terça-feira, 28 de setembro de 2021

Meu amigo Cadu

 

 

Há duas noites fui visitado em sonho por uma figura bastante frequente na minha infância, um amigo querido de quem eu havia me separado, infelizmente, de forma trágica.

Acordei num sobressalto — era um pesadelo —, mas as coisas foram normalizando e, como não conseguia voltar a dormir de imediato, o banzo me atingiu em cheio.

Lembrei-me de uma das poucas fotos antigas que ainda possuía, já que a grande maioria delas — e não eram muitas — haviam sido consumidas num incêndio dramático ocorrido num cômodo da casa dos meus pais, quando eu ainda era jovem.

Éramos amigos desde sempre, e a foto era uma pose do time de futebol que formamos para realizar um sonho de infância.

Entrávamos na adolescência. O cenário era a quadra onde, minutos depois, disputaríamos nossa primeira final. Perderíamos de dois a um para um time mais organizado, mais entrosado, e com mais investimentos, se considerarmos a realidade daquele bairro, cujos moradores, em grande maioria, eram operários.

Ele estava lá. Aliás, nós estávamos lá. Felizes, sorrindo, agachados e abraçados, radiantes com o que havíamos conquistado até ali.

Poucos anos depois, Cadu e eu acabamos nos separando por contingências da vida. Mudamos de colégio, ele foi morar com a avó em outro bairro, porque era mais próximo ao trabalho que arranjou. Mesmo assim, continuávamos fazendo uma grande festa nas poucas vezes em que nos encontrávamos.

Ele era moreno claro, olhos verdes, usava corte baixo no cabelo castanho e tinha braços compridos, de macaco. Gostava de usar boné e roupas largas, bastante coloridas, e num desses encontros me surpreendeu quando vi que aquele bigodinho ralo que nasceu bem cedo já estava parecendo um guidão de bicicleta antiga.

Na última vez em que nos vimos, marcamos encontro numa boate, por telefone de disco. Contávamos com mais de dezoito e fomos tomar cerveja e uísque falsificado. A certa altura, ele me chamou para ir ao banheiro e puxou um sacolé com cocaína. Eu ainda estava espantado quando ele arrumou duas lacraias com rara destreza, naqueles pedaços de mármore colocados estrategicamente nos cantos dos banheiros, e disse que uma era minha. Eu disse não, ele ficou puto no resto da noite e acabamos perdendo contato para sempre.

Infelizmente, poucos meses depois recebi a notícia de que ele, por não ter dinheiro para bancar o vício, e já endividado com os traficantes, começou a fazer serviços de motorista para eles. O resultado foram os quinze tiros tomados numa emboscada feita por uma quadrilha rival. Seu corpo ficou todo perfurado, e ele ainda estampou a capa do jornal do dia seguinte, ficando conhecido como um dos cinco traficantes fuzilados numa guerra de quadrilhas em Niterói.

No sonho, ele vinha correndo pela rua e eu estava na porta de casa. Disse para eu ir para o portão de trás, queria falar comigo, mas não poderia ser ali porque dois homens armados o perseguiam.

Entrei em casa e voei para os fundos. Chegando lá, ele me entregou uma pistola sem munição e um pacote com drogas, tirado de dentro da bermuda. Pediu que eu guardasse e que voltaria mais tarde para pegar. Afirmou que aquilo jamais se repetiria.

Enquanto eu estava atônito, sem acreditar no que se passava, os homens chegaram. Mandaram-me entrar, fechar o portão e não voltar.

Fuzilaram meu amigo ali mesmo, impiedosamente. Foram disparados quinze tiros.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

O Chuveiro de alkingel

 

Tempos difíceis nunca implicaram letargia na vida de Dione Ismit de Souza. Enquanto a maior parte da população sofria atônita com a pandemia do Covid-19, absorvendo as notícias apocalípticas veiculadas nas redes sociais e na TV pela grande mídia arcaica e prostituída, ele procurava soluções e lutava para patentear, o mais rápido possível, seu revolucionário “chuveiro de alkingel”, que sonhava ver instalado em cada unidade das redes de supermercado pelo país e, quiçá, em cada estabelecimento comercial do mundo livre.

Arranjar um investidor foi o mais difícil, pois o dinheiro circulante estava correndo para as mãos das maiores empresas e conglomerados nacionais e mundiais, dada a estrutura que possuíam para atender às demandas, com observância do protocolo exigido e repetido como mantra por especialistas, políticos, jornalistas e histéricos.

Douglas Castro foi o investidor, e o produto fez um estrondoso sucesso, especialmente entre os que vivem a melhor idade. Os idosos, esses meninos crescidos, faziam compras a conta-gotas e formavam filas nos boxes coletivos para se imunizarem com o álcool milagroso, da raiz do cabelo – quando os tinha – às plantas dos pés. Não demorou muito, os anciãos passaram a levar consigo os netos, que iam se divertir nos chuveirões coletivos.

Comemorando a ideia revolucionária, especialistas da área da saúde e de humanas, muito entendedores das ciências, surgiram aos borbotões, e de pronto passaram a discutir a eficácia desse método de tratamento e de combate à doença. Pulularam palestras e debates na mídia e na academia, entre pessoas com entendimento consensual; artigos acadêmicos bajulatórios dirigidos ao produto foram escritos; e revistas publicaram inúmeras matérias. Tudo foi compartilhado incansavelmente nas redes sociais e replicado em blogs e em colunas de entusiastas da pandemia. ONGs comprometidas com a promoção de um mundo melhor defenderam combater o vírus chinês causador da moléstia com um chuveirão em cada recôndito desse mundo de ai meu Deus. A empreitada, logicamente, estava vinculada a doações milionárias, pois ninguém é de ferro.

Como estância lúdica de imunização, o chuveirão virou um local de sociabilização, sendo palco de encontros com hora marcada e tudo. Com efeito, além da população infantil e da terceira idade, a novidade também conquistou a paixão e a adesão dos histéricos, que não saíam de casa se não tivessem fortemente protegidos.

Quando os shoppings centers aderiram ao projeto, a euforia das pessoas causou inconvenientes escorregões e estabacos nos alegres e afoitos candidatos a alcançar o milagre, mas isso foi rapidamente contornado com a instalação de pisos antiderrapantes especialmente desenvolvidos para esse nicho de mercado.

Depois do piso especial vieram as máscaras apropriadas para usuários do chuveiro; e com o mercado em franca expansão, quem pegou carona na ideia foi a dupla visionária Nico e Neco — dois desmiolados, famosos nas redes sociais por promoverem brincadeiras edificantes numa banheira de nutella. Eles criaram modelos de banheiras e piscinas de álcool em gel, para aluguel ou vender, para instalação em clubes, em condomínios, em brinquedotecas e afins, e em festas nababescas de casamento, de aniversário e também nas comemorações de final de ano, fossem realizadas em lares ou em empresas.

A seguir surgiram as máscaras de segunda geração, ainda mais duráveis que as anteriores, e que permitiam aos usuários se refastelarem nas piscinas por mais tempo, sem deterioração do material.

Essas soluções deram tranquilidade aos governantes que, devido à alta periculosidade do vírus — cujos estragos eram destacados a cada minuto e segundo no noticiário —, determinaram o fechamento de praias, parques e praças. Por outro lado, também permitiram o endurecimento no trato com os negacionistas fascistas que praticavam desobediência civil e ideológica. Com pulso forte, o Estado, castigou-os física, psíquica e financeiramente; esses perniciosos que sequer deveriam ser catalogados como seres humanos.

O Presidente, que era também um negacionista, logicamente foi alijado de seus poderes em tempo, e não pôde determinar regras comportamentais à população em razão de inúmeras decisões das Cortes de Justiça, devidamente alinhadas à ONU.

Quando os mais abastados começaram a instalar chuveiros e boxes de álcool em gel nos banheiros e nas entradas das residências, a fim de higienizar moradores e visitantes, não demorou a virar exigência estatal. A medida visava a contornar o problema gerado com a proibição de visitas decretada pelos governadores de todos os entes federativos, o que gerou a indignação de parcela significativa da sociedade. O controle seria feito pelas Agências Reguladoras Estaduais de Visitação, cujo escopo era distribuir cadernetas que conferiam aos cidadãos o direito a até seis visitas anuais, adstritas às zonas territoriais onde se encontravam suas residências. Os locais de visitação, logicamente, deveriam estar equipados com chuveiros, banheiras ou piscinas; e para receber o vale-visita, o contemplado deveria ser vacinado — àquela altura, duas doses por mês — e portar o chip de controle de movimentação introduzido no corpo, uma ideia revolucionária chinesa. A pandemia já durava considerável número de anos, e todas essas medidas constavam numa Agenda da Organização Mundial de Saúde, liderada por um matemático guatemalteco.

