sexta-feira, 2 de julho de 2021

O Espantalho do Condomínio

 

Robervaldo Georgian de Bragança já entrara na melhor idade. Contava com sessenta e oito anos, mas sua aparência era de oitenta e cinco. A família Bragança, da parte do pai, que se desconfiava ser da linhagem dos Imperadores, havia desembarcado no Novo Mundo, vinda de Portugal, à época da Colônia — ou extensão territorial do Reino na América, como queiram os adeptos das diferentes perspectivas históricas —, e fizera fortuna nos ciclos econômicos, inclusive explorando o comércio escravagista. A fortuna, porém, havia se dissipado nos tempos de seu avô, não chegando um mísero cobre até ele. Pelo lado da mãe veio a veia armênia, e a junção das raças lhe conferia uma carranca que causava agonia nos mais sensíveis.

Tinha olhos grandes e negros, boca larga, com pêlos à mostra nas orelhas de elefante e no nariz, provável herança dos avanços muçulmanos Península Ibérica adentro. Era conhecido por Espantalho do Condomínio porque não cortava os cabelos encarapinhados, que cresciam arrepiados como os cultivados pelos cantores sertanejos dos anos oitenta do século XX, mas armados, por sua consistência. Para perplexidade geral, porém, usava barba bem escanhoada.

O apartamento em que morava, ele ganhou num sorteio feito entre os operários que participaram das obras que levantaram os prédios do condomínio, generosidade do rico empreiteiro que patrocinou todas as etapas da construção, desde o projeto à entrega.

Perambulava pelas ruas da cidade o dia inteiro, com velocidade impressionante, portando um cajado — em verdade, um varão de pendurar cortinas encontrado numa das caçambas de lixo que tinha por costume revirar. Ele era desses, apesar de aparentemente não precisar, dada a vida espartana que levava, sem filhos ou até passarinho para dar alpiste; e o grosso dos gastos do apartamento era arcado por seu irmão e um amigo, que moravam com ele sem pagar aluguel. Aparentemente, possuía saúde de ferro e por isso não consumia a aposentadoria, que não era das piores, com os remédios que normalmente funcionam como ralos por onde escoa o dinheiro de velhinhas e de velhinhos aposentados e pensionistas.

Possuía uma boa cultura e esbanjava conhecimento devido à constante leitura de clássicos, mas também se rendia a toda sorte de “teorias da conspiração” — segundo a linguagem popular —, fossem provenientes de histórias verdadeiras ou realmente falaciosas. Como é sabido, conspiradores, tiranos, psicopatas e mentirosos chamam teoria da conspiração suas maquinações, o que assegura a ignorância do homem médio sobre fatos verídicos que não devem ser repercutidos.

Tinha acesso à literatura produzida por sociedades secretas para fazer propaganda de suas atividades, mas também lia aquele tipo de livro que promete revelar o lado oculto dessas sociedades, sem que o escritor conheça patavinas de seus meandros. Some-se a isso o fato dele ter frequentado algumas reuniões da Rosa-Cruz e da Maçonaria, e o contato mantido com alguns "línguas soltas" que contrariavam as determinações ancestrais dessas ordens. Dessa miscelânea retirava sua suposta autoridade sobre os mais variados temas.

Gostava de política, religião e comportamento humano; e uma simples conversa com ele resultava numa profusão de informações encontradas e desencontradas, com potencial de aturdir o interlocutor. Acreditava-se que o mix de conhecimentos absorvidos o deixara louco. Ele, porém, tentava apenas interagir com pessoas mal informadas, grosseiras, deselegantes, insinceras, consumidoras assíduas de produtos da grande mídia e de best sellers expostos com destaque nas prateleiras das livrarias e nas listas de mais vendidos publicados em colunas especializadas — o tipo de gente cuja cota de leitura é a de um exemplar por ano (ou década), que gosta de falar sobre o que não conhece.

