Robervaldo
Georgian de Bragança já entrara na melhor idade. Contava com sessenta e oito anos,
mas sua aparência era de oitenta e cinco. A família Bragança, da parte do pai, que
se desconfiava ser da linhagem dos Imperadores, havia desembarcado no Novo
Mundo, vinda de Portugal, à época da Colônia — ou extensão territorial do Reino
na América, como queiram os adeptos das diferentes perspectivas históricas —, e
fizera fortuna nos ciclos econômicos, inclusive explorando o comércio escravagista.
A fortuna, porém, havia se dissipado nos tempos de seu avô, não chegando um mísero
cobre até ele. Pelo lado da mãe veio a veia armênia, e a junção das raças lhe
conferia uma carranca que causava agonia nos mais sensíveis.
Tinha
olhos grandes e negros, boca larga, com pêlos à mostra nas orelhas de elefante e
no nariz, provável herança dos avanços muçulmanos Península Ibérica adentro.
Era conhecido por Espantalho do Condomínio porque não cortava os cabelos encarapinhados,
que cresciam arrepiados como os cultivados pelos cantores sertanejos dos anos oitenta
do século XX, mas armados, por sua consistência. Para perplexidade geral,
porém, usava barba bem escanhoada.
O
apartamento em que morava, ele ganhou num sorteio feito entre os operários que
participaram das obras que levantaram os prédios do condomínio, generosidade do
rico empreiteiro que patrocinou todas as etapas da construção, desde o projeto
à entrega.
Perambulava
pelas ruas da cidade o dia inteiro, com velocidade impressionante, portando um
cajado — em verdade, um varão de pendurar cortinas encontrado numa das caçambas
de lixo que tinha por costume revirar. Ele era desses, apesar de aparentemente
não precisar, dada a vida espartana que levava, sem filhos ou até passarinho para
dar alpiste; e o grosso dos gastos do apartamento era arcado por seu irmão e um
amigo, que moravam com ele sem pagar aluguel. Aparentemente, possuía saúde de
ferro e por isso não consumia a aposentadoria, que não era das piores, com os
remédios que normalmente funcionam como ralos por onde escoa o dinheiro de velhinhas
e de velhinhos aposentados e pensionistas.
Possuía
uma boa cultura e esbanjava conhecimento devido à constante leitura de
clássicos, mas também se rendia a toda sorte de “teorias da conspiração” — segundo
a linguagem popular —, fossem provenientes de histórias verdadeiras ou realmente
falaciosas. Como é sabido, conspiradores, tiranos, psicopatas e mentirosos chamam teoria da conspiração suas maquinações, o que assegura a ignorância do homem médio sobre fatos
verídicos que não devem ser repercutidos.
Tinha
acesso à literatura produzida por sociedades secretas para fazer propaganda de
suas atividades, mas também lia aquele tipo de livro que promete revelar o lado
oculto dessas sociedades, sem que o escritor conheça patavinas de seus meandros.
Some-se a isso o fato dele ter frequentado algumas reuniões da Rosa-Cruz e da
Maçonaria, e o contato mantido com alguns "línguas soltas" que contrariavam as
determinações ancestrais dessas ordens. Dessa miscelânea retirava sua suposta
autoridade sobre os mais variados temas.
Gostava
de política, religião e comportamento humano; e uma simples conversa com ele resultava
numa profusão de informações encontradas e desencontradas, com potencial de
aturdir o interlocutor. Acreditava-se que o mix de conhecimentos absorvidos o deixara
louco. Ele, porém, tentava apenas interagir com pessoas mal informadas, grosseiras,
deselegantes, insinceras, consumidoras assíduas de produtos da grande mídia e de
best sellers expostos com destaque nas prateleiras das livrarias e nas listas
de mais vendidos publicados em colunas especializadas — o tipo de gente cuja
cota de leitura é a de um exemplar por ano (ou década), que gosta de falar sobre o que não conhece.