Por outro lado, era concedido livre trânsito às autoridades, e apenas a elas, por serem muito bem capacitadas para o enfrentamento à ameaça real de erradicação da vida humana, culpa dos próprios humanos, conforme relatavam especialistas.

Os negócios da “Ismit In Gel” chamavam a atenção de empresários e de autoridades nacionais, vinculados ao governo único e global exercido há alguns anos a partir da ONU. Havia o interesse na aquisição da empresa, para adaptação e enfrentamento de outras ameaças iminentes de extinção da vida humana, fosse através de novos vírus mortais manipulados por cientistas autorizados por países democráticos, fosse pelo aquecimento ou pelo resfriamento do planeta, conforme a alteração das estações climáticas e dos pareceres da comunidade científica ligada ao governo único. Por isso era necessário adquirir suas patentes e adequá-las para o combate às novas ondas de mortandade.

Dispostos a fazer qualquer coisa para tomar os negócios de Ismit para si, com um não como resposta, a patente foi imediatamente quebrada, sob a alegação de se tratar de serviço essencial de manutenção da vida humana; e ele logo percebeu que não seria socorrido pelo direito de propriedade, em face da colisão com os princípios relacionados à promoção dos direitos humanos, conforme mostrava a jurisprudência dominante.

Mas Dione Ismit havia sido prudente e possuía uma carteira diversificada de investimentos; por isso não quebrou na cepa. Porém, ao tentar encarar aqueles que o prejudicaram, foi perseguido, humilhado e levado à falência por decisões judiciais e fiscalizações constantes. O Estado passou sobre ele como um rolo compressor. Atarefado demais, não se cercou dos cuidados necessários para enfrentar as grandes transformações geopolíticas ocorridas nos últimos tempos.

Não durou muito. Morreu de repente, de desgosto, apesar de aparentemente ter contraído uma doença degenerativa que acelerou, e muito, o processo — e não houve junta médica que explicasse.

Seus filhos foram mais espertos. Cresceram progressistas num lar burguês conservador. O pai investiu pesado na educação deles, mas não atentou que seus herdeiros se distanciavam dos valores que considerados inegociáveis pelo pai. Estava atarefado demais, como foi dito.

Os rapazes viraram burocratas; aderiram à religião estatal e perseguiram com afinco quem quer que estabelecesse empreendimentos não aprovados pelas autoridades ou que a elas não obedecesse, independentemente do teor de suas decisões.

Infelizmente, ao final, foram também tragados pelo sistema. Acusados de corrupção, morreram executados, pois a revolução se alimenta dos próprios revolucionários.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Influenciadores decadentes



Surge uma nova casta, formada por pessoas iracundas, um chorume criado pelas redes sociais, sob a alcunha de influenciador digital da terceira via. São “profissionais” que já caíram em ostracismo depois de possuírem, em regra, muita relevância por detatacerminado período.

Aparentemente, por incapacidade própria, não souberam lidar com o sucesso e a vaidade; e pior ainda administram o fracasso.

Há muitos desses, mas abaixo serão tratados apenas aqueles que iniciaram seus passos junto ao incipiente movimento conservador no país e aos adeptos do espectro político da direita, resultado da revolta contra a espiral do silêncio em que os conservadores foram envolvidos durante os anos de roubalheira e vergonha protagonizados pela esquerda no poder (cujos frutos amargos colhemos sem previsão de acabar, em razão da ampla infiltração).

Tais personagens, em verdade, ganharam postos e prestígio, mas foram incapazes de se manter no topo, não fidelizando os seguidores que foram conquistados apenas por defenderem as ideias que, sem justificativa plausível (ou quiçá por algum tipo de ameaça ou oferecimento de vantagens desconhecidos), passaram a ofender de uma hora para a outra.

Alguns foram abandonados pelos verdadeiros produtores do conteúdo que apresentavam e tiveram que lidar com a própria deficiência cognitiva para continuar seu trabalho. Como não poderia ser diferente, falharam fragorosamente na abordagem de temas que não dominam. O público mais qualificado percebeu a farsa e se afastou, restando-lhes apenas gritar e xingar os agora desafetos.

Outros, por vaidade ou inveja, aparentemente traíram as convicções que os levaram ao sucesso. Alegando que "pensam com a própria cabeça" (o propriomiolismo), passaram a ofender seus companheiros de viajem, em especial os mais capacitados, pois não se dignam a olhar para baixo, apenas atiram para cima.

Interessante observar que todas essas subcelebridades que ascenderam e decaíram meteoricamente, atraíram para si espécies de peixes-piloto que buscavam ascensão profissional ou financeira; e eles não se opuseram porque é bom para sua imagem manter a panca de influente entre os influentes. Os peixes-piloto, como desde sempre foram personas irrelevantes, seguiram-nos forçosamente ou até mesmo por desconhecerem outro caminho.

Voltando aos influenciadores decadentes, a perda de likes, de joinhas e de comentários babaovísticos forjou pessoas frustradas, que não reagiram bem à irrelevância que já era esperada pelos conscienciosos. Aliadas à imaturidade, essas circunstâncias as levou a protagonizar situações vexaminosas e passíveis de dura repreensão pela baixeza de certas ações que levaram a efeito.

Como diria Fausto Silva, a fauna (desses pseudo-qualquer-coisa) é grande e abarca desde editores de livros a políticos, passando por figuras públicas, analistas políticos, músicos, chargistas, portadores de diplomas de Filosofia, publicitários, notórios trambiqueiros, jornalistas, funkeiros e profissionais das mais variadas áreas.

Espera-se que a birra não os conduza a aderir à escumalha que pretende enterrar o país de vez com o seu projeto de poder.

Todos seremos vítimas, com a exceção dos amigos do rei, mas uma coisa é mais certa que as outras: a revolução devora seus filhos, e normalmente os primeiros a sucumbir são aqueles que cerraram fileiras com os que ocupam o poder, para não se verem tentados a tomarem-no para si.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista


quarta-feira, 21 de julho de 2021

O Vampiro

  

Marcella Policarpa, segunda filha dos Almeida – depois ainda viriam os meninos, Viriato Jr. e Pompeu –, conheceu Augustinho no verão de 1990, num sábado de sol, na praia lotada. A moça, bobinha para os dezoito recém-completados, recheava com pujança a peça do recatado maiô que sua mãe, Lucrécia, católica tradicionalíssima, impunha a ela e à irmã. Morava no mesmo bairro da praia e tinha saído com as amigas de colégio — os pais a haviam deixado ir naquele dia, excepcionalmente, porque não puderam viajar para Araruama no fim de semana, já que dona Anastácia, a avó paterna, havia adoecido e precisava do filho e da nora na capital. Como condição, teve que levar os irmãos mais novos, de onze e seis anos.

Augustinho fumava maconha com sua gangue de desajustados quando, de longe, avistou a delicinha. Feio de doer, disse para si próprio que tentaria faturá-la, sem saber que ela, que até ali só tivera paixões platônicas, estava prontinha pro abate.

Ele alcançou Cella – assim era chamada em família – por intermédio dos irmãos. Após observá-la levando-os à beira do mar e admoestando-os sobre seus perigos, ele se aproximou e começou a fazer estruturas disformes com a areia molhada sobre a areia seca. Olhou para as crianças, disse que estava construindo um castelo e perguntou se não queriam ajudar. Eles concordaram; ela achou o gesto simpático e ficou aliviada ao ver que as crianças ficariam ocupadas com a “construção” e o mar não representaria uma ameaça.

Meia hora depois, ele entregou os meninos, que trazia pelas mãos; ela conversava distraída e nem atinou que o estranho poderia tê-los levado consigo. Mal sabe você, caro leitor, que verdadeiro sequestro ocorreria tempos mais tarde, não da forma descrita na tipificação penal: o bom senso, o ânimo, o sentido de união e até valores de alguns membros da família seriam sequestrados por aquele psicopata.

Ele agradeceu por confiar-lhe os anjinhos. Lamentou devolvê-los, mas precisava ir, pois morava na periferia e estava tarde. Perguntou onde estudava; o que fazia; e se poderia encontrá-la novamente. Ela respondeu que sim, poderiam se encontrar; estava no último ano do Santo Ignácio, no turno da manhã; às terças lanchava no Burgão da Praia, lá pelas três da tarde, e às quintas pegava um cineminha e depois ia tomar sorvete na lanchonete Positano. Completou afirmando que só ia à praia no meio da semana, e com a irmã mais velha, quando ela estava de folga.