Alguns ainda hoje arriscam dizer que ele era evitado por questões ideológicas, já que era anti-esquerdista. A desculpa oficial, contudo, era a de que o tempo custa caro e deve ser bem administrado para oportunizar o descanso, a alimentação, o trabalho, os deslocamentos e o acesso às redes sociais. A Robervaldo, então, restava disputar o espaço destinado à aquisição de cultura, ou seja, nenhum.

Mas o homem era incansável; seu objetivo de vida era alertar a todos dos perigos das trevas que rondam nosso mundo, e não se dava por vencido. De tanto insistir em abordar os vizinhos, acabou por espantá-los (espantalhos!), o que os fez evitar encontros desviando o caminho, retornando ou dando desculpas como a pressa — essa, grande parte das vezes, uma verdade.

E o que fez o velhaco quando percebeu isso?

Passou a espreitá-los para, no momento oportuno, dar o bote e colocá-los em xeque. Apertava ou atrasava o passo para parear com a vítima, voltava com ela quando estava indo, abordava-a na garagem enquanto manobrava o carro... Chegou ao ponto de se esconder por trás das pilastras e das caçambas de lixo, ocasião em que aproveitava para revolver as sacolas e tirar algo de seu interesse.

A inconveniência das abordagens levou alguns condôminos a formalizarem reclamações perante o síndico, pedindo uma providência — não a cachaça, à qual o síndico era bastante chegado, mas a solução da situação.

Para cumprir a parte que lhe cabia, o alcaide condominial se dirigiu, com solenidade e obstinado a resolver a demanda, ao irmão e ao amigo do Sr. Espantalho. Os coabitantes ouviram as queixas, concordaram que isso requeria uma atitude firme e em seguida ameaçaram o pobre homem de interná-lo num hospício.

E o que fez nossa personagem principal diante dessa nova circunstância?

Astuto, riu às escâncaras e confidenciou-lhes que os esquerdistas negacionistas das ciências naturais haviam se enfileirado em campanha inglória para o fechamento dos sanatórios, e conseguiram o intento, colocando os loucos nas ruas para ajudar a causar o caos social, já que o lumpemproletariado passara a ser entendido como substituto da classe operária na função revolucionária.

Mas não podemos dizer que a reprimenda não surtiu efeito, pois as abordagens aos moradores do condomínio diminuíram.

A vida avançava mansa, mas inflexível, até que, num determinado dia ensolarado, o Sr. Espantalho adoeceu; e naquele momento não reunia forças sequer para tomar um táxi em direção ao hospital.

Um vizinho entrou em polvorosa ao se deparar com a ambulância da SAMU em frente ao condomínio, e começou a disparar inúmeras mensagens nos grupos de Whatsapp dos blocos para descobrir quem precisava de socorro. A investigação durou tempo considerável — se levarmos em conta a velocidade telemática — porque os três moradores do apartamento 505 do Bloco C eram avessos ao uso de smartphones e, por conta disso, não participavam de redes sociais.

Após a revelação, de repente, descobriu-se que a resistência ao Sr. Espantalho não era absoluta; ele era capaz de suscitar a piedade alheia. Até os condôminos mais empedernidos viraram a chave e passaram a sofrer com o doente — somatização geral. Elogios foram tecidos e pulularam desejos de pronta recuperação, além de promessas de orações e de terços em sua intenção. Chegaram a dizer que não esperavam a hora de poderem fazer uma visita para celebrar a melhora do querido vizinho e prestar-lhe solidariedade levando uma canjinha, uma rosca seca, um bolo fresquinho...

Ele jamais voltou para casa.

Três semanas depois, o Espantalho do Condomínio foi enterrado no cemitério Jardim da Saudade. Estavam presentes: o irmão, o amigo coabitante e dois mendigos, companheiros de longa data com quem ele costumava passar horas por dia conversando sobre temas variados, na esquina da Rua da Hipocrisia com a Rua da Falsidade.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista


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