Alguns
ainda hoje arriscam dizer que ele era evitado por questões ideológicas, já que era
anti-esquerdista. A desculpa oficial, contudo, era a de que o tempo custa caro
e deve ser bem administrado para oportunizar o descanso, a alimentação, o
trabalho, os deslocamentos e o acesso às redes sociais. A Robervaldo, então,
restava disputar o espaço destinado à aquisição de cultura, ou seja, nenhum.
Mas
o homem era incansável; seu objetivo de vida era alertar a todos dos perigos
das trevas que rondam nosso mundo, e não se dava por vencido. De tanto insistir
em abordar os vizinhos, acabou por espantá-los (espantalhos!), o que os fez evitar
encontros desviando o caminho, retornando ou dando desculpas como a pressa — essa,
grande parte das vezes, uma verdade.
E
o que fez o velhaco quando percebeu isso?
Passou
a espreitá-los para, no momento oportuno, dar o bote e colocá-los em xeque. Apertava
ou atrasava o passo para parear com a vítima, voltava com ela quando estava indo, abordava-a na
garagem enquanto manobrava o carro... Chegou ao ponto de se esconder por trás
das pilastras e das caçambas de lixo, ocasião em que aproveitava para revolver
as sacolas e tirar algo de seu interesse.
A
inconveniência das abordagens levou alguns condôminos a formalizarem
reclamações perante o síndico, pedindo uma providência — não a cachaça, à qual
o síndico era bastante chegado, mas a solução da situação.
Para
cumprir a parte que lhe cabia, o alcaide condominial se dirigiu, com solenidade
e obstinado a resolver a demanda, ao irmão e ao amigo do Sr. Espantalho. Os coabitantes
ouviram as queixas, concordaram que isso requeria uma atitude firme e em
seguida ameaçaram o pobre homem de interná-lo num hospício.
E
o que fez nossa personagem principal diante dessa nova circunstância?
Astuto,
riu às escâncaras e confidenciou-lhes que os esquerdistas negacionistas das
ciências naturais haviam se enfileirado em campanha inglória para o fechamento
dos sanatórios, e conseguiram o intento, colocando os loucos nas ruas para ajudar
a causar o caos social, já que o lumpemproletariado passara a ser entendido como
substituto da classe operária na função revolucionária.
Mas
não podemos dizer que a reprimenda não surtiu efeito, pois as abordagens aos
moradores do condomínio diminuíram.
A
vida avançava mansa, mas inflexível, até que, num determinado dia ensolarado, o
Sr. Espantalho adoeceu; e naquele momento não reunia forças sequer para tomar
um táxi em direção ao hospital.
Um
vizinho entrou em polvorosa ao se deparar com a ambulância da SAMU em frente ao
condomínio, e começou a disparar inúmeras mensagens nos grupos de Whatsapp dos
blocos para descobrir quem precisava de socorro. A investigação durou tempo
considerável — se levarmos em conta a velocidade telemática — porque os três moradores
do apartamento 505 do Bloco C eram avessos ao uso de smartphones e, por conta
disso, não participavam de redes sociais.
Após
a revelação, de repente, descobriu-se que a resistência ao Sr. Espantalho não era
absoluta; ele era capaz de suscitar a piedade alheia. Até os condôminos mais
empedernidos viraram a chave e passaram a sofrer com o doente — somatização geral.
Elogios foram tecidos e pulularam desejos de pronta recuperação, além de promessas
de orações e de terços em sua intenção. Chegaram a dizer que não esperavam a
hora de poderem fazer uma visita para celebrar a melhora do querido vizinho e
prestar-lhe solidariedade levando uma canjinha, uma rosca seca, um bolo fresquinho...
Ele
jamais voltou para casa.
Três
semanas depois, o Espantalho do Condomínio foi enterrado no cemitério Jardim da
Saudade. Estavam presentes: o irmão, o amigo coabitante e dois mendigos, companheiros
de longa data com quem ele costumava passar horas por dia conversando sobre temas
variados, na esquina da Rua da Hipocrisia com a Rua da Falsidade.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista
Nenhum comentário:
Postar um comentário