O caboclo pensou longe nesse momento. Conheceu menina de família estruturada, respeitosa e respeitável, totalmente diferente das barangas, hippies e drogadas que costumava frequentar; e teve a sensação de que valia o investimento, pois certamente obteria vantagens no futuro. As informações ficaram gravadas na mente daquela figura com memória de elefante, faro de cão e rapinagem de águia; naquele momento ele creu que havia acertado o milhar. Investiria para buscar ajuda moral e financeira por toda a vida. — exatamente o que aconteceu, como será contado adiante.

Encontraram-se algumas vezes e a conquista não foi difícil. Começaram a namorar às escondidas, mas, observando desconfiada as saídas rotineiras, a mãe exigiu que levasse os irmãos ou não sairia mais. Ela levou, e as crianças, que já lhe eram simpáticas, também foram seduzidas pelo Don Juan do subúrbio. Nada contaram à mãe.

Quando Cella levou Augustinho para conhecer os pais, o caminho estava aplainado: a moça, apaixonada; os irmãos menores, cúmplices, fizeram lobby em seu favor; e o sogro foi conquistado de cara. A sogra, vendo o marido entusiasmado e a filha feliz, não ousou se opor, apesar da velha pulga incomodar atrás da orelha.

Augustinho se afastou dos amigos e parou de fumar maconha, mas continuou tomando álcool destilado escondido. O cheiro disfarçava mascando cravo; os olhos vermelhos e esbugalhados, características de quando estava bêbado, passavam despercebidos diante das guardas arriadas; a fala enrolada também não chamava a atenção porque era naturalmente assim.

Não demorou muito, foi marcado o casamento. A notícia das bodas foi comemorada por quase todos, sendo as raras exceções: a mãe, que continuava incomodada sem saber por que; o menino mais velho, Viriatinho, agora com doze, quase treze anos, que sentiu que a irmã mudou para pior desde a chegada do cunhado; o noivo da irmã, Lurdinha, a primogênita do casal, que o achava um canalha; e uma tia bastante vivida que não gostava da aura dele, mas suas opiniões não eram respeitadas por ser uma porra-louca. Qualquer outro que percebeu aquele exemplo clássico de alpinismo social calou-se para sempre, e o enlace correu naturalmente.

A noiva fez o enxoval sob a gerência da mãe; o pai patrocinou tudo, pagou das taxas e emolumentos até o aperitivo final da festança, providenciando, ainda, convites, flores, aluguel do salão e até o terno do pai do noivo — não fosse assim, o velho não compareceria.

O noivo, da sua parte, levou para o casamento o peru e uma dívida de cinquenta cruzeiros de cana, cerveja e fichas de sinuca que estavam penduradas há meses no Bar e Sinuca do Seu Nicanor.

Foram morar numa das casas que Seu Viriato um dia deixaria de herança para os filhos, e que alugava para ajudar a compor a renda familiar.

Em menos de um ano nasceu José, o primeiro filho do casal, com síndrome de down. A falha genética foi descoberta no ultrassom — exame de translucência nucal — e Augustinho tentou de tudo para convencer a esposa a abortar. Com muito custo, ela considerou assassinar o filho em seu ventre, mas foi demovida do ato abominável pela radical contrariedade da mãe, que ainda exercia alguma influência sobre ela.

Após o nascimento, o pai mal disfarçava o desprezo pela criança. Porém, percebendo o carinho e os cuidados que os avós lhe dispensavam, mudou o comportamento, encarando a situação sob nova perspectiva. Acostumado a fingir, representou a personagem de um pai exemplar, com o intuito de obter vantagens. Passou a pedir dinheiro ao sogro, alegando que não conseguia cobrir os gastos com a criança, e ato contínuo começou a voltar à casa de madrugada, chegando até a agredir Cella fisicamente algumas vezes. Ela, logicamente, escondia tudo da família.

O genro explorou a bondade do sogro até ver a documentação da casa transferida para seu nome e o de Cella, que algum tempo depois faleceu de forma repentina e misteriosa, acometida de moléstia que nem uma junta médica conseguiu diagnosticar.

Certo dia, alegando que não reunia condições de criar José, Augustinho entregou o menino à sogra, prometendo que não o abandonaria por muito tempo; queria apenas acertar o rumo após a desgraça que se abateu sobre sua vida. A avó queria isso mesmo, apesar de saber que acolheria o neto num lar onde já não reinava a paz, pelas inúmeras brigas entre ela e Viriato por causa do genro que o marido tanto amava — Viriato impediu a exumação no corpo de Cella para descobrir a verdadeira “causa mortis”; não queria ferir os brios do viúvo, que sofrera a perda da esposa, com acusações infundadas. O homem sequer observou o comportamento do adolescente Viriatinho, que não parava em casa e dava sinais de envolvimento com álcool e drogas; nem o afastamento dos outros filhos.

Augustinho, pilantra que só, conseguiu vender a casa através de um trambique, pegou o dinheiro e ganhou o mundo. Jamais se soube dele novamente.

O sogro, amargurado, mas sem nutrir maus sentimentos contra o genro, teve morte súbita, sentado, olhando o tempo. Lucrécia viveu sem viver enquanto cuidava de José, preparando-o para levar uma vida dentro da possível normalidade, sem cuidados excessivos e desnecessários. Aguentou até ele atingir a maioridade e logo em seguida sucumbiu.

Coube a Lurdinha a guarda do rapaz após o passamento da mãe.

Apesar de tudo, José era uma lufada de frescor na vida dos tios e, aos trancos e barrancos, agregava os tios nas reuniões familiares, mantendo aproximados os cacos que restaram daquela família que um dia fora estruturada, invejável e feliz.

 

 

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

A triste e relevante história das Conceição

   

Dora Lúcia da Conceição, a Dorinha, era gêmea de Maria Lúcia da Conceição, a Maricota. Eram as únicas filhas da D. Conceição, que socorria pelo nome de Eletildes Lúcia da Conceição — procure abstrair, caro leitor, as confusões causadas pelos nomes das “Lúcias da Conceição” —, uma preta retinta que coxeava da perna direita.

Mulher digna, religiosa e prendada, vestia-se com recato e trazia sempre um lenço à cabeça que combinasse com os vestidos compridos. Cortou um dobrado para criar, sozinha, as meninas, pois o pai delas, um pescador galego metido a oficial da Marinha, cometeu a gentileza de sair para comprar cigarros quando ainda não tinham completado o nono mesversário e jamais retornou à casa para infernizar a vida de quem vivia ao seu redor, como era do seu feitio.

Empregada doméstica — cozinheira de forno e fogão —, ela achava que sofria muito quando encontrou um alçapão no fundo do poço: foi despejada da meia água em que morava com as filhas no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, e na sequência foi impedida de levar as meninas para viverem com ela, em Niterói, no quartinho 3x2 oferecido pela patroa — oferta feita, como se vê, mais para encerrar os atrasos costumeiros da empregada que para promover a prática cristã de estender as mãos aos necessitados.

Sem alternativas, foi viver na casa dos patrões e deixou as meninas sob os cuidados da avó, D. Lúcia da Conceição — prometo ficar quieto dessa vez —, e de duas tias desempregadas, Veralú e Analú, ambas Conceição, que viviam com a mãe, sustentadas pela pensão da velha, que andava mais para lá do que para cá.

O trabalho duro se transformou num regime semiescravo, pois era a primeira a acordar e a última a se recolher; não tinha folga, não recebia dispensa nem tirava férias, algo inconcebível para sua patroa, a socialite Nonata Mascarenhas Paranhos, a Natinha Paranhos, que pagava os direitos da empregada com o dinheiro contado.

Recebendo parcas visitas da mãe, as meninas foram crescendo. Sobre o pai, acreditavam que era um herói da Marinha de Guerra, morto em alto-mar enquanto salvava os tripulantes da Corveta em que servia, durante uma tempestade. Era o que lhes contara a mãe, e os familiares tiveram o bom senso de não desmentir.

Numa triste sequência temporal, primeiro faltou a avó e logo em seguida foi a vez da mãe, em exatos dois meses. As gêmeas, contavam com onze anos, cinco meses e dez dias, e em meio ao sofrimento foram afastadas violentamente.

