiastas da pandemia. ONGs comprometidas com a promoção de um mundo melhor defenderam combater o vírus chinês causador da moléstia com um chuveirão em cada recôndito desse mundo de ai meu Deus. A empreitada, logicamente, estava vinculada a doações milionárias, pois ninguém é de ferro.

Como estância lúdica de imunização, o chuveirão virou um local de sociabilização, sendo palco de encontros com hora marcada e tudo. Com efeito, além da população infantil e da terceira idade, a novidade também conquistou a paixão e a adesão dos histéricos, que não saíam de casa se não tivessem fortemente protegidos.

Quando os shoppings centers aderiram ao projeto, a euforia das pessoas causou inconvenientes escorregões e estabacos nos alegres e afoitos candidatos a alcançar o milagre, mas isso foi rapidamente contornado com a instalação de pisos antiderrapantes especialmente desenvolvidos para esse nicho de mercado.

Depois do piso especial vieram as máscaras apropriadas para usuários do chuveiro; e com o mercado em franca expansão, quem pegou carona na ideia foi a dupla visionária Nico e Neco — dois desmiolados, famosos nas redes sociais por promoverem brincadeiras edificantes numa banheira de nutella. Eles criaram modelos de banheiras e piscinas de álcool em gel, para aluguel ou vender, para instalação em clubes, em condomínios, em brinquedotecas e afins, e em festas nababescas de casamento, de aniversário e também nas comemorações de final de ano, fossem realizadas em lares ou em empresas.

A seguir surgiram as máscaras de segunda geração, ainda mais duráveis que as anteriores, e que permitiam aos usuários se refastelarem nas piscinas por mais tempo, sem deterioração do material.

Essas soluções deram tranquilidade aos governantes que, devido à alta periculosidade do vírus — cujos estragos eram destacados a cada minuto e segundo no noticiário —, determinaram o fechamento de praias, parques e praças. Por outro lado, também permitiram o endurecimento no trato com os negacionistas fascistas que praticavam desobediência civil e ideológica. Com pulso forte, o Estado, castigou-os física, psíquica e financeiramente; esses perniciosos que sequer deveriam ser catalogados como seres humanos.

O Presidente, que era também um negacionista, logicamente foi alijado de seus poderes em tempo, e não pôde determinar regras comportamentais à população em razão de inúmeras decisões das Cortes de Justiça, devidamente alinhadas à ONU.

Quando os mais abastados começaram a instalar chuveiros e boxes de álcool em gel nos banheiros e nas entradas das residências, a fim de higienizar moradores e visitantes, não demorou a virar exigência estatal. A medida visava a contornar o problema gerado com a proibição de visitas decretada pelos governadores de todos os entes federativos, o que gerou a indignação de parcela significativa da sociedade. O controle seria feito pelas Agências Reguladoras Estaduais de Visitação, cujo escopo era distribuir cadernetas que conferiam aos cidadãos o direito a até seis visitas anuais, adstritas às zonas territoriais onde se encontravam suas residências. Os locais de visitação, logicamente, deveriam estar equipados com chuveiros, banheiras ou piscinas; e para receber o vale-visita, o contemplado deveria ser vacinado — àquela altura, duas doses por mês — e portar o chip de controle de movimentação introduzido no corpo, uma ideia revolucionária chinesa. A pandemia já durava considerável número de anos, e todas essas medidas constavam numa Agenda da Organização Mundial de Saúde, liderada por um matemático guatemalteco.

Por outro lado, era concedido livre trânsito às autoridades, e apenas a elas, por serem muito bem capacitadas para o enfrentamento à ameaça real de erradicação da vida humana, culpa dos próprios humanos, conforme relatavam especialistas.

Os negócios da “Ismit In Gel” chamavam a atenção de empresários e de autoridades nacionais, vinculados ao governo único e global exercido há alguns anos a partir da ONU. Havia o interesse na aquisição da empresa, para adaptação e enfrentamento de outras ameaças iminentes de extinção da vida humana, fosse através de novos vírus mortais manipulados por cientistas autorizados por países democráticos, fosse pelo aquecimento ou pelo resfriamento do planeta, conforme a alteração das estações climáticas e dos pareceres da comunidade científica ligada ao governo único. Por isso era necessário adquirir suas patentes e adequá-las para o combate às novas ondas de mortandade.

Dispostos a fazer qualquer coisa para tomar os negócios de Ismit para si, com um não como resposta, a patente foi imediatamente quebrada, sob a alegação de se tratar de serviço essencial de manutenção da vida humana; e ele logo percebeu que não seria socorrido pelo direito de propriedade, em face da colisão com os princípios relacionados à promoção dos direitos humanos, conforme mostrava a jurisprudência dominante.

Mas Dione Ismit havia sido prudente e possuía uma carteira diversificada de investimentos; por isso não quebrou na cepa. Porém, ao tentar encarar aqueles que o prejudicaram, foi perseguido, humilhado e levado à falência por decisões judiciais e fiscalizações constantes. O Estado passou sobre ele como um rolo compressor. Atarefado demais, não se cercou dos cuidados necessários para enfrentar as grandes transformações geopolíticas ocorridas nos últimos tempos.

Não durou muito. Morreu de repente, de desgosto, apesar de aparentemente ter contraído uma doença degenerativa que acelerou, e muito, o processo — e não houve junta médica que explicasse.

Seus filhos foram mais espertos. Cresceram progressistas num lar burguês conservador. O pai investiu pesado na educação deles, mas não atentou que seus herdeiros se distanciavam dos valores que considerados inegociáveis pelo pai. Estava atarefado demais, como foi dito.

Os rapazes viraram burocratas; aderiram à religião estatal e perseguiram com afinco quem quer que estabelecesse empreendimentos não aprovados pelas autoridades ou que a elas não obedecesse, independentemente do teor de suas decisões.

Infelizmente, ao final, foram também tragados pelo sistema. Acusados de corrupção, morreram executados, pois a revolução se alimenta dos próprios revolucionários.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista