terça-feira, 29 de junho de 2021

Uma rede de fezes

 

Fezinha, hipocorístico de Saquinho de Fezes, como era conhecido, tinha uma estranha mania de ter fé na vida.  NÃO! Sujeito peculiar, costumava intrometer-se em qualquer assunto discutido ao seu redor. Tomava a palavra mesmo sem lhe ser concedida e dava um show, prestando esclarecimentos definitivos, formulando conceitos científicos, inclusive , atacando teorias e desqualificando posições contrárias às suas. Enfim, brindava com sua opinião de especialista aos que quisessem ouvi-lo (ou não).

Por ser um homem do mundo, fazia questão de dividir sua sabedoria com todos, e não apenas com o seleto grupo que privava de maior intimidade. Com efeito, bastava uma rodinha formada e lá vinha ele, pisando manso, olhando para os lados, balançando a cabeça e dando sorrisos e tchauzinhos para o vazio, tal qual políticos e celebridades impopulares.

E chegava chegando...

Estávamos entre o fim da década de oitenta e o início da década de noventa do século passado; e informação não era algo encontrado com a facilidade de hoje. Não havia internet, smartphones, buscadores ou redes sociais, ferramentas que permitiriam desmenti-lo imediatamente. Pode-se dizer, com isso, que a parca tecnologia, ao fim e ao cabo, advogava em seu favor.

Após chegar ao grupo e fingir, por um minutinho, inteirar-se da conversa que já estava ouvindo há tempos PIMBA! , passava a expor aos interlocutores sua (pseudo)autoridade sobre temas (por ele) desconhecidos. Um papai sabe-tudo que espalhava a roda, gerando o anticlímax em conversas até então empolgadas, entabuladas por jovens não dinâmicos que muitas vezes puxavam um assunto apenas para contar uma anedota. Alguns iam embora, porque as explicações do maluco tomavam um tempão e gastavam a onda que a bebida dava nos amantes de Baco. E é importante salientar que as conversas, invariavelmente, ocorriam num trailer badalado à época. (Hoje é mais chique falar foodtruck.)

Como eu ia dizendo, lá vinha ele. Sobre a criminalidade, dizia: Acho que as leis do Direito Penal poderiam... ; sobre a qualidade da educação: Veja bem, as universidades formam... ; sobre o transporte público: Quer saber de quem é a culpa?  NÃO! É do olho gordo dos empresários, que...; sobre instrumentos musicais: O captador da Giannini Stratosonic é muito melhor que o da Golden Les Paul. Já as cravelhas...; sobre a existência de OVNIs: Perdi as esperanças de que os Estados Unidos liberem os extraterrestres capturados naquela nave espacial que caiu na Área 51. Fiquei sabendo, de fonte segura, que...; sobre a Autolatina: De cara, eu digo que a VolksWagen saiu perdendo, mas prefiro falar detalhadamente das diferenças dos motores do Apollo, do Verona, do Versailles, do Logus e do Pointer...

Na vida, porém, há limites que devem ser impostos; e como não poderia trair meu sangue latino, aos poucos fui ficando incomodado com aquelas interrupções non sense. Certo dia, depois de tomar umas geladas, alguém falou do cientista todo tortinho, que era fera na Física sim, não sabíamos seu nome de cor.

Ainda a certa distância daquela roda de conversa, Fezinha veio falando alto e já se adiantando: Veja só, esse cara é um...

Foi a gota dágua para que eu, um jovem meio inconsequente, e por vezes mal educado, disparasse em tom zombeteiro: — “Veja só é o cacete! Você vai falar que entende de Física Quântica? Vai se ferrar!

Em meio à gargalhada geral, ele murchou; e aproveitando o gancho, a galera perdeu os pudores e pegou no pé dele, colocando para fora o que há anos incomodava. Muitos ansiavam que alguém tomasse coragem e fizesse isso. E fui eu, que, de minha parte, confesso que cheguei a achar que tinha exagerado.

Os fatos, como foi dito, ocorreram há cerca de trinta e três anos, mas trata de algo extremamente atual, nesse mundo de ai, meu Deus!

Confira a timeline das suas contas nas redes sociais e veja se não encontra alguns Fezinhas por lá. São pessoas sem o mínimo conhecimento que invadem postagens alheias para emitir opiniões não solicitadas em temas variados. Para piorar, porque sempre é possível, há os que deturpam o conteúdo da mensagem por pura incapacidade de interpretar textos. (Antes, uma dica: certifique-se de que não é você quem age assim.)

Da minha parte, joinha mental para quem faz da sua conta um meu querido diário e a recheia de opiniões sobre os mais variados temas. Não ligo, não comento, não ofendo. Mas, por que Oh, Pai! Por quê? a ignorância ou a necessidade de se expressar impulsionam certas pessoas a opinarem nas postagens de outras que mal conhecem, para ofendê-las ou as criticar? E o fazem com gosto, todos os dias, todas as noites, todas as horas, todos os segundos, todas as madrugadas, momentos e manhãs...

Fezinha não era má pessoa, e por isso demorei tanto tempo para reagir. No fim, tudo ficou bem, ele não ficou bravo comigo, mas valeu a lição, pois o ritmo dessas intervenções diminuiu.

Na ocasião, havia o contato pessoal, presencial, que suscitava a ponderação sobre a indelicadeza de sacanear alguém na lata, mas hoje é diferente. Esse comportamento peculiar foi socializado e as redes sociais multiplicaram a quantidade de pessoas como o saudoso Fezinha; são polímatas da internet que não se constrangem ao dar pitacos sobre temas variados. Antes fossem como unicórnios, difíceis de encontrar.

Além disso, a realidade mudou, e agora é fácil rebater com autoridade, e de forma instantânea, as asneiras com que nos molestam. Mas há sempre um desgaste e a perda de tempo.

Eu, da minha parte, encaro esse mal pós-moderno da seguinte maneira: se alguém escreve tolices, despeja frustrações ou apresenta suas idiossincrasias em meus posts, não espero para constatar se é buona gente. Bloqueio sem culpa, para não ser grosseiro como fui um dia e evitar a fadiga. Depois, não comento com terceiros nem começo discussões a respeito do episódio em novas postagens. Estou envelhecendo, ando com pouca paciência e, além do dever de prudência — que deve ser observada principalmente nessa fase da vida em que tendemos a exercitar sem filtros a qualidade da franqueza —, sinto medo das transformações por que passa a nossa sociedade.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, pós-graduado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

Um comentário:

  1. Sensacional, acho que sei quem era o "pseudo sabe-tudo". Bons tempos, realmente hoje em dia a falta desse convívio presencial mudou comportamentos, mas alguns nunca mudam.

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