Natinha Paranhos tratou logo de dividir o espólio de D. Conceição: levou Dorinha para sua casa e despachou Maricota para ajudar uma prima porra-louca que vivia com a mãe, D. Durvalina, numa chácara em Saquarema. As tias das meninas ensaiaram uma reclamação, mas Natinha puxou quatro notas de duzentos reais e, despejando dois lobos guará na mão de cada uma delas, nada mais ouviu.

As meninas sofreram com a adaptação. Emagreceram e ficaram amuadas por um bom tempo; só redescobriram a felicidade no dia em que se encontraram numa confraternização organizada por Natinha para seus parentes. Mas não estavam ali para brincadeiras ou matar saudades, e sim para cuidar dos preparativos, da condução do convescote, da louçaria e das acomodações dos convivas.

 Para a sorte de ambas, havia ao menos duas dessas confraternizações de família por ano, e foi num desses encontros que Maricota, a mais esperta, levou anotado o número do telefone da casa de Deca, a prima de Natinha Paranhos, e o entregou à irmã, para se falarem quando sentissem saudades. Já na segunda ligação, porém, a sonsa da Dorinha foi descoberta e levou uns catiripapos e um castigo por desperdiçar os pulsos de telefone da patroa — a reprimenda de Maricota foi mais suave, feita aos risos.

Alguns anos se passaram e veio o falecimento de D. Durvalina. Deca, que era homossexual, resolveu morar numa comunidade de lésbicas em Friburgo, e para evitar constranger Maricota — que era religiosa como a falecida mãe —, dispensou a moça. Antes, porém, entregou-lhe generosa soma de dinheiro como sinal de gratidão pelo carinho com que cuidou dela e da mãe durante aqueles anos.

Maricota voltou a Niterói para assumir um emprego que Dorinha arranjou em segredo, na casa de D. Josefa Militão, amiga de D. Miguelina Mascarenhas, mãe de Natinha Paranhos. A idosa, que havia sofrido uma queda e precisava de cuidados especiais, ficou encantada com a moça, que chegou para ficar pouco tempo, mas permaneceu até a morte da patroa. Então, a filha de D. Josefa, Carla Seabra, moradora da Tijuca, a contratou; e foi na nova residência que Maricota conheceu o futuro marido, um porteiro do condomínio que trabalhava no horário noturno.

Carla Seabra, muito satisfeita, só dispensou Maricota anos depois, para trabalhar para seu filho do meio quando ele foi pai pela primeira vez, porque não confiava na nora para cuidar do neto. A nora, carne de pescoço, não ficou mais de um ano com Maricota, e a despachou para trabalhar com uma prima que morava na Lagoa.

Com tantas mudanças, Maricota angariou mais experiência que Dorinha, que trabalhou na mesma casa por décadas. Conviveu com milionários descolados, dotados de “consciência social”, daquele tipo que banca a educação da empregada ao mesmo tempo em que a explora nos horários, ou a leva em suas viagens para cuidar do café pequeno, como crianças, lavagem de roupas, despacho de malas etc. Maricota trabalhou para burro, mas fez faculdade de contabilidade. Nunca exerceu a profissão, embora tivesse o diploma de pêlo de cordeiro, presente da patroa, enquadrado na parede.

Dorinha completou o segundo grau. Foi na escola que conheceu Feliciano, seu marido, responsável pelos serviços gerais da instituição e o homem que realizou todos os seus sonhos, que eram simples. Ele chegou a admitir que Dorinha levasse a D. Durvalina para morar em sua casa depois que Natinha decidiu enfiar a mãe num asilo — haviam chegado o ocaso da anciã e a necessidade de muitos cuidados, e justamente na época do nascimento do primeiro bisneto de Natinha.

Quando nasceu a sua neta, Dorinha pediu a aposentadoria, mas Natinha, mandona que só, não aceitou. Concordou em diminuir o horário de expediente, mas exigiu que continuasse trabalhando em sua casa para coordenar o serviço das demais empregadas, além de comparecer em algumas recepções do fim de semana, quando seria remunerada por fora. A situação, porém, não durou muito. Bastou encontrar outra moça capaz de realizar o serviço que Natinha a dispensou sem maiores justificativas.

Dorinha ficou satisfeita. Enfim, havia chegado a hora de curtir a vida ao lado do marido. Estavam sozinhos, pois os filhos casaram e ganharam o mundo. Para seu azar, porém, Feliciano adoeceu, e coube a ela cuidar de mais um doente dentre tantos que cuidou no curso de sua vida dedicada ao próximo. Aquela, aliás, parecia uma sina dos membros da família Conceição.

Maricota, aparentemente, teve maior sorte. Após se aposentar, ela e o marido, que já estava aposentado, compraram uma casa no interior de Maricá, perto da praia — cerca de vinte e cinco minutos de carro —, e um Fiat Uno conservadão. Como o Senhor não os havia abençoado com filhos, pretendiam viver naquele paraíso sozinhos até o fim de seus dias.

Mas o destino prega as suas peças...

Oito meses se passaram e Maurício, esse era o seu nome, teve morte súbita, consequência de um aneurisma cerebral que sofreu enquanto limpava os caranguejos e tomava caipirinha.

Feliciano faleceu cerca de dois anos depois, já muito castigado pelo câncer.

Maricota, que havia voltado para São Gonçalo, perguntou à irmã se não queria viver com ela em Maricá. Disse que a casa ainda estava lá, meio abandonada, servindo apenas para alugar por temporadas. Poderiam ver gente nova, ir à praia, à lagoa..

Dorinha aceitou e lá se foram as duas viverem juntas novamente, e passaram alguns anos naquela vidinha sem graça, com a rotina quebrada apenas nos dias de Feira e de Missa.

Certo dia, Dorinha estranhou que a irmã tivesse acordado tão cedo, pois não estava no único quarto da casa, onde dormiam. Ainda não eram três da manhã. Ela se levantou para fazer o xixi da madrugada e, ao caminhar meio trôpega pelo corredor, deparou-se com o corpo de Maricota caído, com uma poça de sangue ao lado, escorrido da cabeça, provavelmente machucada ao bater na quina da mesa de jantar enquanto desabava, em razão do infarto fulminante posteriormente diagnosticado.

Quase sem acreditar, e apavorada, Dorinha sentiu uma dor lancinante no peito e foi se alojando, lentamente, ao lado do corpo da irmã até cair igualmente morta, de infarto, logo após, quem sabe, perceber que viver não faria mais nenhum sentido, pois não lhe havia restado mais ninguém para cuidar.

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

O médico e o monstro advogado

  

Dr. João Miguel, um homem de posses, deu muito duro para construir seu patrimônio. Era encegueirado por dinheiro e, para aumentar ainda mais a fortuna amealhada, resolveu empreender esforços extras que, digamos, não eram muito recomendáveis, ao menos na forma em que procedeu. É necessário observar que, no curso de sua carreira laureada na Medicina, de tanto que aprontou fazendo esforços extras, teve que se ver com o fisco e até com a polícia. Por conta disso, viu-se obrigado a desembolsar boas somas de dinheiro, o que perturbou deveras sua paz de espírito.

Para seu desespero, então, não lhe restava alternativa senão constituir um profissional da categoria que costumava castigar com os piores adjetivos. Nas rodas de amigos, chamava os advogados de aves de rapina; de depenadores de primeira grandeza que, ao serem procurados por alguém necessitando de seus serviços, armavam o bote para tirar-lhe os últimos cobres — ou mesmo o couro —, mediante artifícios, malandragens e quejandos.

Cabem, aqui, parêntesis. É comum ouvir falas com tom de reprovação e de desprezo em desfavor da advocacia, categoria que, devemos admitir, abriga verdadeiros pavões, ególatras e desonestos. Mas não há motivo para generalizações, com desprezo à consideração sobre o indivíduo. Veja que esse tom quase nunca é destinado aos profissionais de outras áreas, certamente por se acreditar que elas atraem o gosto de virgens vestais, ou conferem a quem as pratica uma aura de santidade. Por outro lado — não podemos desprezar —, há quem possua uma imagem superestimada de si próprio, enquanto não passa de um arrogante, insensível e desonesto, nada devendo ao tão criticado advogado; e sendo até, por vezes, sua verdadeira alma gêmea.

Voltando ao Dr. João Miguel, ele jamais confessou aos amigos que, apesar da implicância com os causídicos, sempre buscou a ajuda de um para livrá-lo das implicações com o Judiciário por seu envolvimento em situações, digamos, questionáveis. E procurava os da pior espécie, pois acreditava que quem não possui escrúpulos está mais apto a lidar com as instituições públicas voltadas à persecução penal e fiscal. Com efeito, não foram poucas as vezes que frequentou os escritórios do submundo do crime, como costumava dizer, para se livrar de uma picona enorme prestes a ser enterrada em seu rabo.

No início, chegou a acreditar que o jurisconsulto retiraria a naba de dentro dele a troco de vinténs, pois profissão de prestígio era a dele. Com o tempo, porém, percebeu não haver nada mais afastado da realidade. A cobrança era conformada à situação apresentada, e daí vinha o seu queixume.

Analisando a “teoria do pilantra da história”, a triste realidade é a de que muito profissional é considerado desonesto exatamente em razão do tipo de cliente que o procura. Os verdadeiros honestos, devo concordar, são esquecidos ou dispensados para dar lugar àqueles que sabidamente possuem contatos e entrâncias facilitadas, participam de maracutaias, subornam servidores públicos e são “chegados” dos magistrados.

Enfim, em inúmeros casos, a mesma régua serve para medir o ofensor e o ofendido.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

O Espantalho do Condomínio

 

Robervaldo Georgian de Bragança já entrara na melhor idade. Contava com sessenta e oito anos, mas sua aparência era de oitenta e cinco. A família Bragança, da parte do pai, que se desconfiava ser da linhagem dos Imperadores, havia desembarcado no Novo Mundo, vinda de Portugal, à época da Colônia — ou extensão territorial do Reino na América, como queiram os adeptos das diferentes perspectivas históricas —, e fizera fortuna nos ciclos econômicos, inclusive explorando o comércio escravagista. A fortuna, porém, havia se dissipado nos tempos de seu avô, não chegando um mísero cobre até ele. Pelo lado da mãe veio a veia armênia, e a junção das raças lhe conferia uma carranca que causava agonia nos mais sensíveis.

Tinha olhos grandes e negros, boca larga, com pêlos à mostra nas orelhas de elefante e no nariz, provável herança dos avanços muçulmanos Península Ibérica adentro. Era conhecido por Espantalho do Condomínio porque não cortava os cabelos encarapinhados, que cresciam arrepiados como os cultivados pelos cantores sertanejos dos anos oitenta do século XX, mas armados, por sua consistência. Para perplexidade geral, porém, usava barba bem escanhoada.

O apartamento em que morava, ele ganhou num sorteio feito entre os operários que participaram das obras que levantaram os prédios do condomínio, generosidade do rico empreiteiro que patrocinou todas as etapas da construção, desde o projeto à entrega.

Perambulava pelas ruas da cidade o dia inteiro, com velocidade impressionante, portando um cajado — em verdade, um varão de pendurar cortinas encontrado numa das caçambas de lixo que tinha por costume revirar. Ele era desses, apesar de aparentemente não precisar, dada a vida espartana que levava, sem filhos ou até passarinho para dar alpiste; e o grosso dos gastos do apartamento era arcado por seu irmão e um amigo, que moravam com ele sem pagar aluguel. Aparentemente, possuía saúde de ferro e por isso não consumia a aposentadoria, que não era das piores, com os remédios que normalmente funcionam como ralos por onde escoa o dinheiro de velhinhas e de velhinhos aposentados e pensionistas.

Possuía uma boa cultura e esbanjava conhecimento devido à constante leitura de clássicos, mas também se rendia a toda sorte de “teorias da conspiração” — segundo a linguagem popular —, fossem provenientes de histórias verdadeiras ou realmente falaciosas. Como é sabido, conspiradores, tiranos, psicopatas e mentirosos chamam teoria da conspiração suas maquinações, o que assegura a ignorância do homem médio sobre fatos verídicos que não devem ser repercutidos.

Tinha acesso à literatura produzida por sociedades secretas para fazer propaganda de suas atividades, mas também lia aquele tipo de livro que promete revelar o lado oculto dessas sociedades, sem que o escritor conheça patavinas de seus meandros. Some-se a isso o fato dele ter frequentado algumas reuniões da Rosa-Cruz e da Maçonaria, e o contato mantido com alguns "línguas soltas" que contrariavam as determinações ancestrais dessas ordens. Dessa miscelânea retirava sua suposta autoridade sobre os mais variados temas.

Gostava de política, religião e comportamento humano; e uma simples conversa com ele resultava numa profusão de informações encontradas e desencontradas, com potencial de aturdir o interlocutor. Acreditava-se que o mix de conhecimentos absorvidos o deixara louco. Ele, porém, tentava apenas interagir com pessoas mal informadas, grosseiras, deselegantes, insinceras, consumidoras assíduas de produtos da grande mídia e de best sellers expostos com destaque nas prateleiras das livrarias e nas listas de mais vendidos publicados em colunas especializadas — o tipo de gente cuja cota de leitura é a de um exemplar por ano (ou década), que gosta de falar sobre o que não conhece.

Alguns ainda hoje arriscam dizer que ele era evitado por questões ideológicas, já que era anti-esquerdista. A desculpa oficial, contudo, era a de que o tempo custa caro e deve ser bem administrado para oportunizar o descanso, a alimentação, o trabalho, os deslocamentos e o acesso às redes sociais. A Robervaldo, então, restava disputar o espaço destinado à aquisição de cultura, ou seja, nenhum.

Mas o homem era incansável; seu objetivo de vida era alertar a todos dos perigos das trevas que rondam nosso mundo, e não se dava por vencido. De tanto insistir em abordar os vizinhos, acabou por espantá-los (espantalhos!), o que os fez evitar encontros desviando o caminho, retornando ou dando desculpas como a pressa — essa, grande parte das vezes, uma verdade.

E o que fez o velhaco quando percebeu isso?

Passou a espreitá-los para, no momento oportuno, dar o bote e colocá-los em xeque. Apertava ou atrasava o passo para parear com a vítima, voltava com ela quando estava indo, abordava-a na garagem enquanto manobrava o carro... Chegou ao ponto de se esconder por trás das pilastras e das caçambas de lixo, ocasião em que aproveitava para revolver as sacolas e tirar algo de seu interesse.

A inconveniência das abordagens levou alguns condôminos a formalizarem reclamações perante o síndico, pedindo uma providência — não a cachaça, à qual o síndico era bastante chegado, mas a solução da situação.

Para cumprir a parte que lhe cabia, o alcaide condominial se dirigiu, com solenidade e obstinado a resolver a demanda, ao irmão e ao amigo do Sr. Espantalho. Os coabitantes ouviram as queixas, concordaram que isso requeria uma atitude firme e em seguida ameaçaram o pobre homem de interná-lo num hospício.

E o que fez nossa personagem principal diante dessa nova circunstância?

Astuto, riu às escâncaras e confidenciou-lhes que os esquerdistas negacionistas das ciências naturais haviam se enfileirado em campanha inglória para o fechamento dos sanatórios, e conseguiram o intento, colocando os loucos nas ruas para ajudar a causar o caos social, já que o lumpemproletariado passara a ser entendido como substituto da classe operária na função revolucionária.

Mas não podemos dizer que a reprimenda não surtiu efeito, pois as abordagens aos moradores do condomínio diminuíram.

A vida avançava mansa, mas inflexível, até que, num determinado dia ensolarado, o Sr. Espantalho adoeceu; e naquele momento não reunia forças sequer para tomar um táxi em direção ao hospital.

Um vizinho entrou em polvorosa ao se deparar com a ambulância da SAMU em frente ao condomínio, e começou a disparar inúmeras mensagens nos grupos de Whatsapp dos blocos para descobrir quem precisava de socorro. A investigação durou tempo considerável — se levarmos em conta a velocidade telemática — porque os três moradores do apartamento 505 do Bloco C eram avessos ao uso de smartphones e, por conta disso, não participavam de redes sociais.

Após a revelação, de repente, descobriu-se que a resistência ao Sr. Espantalho não era absoluta; ele era capaz de suscitar a piedade alheia. Até os condôminos mais empedernidos viraram a chave e passaram a sofrer com o doente — somatização geral. Elogios foram tecidos e pulularam desejos de pronta recuperação, além de promessas de orações e de terços em sua intenção. Chegaram a dizer que não esperavam a hora de poderem fazer uma visita para celebrar a melhora do querido vizinho e prestar-lhe solidariedade levando uma canjinha, uma rosca seca, um bolo fresquinho...

Ele jamais voltou para casa.

Três semanas depois, o Espantalho do Condomínio foi enterrado no cemitério Jardim da Saudade. Estavam presentes: o irmão, o amigo coabitante e dois mendigos, companheiros de longa data com quem ele costumava passar horas por dia conversando sobre temas variados, na esquina da Rua da Hipocrisia com a Rua da Falsidade.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista


terça-feira, 29 de junho de 2021

Uma rede de fezes

 

Fezinha, hipocorístico de Saquinho de Fezes, como era conhecido, tinha uma estranha mania de ter fé na vida.  NÃO! Sujeito peculiar, costumava intrometer-se em qualquer assunto discutido ao seu redor. Tomava a palavra mesmo sem lhe ser concedida e dava um show, prestando esclarecimentos definitivos, formulando conceitos científicos, inclusive , atacando teorias e desqualificando posições contrárias às suas. Enfim, brindava com sua opinião de especialista aos que quisessem ouvi-lo (ou não).

Por ser um homem do mundo, fazia questão de dividir sua sabedoria com todos, e não apenas com o seleto grupo que privava de maior intimidade. Com efeito, bastava uma rodinha formada e lá vinha ele, pisando manso, olhando para os lados, balançando a cabeça e dando sorrisos e tchauzinhos para o vazio, tal qual políticos e celebridades impopulares.

E chegava chegando...

Estávamos entre o fim da década de oitenta e o início da década de noventa do século passado; e informação não era algo encontrado com a facilidade de hoje. Não havia internet, smartphones, buscadores ou redes sociais, ferramentas que permitiriam desmenti-lo imediatamente. Pode-se dizer, com isso, que a parca tecnologia, ao fim e ao cabo, advogava em seu favor.

Após chegar ao grupo e fingir, por um minutinho, inteirar-se da conversa que já estava ouvindo há tempos PIMBA! , passava a expor aos interlocutores sua (pseudo)autoridade sobre temas (por ele) desconhecidos. Um papai sabe-tudo que espalhava a roda, gerando o anticlímax em conversas até então empolgadas, entabuladas por jovens não dinâmicos que muitas vezes puxavam um assunto apenas para contar uma anedota. Alguns iam embora, porque as explicações do maluco tomavam um tempão e gastavam a onda que a bebida dava nos amantes de Baco. E é importante salientar que as conversas, invariavelmente, ocorriam num trailer badalado à época. (Hoje é mais chique falar foodtruck.)

Como eu ia dizendo, lá vinha ele. Sobre a criminalidade, dizia: Acho que as leis do Direito Penal poderiam... ; sobre a qualidade da educação: Veja bem, as universidades formam... ; sobre o transporte público: Quer saber de quem é a culpa?  NÃO! É do olho gordo dos empresários, que...; sobre instrumentos musicais: O captador da Giannini Stratosonic é muito melhor que o da Golden Les Paul. Já as cravelhas...; sobre a existência de OVNIs: Perdi as esperanças de que os Estados Unidos liberem os extraterrestres capturados naquela nave espacial que caiu na Área 51. Fiquei sabendo, de fonte segura, que...; sobre a Autolatina: De cara, eu digo que a VolksWagen saiu perdendo, mas prefiro falar detalhadamente das diferenças dos motores do Apollo, do Verona, do Versailles, do Logus e do Pointer...

Na vida, porém, há limites que devem ser impostos; e como não poderia trair meu sangue latino, aos poucos fui ficando incomodado com aquelas interrupções non sense. Certo dia, depois de tomar umas geladas, alguém falou do cientista todo tortinho, que era fera na Física sim, não sabíamos seu nome de cor.

Ainda a certa distância daquela roda de conversa, Fezinha veio falando alto e já se adiantando: Veja só, esse cara é um...

Foi a gota dágua para que eu, um jovem meio inconsequente, e por vezes mal educado, disparasse em tom zombeteiro: — “Veja só é o cacete! Você vai falar que entende de Física Quântica? Vai se ferrar!

Em meio à gargalhada geral, ele murchou; e aproveitando o gancho, a galera perdeu os pudores e pegou no pé dele, colocando para fora o que há anos incomodava. Muitos ansiavam que alguém tomasse coragem e fizesse isso. E fui eu, que, de minha parte, confesso que cheguei a achar que tinha exagerado.

Os fatos, como foi dito, ocorreram há cerca de trinta e três anos, mas trata de algo extremamente atual, nesse mundo de ai, meu Deus!

Confira a timeline das suas contas nas redes sociais e veja se não encontra alguns Fezinhas por lá. São pessoas sem o mínimo conhecimento que invadem postagens alheias para emitir opiniões não solicitadas em temas variados. Para piorar, porque sempre é possível, há os que deturpam o conteúdo da mensagem por pura incapacidade de interpretar textos. (Antes, uma dica: certifique-se de que não é você quem age assim.)

Da minha parte, joinha mental para quem faz da sua conta um meu querido diário e a recheia de opiniões sobre os mais variados temas. Não ligo, não comento, não ofendo. Mas, por que Oh, Pai! Por quê? a ignorância ou a necessidade de se expressar impulsionam certas pessoas a opinarem nas postagens de outras que mal conhecem, para ofendê-las ou as criticar? E o fazem com gosto, todos os dias, todas as noites, todas as horas, todos os segundos, todas as madrugadas, momentos e manhãs...

Fezinha não era má pessoa, e por isso demorei tanto tempo para reagir. No fim, tudo ficou bem, ele não ficou bravo comigo, mas valeu a lição, pois o ritmo dessas intervenções diminuiu.

Na ocasião, havia o contato pessoal, presencial, que suscitava a ponderação sobre a indelicadeza de sacanear alguém na lata, mas hoje é diferente. Esse comportamento peculiar foi socializado e as redes sociais multiplicaram a quantidade de pessoas como o saudoso Fezinha; são polímatas da internet que não se constrangem ao dar pitacos sobre temas variados. Antes fossem como unicórnios, difíceis de encontrar.

Além disso, a realidade mudou, e agora é fácil rebater com autoridade, e de forma instantânea, as asneiras com que nos molestam. Mas há sempre um desgaste e a perda de tempo.

Eu, da minha parte, encaro esse mal pós-moderno da seguinte maneira: se alguém escreve tolices, despeja frustrações ou apresenta suas idiossincrasias em meus posts, não espero para constatar se é buona gente. Bloqueio sem culpa, para não ser grosseiro como fui um dia e evitar a fadiga. Depois, não comento com terceiros nem começo discussões a respeito do episódio em novas postagens. Estou envelhecendo, ando com pouca paciência e, além do dever de prudência — que deve ser observada principalmente nessa fase da vida em que tendemos a exercitar sem filtros a qualidade da franqueza —, sinto medo das transformações por que passa a nossa sociedade.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, pós-graduado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Teoria do Especialista

 

Terminado o ajantarado de domingo, era hora da digestão.

— Venha! Vamos à varanda tomar café; temos algo sério a palrear — disse Arnuvô Antunes.

— A coisa é grave? Fala de semblante sisudo, pai; seu tom insinua que eu aprontei algo que nem de longe passa por minha cabeça.

Para acalmar a cria, respondeu docemente:

— Nada disso, filho; a questão é bem outra, pois.

Olhava orgulhoso para aquele que, dia desses, precisamente há dezoito anos, havia nascido - um bebezinho com cara de joelho - para, em seguida, tornar-se um pinga-fogo. Não imaginou que chegaria tão rapidamente à idade de abandonar as asas protetoras dos pais para encarar o mundo adulto.

— Sente-se! Vamos encerrar o mistério — disse ao puxar o assento.

Era tempo de conquistar a vaga na faculdade e hora da conversa aguardada ansiosamente há anos: um bota-fora da juventude de Marx Simplício Antunes — Simplinho, na intimidade —, no qual seria exposta a melhor forma de o rapaz evitar as dificuldades que o pai havia enfrentado. Pretendia concatenar as ideias discutidas nos últimos anos com o filho, sobre política, poder, dinheiro, futuro, formação acadêmica e profissional.

— Deixe-me recontar minha história com detalhes para uma reflexão sobre as exigências de uma trajetória vencedora, sem percalços nem sustos.

Corpulento e com cabeça pequena, o que causava incômoda desarmonia, Arnuvô possuía dedos gordos feito salsichas, barba rala e grisalha, era suarento e os pés chatos exigiam sapatos especiais. A voz era grave, e falava manso até nos momentos de tensão. Casou cedo com Cátia Mascarenhas, a Tita, mas, como ambos priorizaram o sucesso profissional, ele já não era moço quando o filho nasceu. Aposentara-se como magistrado numa das maiores Cortes de Justiça do país, no Distrito Federal, depois de iniciar a carreira no Tribunal de Justiça, cuja vaga abiscoitou através do quinto constitucional - introduzido no Governo Provisório de Getúlio Vargas, na Constituição de 1934 -, pelo prestígio alcançado no posto de Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Espírito Santo, que comandou por oito anos.

Seu pai, seu Joaquim, um comerciante descendente de portugueses, alcançou cedo a calvície; possuía traços árabes, rosto largo, bochechas grandes, e apresentava grandes tufos de pêlos nas narinas e nas orelhas. Era um daqueles homens que os norte-americanos chamam “self made man”. Na infância, vendeu cocadas, balas, mariolas e frutas; na juventude, deu expediente numa fábrica de tecidos até que, após juntar dinheiro com muito sacrifício, iniciou o pequeno armarinho no Parque Moscoso, Centro da capital. A empresa prosperou e Joaquim casou com Genara, uma italianona gorducha, fogosa, embora religiosa, que se vestia com recato e possuía mãos fortes, belas ancas e cabelos e olhos negros como azeviche. Com ela teve nove filhos, e não se soube de nenhum bastardo.

— Mamãe ajudou no que pôde; poupou cada centavo enquanto dava conta da educação dos filhos, cultivava uma baita horta e cuidava do galinheiro e do chiqueiro construídos no quintal da chácara. Os bichos, por sinal, alimentavam a família e ainda rendiam uns bons cobres, vendidos vivos ou abatidos.

Arnuvô foi o oitavo a nascer; por sorte, no período das vacas gordas, em que pôde gozar de regalias, pois Joaquim pôs os mais velhos no trabalho pesado para expandir os negócios, mas apiedou-se dos mais novos e exigiu deles apenas um curto período de plantão na loja, para tomarem gosto pelo trabalho. A essa altura, o espaço físico da empresa dobrara e outra loja havia sido inaugurada, funcionando no térreo de um sobrado da mesma rua, adquirido pelo patriarca, e onde os filhos iam viver amontoados à medida que casavam. No novo negócio, oferecia serviços de alfaiataria, venda de calçados e aluguel de roupas finas — esse último não sendo levado adiante, por ser algo para além do seu tempo. Graças à parcimônia de Joaquim, quando a expansão das cidades promoveu a fuga dos centros das capitais, e ocorreu a obsolescência daquela prática comercial, provocando o consequente fechamento das lojas, os filhos se encontravam bem remediados, embora nenhum deles tenha enriquecido, à exceção de Arnuvô.

Ademais, o velho tinha por princípio não cobrar nem dever favores, e por isso jamais lhe passou pela cabeça incomodar clientes e amigos influentes para solicitar uma sinecura onde encostar os rebentos.

— Sabe, filho — continuou —, fiz minha parte; não queria ser acomodado como seus tios, que não passaram de comerciantes medianos.

Arnuvô investiu muito na profissão, mas também soube usar, à revelia do pai, a consideração e o respeito que o velho gozava em meio à nata da sociedade. Pavimentou a carreira após advogar em regime austero na maior banca capixaba e, depois de experiente, levou os melhores clientes do antigo patrão e muitos dos empresários amigos de Joaquim para o escritório que abriu com um influente colega de faculdade.

— Eu consegui montar a maior banca do estado nos ramos do Direito Tributário e Comercial; e ganhei muito dinheiro.

E então explicou como alinhavou contatos nos meios jurídico, político e empresarial. Ele sabia a quem recorrer; e conhecia prepostos que recebiam dinheiro em nome das autoridades de cada ente público. Praticava tráfico de influência abertamente, patrocinava festas de servidores públicos, distribuía brindes no final do ano, ingressos de espetáculos concorridos e até viagens com hospedagem para locais paradisíacos, mas não tinha poder institucional; e precisava do poder para a roda girar ao seu derredor, pois os ventos poderiam mudar numa mudança política desastrosa.

Por isso passou a buscá-lo.

Entrou na Maçonaria e mexeu pauzinhos para assumir uma comissão da Ordem, instituição que usou para patrocinar ações do interesse de determinadas pessoas e grupos de influência. As coisas aconteceram: ganhou títulos honoríficos e acadêmicos, além de novos clientes, prestígio e muito mais respeito. Por fim, deixou de pagar pelos favores recebidos.

Em meio às elucubrações, dona Tita trouxe um bule de café recém passado, xícaras, açúcar, adoçante e o famoso bolo de Santa Maria, receita de gerações de sua família. Tinha nove anos a menos que o marido, seus cabelos eram castanhos, mantidos em volume para esconder as orelhas de abano; a boca miúda, os olhos ranços, com cílios enormes, e as sobrancelhas finas. Vaidosa, magrinha e arisca, amava maquiagem e jóias.

O marido regalou-lhe um sorriso manso e continuou com o filho:

— Quando fui empossado como Desembargador, deixei o escritório nas mãos do Fausto Miranda e mudei de categoria.

Agora as pessoas o procuravam, dispostas a entregar malas de dinheiro em troca de conselhos, como costumava dizer; e ele, para não sujar as mãos, indicava o antigo escritório: — A banca certa para patrocinar a causa —, dizia entre piscadelas aos jurisdicionados aflitos. E a mesada chegava limpinha, gorda; Miranda jamais fora infiel.

Arnuvô se mexeu na confortável cadeira e serviu uma xícara do café colhido, torrado e moído em sua fazenda.

— Eu empreguei sua mãe e alguns parentes de pessoas influentes em bons cargos em comissão, que foram mantidos nos sucessivos Governos — ninguém era demitido, ainda que mudassem gestores e ideologias; e fiz o mesmo em relação a admissões em cursos de pós-graduação das universidades públicas. 

Dessa vez pegou um naco de bolo, enfiou-o todo na boca e, após o engolir, perguntou ao filho, que estava aparentemente distraído:

— Agora, diga-me, o que você tem em mente?

O rapaz deu uma estremecida, arregalou os olhos e respondeu:

— Eu pretendo me formar em Direito e seguir a sua carreira. Seria muito justo, certo? O Fausto ofereceu uma vaga de Advogado Sênior e se dispôs a voltar ao nome inicial: Antunes & Miranda. Eu ainda poderia me dedicar ao lobby, frequentar mestrado sanduíche na Argentina, doutorado e pós-doutorado em Coimbra e Salamanca; assinar pareceres, conseguir vaga de professor na Federal e esperar o tempo passar até tomar posse num Tribunal qualquer pelo quinto. Esqueci alguma coisa?

Arnuvô intercedeu, descendo repetidamente as mãos espalmadas para baixo, como a indicar uma frenagem; e, apesar de mostrar inquietação, concordou que o serviço público no Brasil é promissor, pois o trabalho do intelectual orgânico é valorizado, mas advertiu que não foram apenas os gordos salários de magistrado que proporcionaram aquela vida abastada.

— Foi difícil amealhar um vultoso patrimônio; precisei correr riscos. — falou em tom pesaroso, confessando que a considerável soma depositada nas contas dele, da mulher e do filho, no país e no exterior, era fruto de arranjos nada republicanos; e aproveitou para alertar Simplinho sobre ser essencial que não esbanjasse com deleites juvenis.

— É bom manter as reservas, o futuro a Deus pertence.

— Não sou dado a gastanças, fique em paz! — disse ao orgulhoso pai.

— Acumule mais e providencie que só exista a mão de entrada, e nunca a de saída, em seu bolso. — advertiu o velho.

Arnuvô advogava que a solução para uma carreira promissora era a diversificação, o que lhe faltou por não ter sido bem instruído: angariar prestígio para estar na grande mídia e nos círculos da intelectualidade oficial. Assim, poderia alcançar o estrelato, dar entrevistas, palestrar e publicar livros, inclusive de áreas alheias a sua formação — multidisciplinariedade era a pedra filosofal —, pois os queridinhos do establishment podem abordar qualquer assunto, sem a menor ideia do que se trata, que ainda assim o público consome.

— E qual seria o caminho? — perguntou.

O filho balbuciou algo, mas Arnuvô, não querendo ser interrompido, adiantou-se e respondeu a pergunta retórica:

— Você tem que ser um especialista. Especialistas conquistam respeito fácil e são muito requisitados; estão sempre em evidência, são celebridades recebem convites para participar de audiências públicas, programas de rádio, TV e internet. São muito bem pagos para dar pitacos aqui e ali sobre todos os assuntos e quaisquer acontecimentos.

— Especialista! Nunca havia pensado nisso como profissão.

Um dos três gatos da casa passou ronronando e se arrastando na perna cabeluda de Arnuvô, que não suportava os felinos, mas admitia-os em casa em respeito a Tita.

Ele puxou a perna, fez um muxoxo e explicou:

— Requer mais titulação que capacidade. Por esse motivo, é importante não fazer apenas uma, mas duas faculdades — e simultaneamente —, como Direito e Ciências Políticas, para poupar tempo.

Disse que uma singularidade desses tempos é que as faculdades não exigem nada além da presença do aluno; a baixa cultura e o analfabetismo funcional andavam tão em voga que, para obter sucesso, bastaria ao aluno assumir os conceitos e as narrativas vigentes, mascarando uma postura crítica, que o diploma chegaria em mãos. Ademais, em qualquer faculdade de Humanas estudam-se, basicamente, os mesmos autores, como Karl Marx, Karl Popper, Herbert Marcuse, Michel Foucault e Zigmunt Bauman. Então, o tempo e o esforço dedicado a uma seria aproveitado na outra. E, para melhorar, o professor moderno salva qualquer aluno, inclusive o que se esforça para tirar nota baixa, mandando-o fazer uma tarefa em casa, trabalho que poderá ser encomendado até mesmo no rapaz que vende salgados na cantina da faculdade.

— Você não vai precisar dedicar muitas horas ao estudo. Poupe tempo, capacite-se nas orelhas dos livros de escritores mainstream. Dos clássicos da literatura universal, colha um ou dois capítulos e leia resenhas disponíveis na internet.

Pegou mais um pouco do café, que já começava a esfriar, e falou da importância de perambular com papéis e livros nas mãos, para afetar erudição.

— A aparência é tudo! — falou firmemente.

E falou também que o filho deveria adotar, ainda durante a formação, um tom professoral ao se dirigir aos colegas e aos demais interlocutores, pois isso impressiona e pode render frutos.

Ao tratar de temas que não dominasse, deveria falar de forma assertiva; e não se sentir constrangido ao se contradizer no curso da exposição de ideias, pois os ouvintes nunca percebem. E se perceberem, dificilmente terão coragem de o admoestar. Além disso, não seria demasiado apresentar soluções teóricas para temas sensíveis, sem se preocupar em provar a viabilidade de sua execução, pois é mais importante ter uma opinião que ter conteúdo; e opinião sobre tudo...

— Você deve conhecer as notícias dos grandes jornais e os temas discutidos pelos medalhões. Seus posicionamentos devem se conformar ao discurso corrente, mas afirme que são pessoais e que algumas figuras conhecidas concordam com você, embora a abordagem deles seja confusa.

Arnuvô estava empolgado...

— Use a palavra ciência aqui e ali, para dar sustança as suas teorias. A palavra ciência impressiona, e é repetida por onze em cada dez idiotas. Qualquer teoria abstrata se torna realidade para um público ignorante quando, ao final, há a afirmação de que aquilo é ciência.

— É verdade, pai. Qualquer político semiletrado fala em ciência, inclusive usando o termo fora do contexto.

 — Sim... São os que falam do que não sabem, como eu disse. Outra coisa: nunca deixe de participar de debates com intelectuais prestigiados pelo grande público; e jamais seja-lhes hostil.

Agora Arnuvô suava, e de tanto que suava, tinha a respiração dificultada; e a voz saía rouca:

— Frequentando o círculo correto, você será chamado para dar palestras em empresas e instituições públicas e privadas; viajará por conta dos anfitriões, receberá gordos cachês; nessas viagens patrocinadas poderá se encontrar no estrangeiro com quem queira lhe pagar propinas; venderá os livros que escrever pela propaganda gratuita dos fóruns em que participa e dos puxa-sacos. E para ter uma produção bibliográfica volumosa, basta adequar a escrita de obras estrangeiras ao vernáculo, com uma ou outra citação em língua estrangeira, ou tratar de assuntos de forma rasa com pompa de alta cultura. Se o tema estiver em voga, escreva um livro de poucas páginas e peça ao editor para fazer parecer mais volumoso. Não se preocupe, serão best sellers.

Dessa vez, o gato caolho, o mais detestado, deu o ar da graça e levou uma bicuda de Arnuvô. Novo pedaço de bolo enfiado inteiro na boca, seguido de um glup-glup no café morno. Tornou ao bate-papo:

—Sei que não será difícil para você, sua educação foi planejada para forjar uma trajetória vencedora. Não atenda às más influências, despreze os resquícios da ascensão do fascismo e do populismo de extrema-direita que assolaram o mundo e o país em tempos recentes.

E pela enésima vez falou da odisseia que tinha sido a escolha da escola em que fariam sua matrícula. Ele e dona Tita olharam com lupa as instituições burguesas disponíveis e, ao se depararem com as mais conceituadas, concluíram que a primeira era mais famosa que eficiente; a outra, religiosa (Deus nos livre!); uma terceira, formava excelentes profissionais de exatas, o que não os apetecia. Ao final, optaram pela que ele cursou o ensino fundamental e o médio, a única voltada para moldar líderes.

— Essa percepção é ouro puro, poucos pais se dão conta disso. Eu e sua mãe fomos muito perspicazes — falou enquanto comemorava com um soco no ar.

Aconselhou Simplinho a, em seu tempo, fazer o mesmo pelos filhos, os seus netos; e lembrou da importância de tomar as rédeas da educação das crianças, impedindo que levassem a vida que ele, Simplinho, forçosamente pregaria da boca para fora, como liberação de drogas, lesbianismo, gayzismo, racismo, ecologismo, misticismo... Isso era para as famílias alheias; sua preocupação seria garantir o equilíbrio entre os extremos.

— A sua família, construa e mantenha no formato tradicional. É impossível manter a harmonia no caos. Perante a sociedade, combata o reacionarismo e o conservadorismo, pregue o dever de não abrir concessões aos limites castradores impostos por nossa civilização ocidental. Porém, jamais os renegue em sua vida privada. Viva-os, filho! Sequer questione.

Na sequência, serviu-se de mais café e quase cuspiu, pois já estava intragável. Puxou um lenço de linho bordado com suas iniciais e passou no rosto e na boca; e só agora pôde observar que o vento parara de soprar e o calor tomava conta do ambiente.

Arnuvô fitou o infinito como a buscar mais argumentos e prosseguiu, afirmando que o segredo do sucesso era usar a linguagem jovial dos influenciadores digitais, dos artistas ou de outros profissionais que arregimentavam jovens e adolescentes.

— Comunique-se como aquele paspalho que imita foca; — falou — seja o cara legal que os jovens amam e os velhos infantilizados que abundam em nossa sociedade admiram. São pessoas totalmente desprovidas de conteúdo e facilmente manipuláveis; telas brancas em que podemos reproduzir aquilo o que quisermos, tanto no corpo quanto na mente.

Não, cioso leitor, a essa altura não perdemos o exemplar pater familias para o mundo delirante dos confusos mentais; ele apenas sugeriu de forma mais incisiva o tipo de comportamento que leva ao sucesso.

Ele voltou à carga afirmando que seria útil fazer e estreitar amizade com jornalistas e blogueiros para, através deles, ocupar espaços na mídia, replicar seus artigos e promover seu trabalho.

Também era apropriado apoiar instituições civis voltadas para as causas progressistas. Mais importante, ainda, seria criar sua própria ONG para receber dinheiro grosso de milionários e de fundações globalistas. Por fim, e em suma, sua meta de vida deveria ser alcançar o status de influenciador editor da sociedade; ser considerado em seu métier — não precisava sê-lo efetivamente — como filósofo, jurista, humanista, cientista político e escritor. O que é um baita pedigree.

— Você não vai precisar possuir o poder diretamente; com o poder, o dinheiro chega, chega grosso, mas também chega vigiado pela oposição e por inimigos. Empenhe-se em influenciar um número considerável de pessoas poderosas, seja generoso com eles e eles abrirão muitas portas. — e enquanto lamentava que no seu tempo as instituições eram muito imbricadas, arrematou: — Quer mais poder que isso?

— Pai, será que consigo realizar essa façanha? Nessa minha curta vida, eu segui seus conselhos preliminares, fiz amizades importantes e frequentei gente bem nascida, mas, olhando o que foi falado aqui, resta sopesar o quão difícil é ser especialista.

— Você consegue. Seja modesto ao se aprofundar no campo da intelectualidade, saber demais encurta os horizontes. Defenda ideias de forma conveniente ao pensamento dominante, e aperfeiçoe-se no manejo das palavras. Sinalize virtudes em qualquer tempo e lugar, evite conflitos e comunique-se de forma simples com os que possuem poder e dinheiro. Por fim, use linguajar difícil para impressionar tolos e intelectuais. Esse é o caminho. Agora vamos assistir ao jogo da seleção; e chega de café, — Argh! — precisamos dormir cedo.

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista