quinta-feira, 29 de julho de 2021

Influenciadores decadentes



Surge uma nova casta, formada por pessoas iracundas, um chorume criado pelas redes sociais, sob a alcunha de influenciador digital da terceira via. São “profissionais” que já caíram em ostracismo depois de possuírem, em regra, muita relevância por detatacerminado período.

Aparentemente, por incapacidade própria, não souberam lidar com o sucesso e a vaidade; e pior ainda administram o fracasso.

Há muitos desses, mas abaixo serão tratados apenas aqueles que iniciaram seus passos junto ao incipiente movimento conservador no país e aos adeptos do espectro político da direita, resultado da revolta contra a espiral do silêncio em que os conservadores foram envolvidos durante os anos de roubalheira e vergonha protagonizados pela esquerda no poder (cujos frutos amargos colhemos sem previsão de acabar, em razão da ampla infiltração).

Tais personagens, em verdade, ganharam postos e prestígio, mas foram incapazes de se manter no topo, não fidelizando os seguidores que foram conquistados apenas por defenderem as ideias que, sem justificativa plausível (ou quiçá por algum tipo de ameaça ou oferecimento de vantagens desconhecidos), passaram a ofender de uma hora para a outra.

Alguns foram abandonados pelos verdadeiros produtores do conteúdo que apresentavam e tiveram que lidar com a própria deficiência cognitiva para continuar seu trabalho. Como não poderia ser diferente, falharam fragorosamente na abordagem de temas que não dominam. O público mais qualificado percebeu a farsa e se afastou, restando-lhes apenas gritar e xingar os agora desafetos.

Outros, por vaidade ou inveja, aparentemente traíram as convicções que os levaram ao sucesso. Alegando que "pensam com a própria cabeça" (o propriomiolismo), passaram a ofender seus companheiros de viajem, em especial os mais capacitados, pois não se dignam a olhar para baixo, apenas atiram para cima.

Interessante observar que todas essas subcelebridades que ascenderam e decaíram meteoricamente, atraíram para si espécies de peixes-piloto que buscavam ascensão profissional ou financeira; e eles não se opuseram porque é bom para sua imagem manter a panca de influente entre os influentes. Os peixes-piloto, como desde sempre foram personas irrelevantes, seguiram-nos forçosamente ou até mesmo por desconhecerem outro caminho.

Voltando aos influenciadores decadentes, a perda de likes, de joinhas e de comentários babaovísticos forjou pessoas frustradas, que não reagiram bem à irrelevância que já era esperada pelos conscienciosos. Aliadas à imaturidade, essas circunstâncias as levou a protagonizar situações vexaminosas e passíveis de dura repreensão pela baixeza de certas ações que levaram a efeito.

Como diria Fausto Silva, a fauna (desses pseudo-qualquer-coisa) é grande e abarca desde editores de livros a políticos, passando por figuras públicas, analistas políticos, músicos, chargistas, portadores de diplomas de Filosofia, publicitários, notórios trambiqueiros, jornalistas, funkeiros e profissionais das mais variadas áreas.

Espera-se que a birra não os conduza a aderir à escumalha que pretende enterrar o país de vez com o seu projeto de poder.

Todos seremos vítimas, com a exceção dos amigos do rei, mas uma coisa é mais certa que as outras: a revolução devora seus filhos, e normalmente os primeiros a sucumbir são aqueles que cerraram fileiras com os que ocupam o poder, para não se verem tentados a tomarem-no para si.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista


quarta-feira, 21 de julho de 2021

O Vampiro

  

Marcella Policarpa, segunda filha dos Almeida – depois ainda viriam os meninos, Viriato Jr. e Pompeu –, conheceu Augustinho no verão de 1990, num sábado de sol, na praia lotada. A moça, bobinha para os dezoito recém-completados, recheava com pujança a peça do recatado maiô que sua mãe, Lucrécia, católica tradicionalíssima, impunha a ela e à irmã. Morava no mesmo bairro da praia e tinha saído com as amigas de colégio — os pais a haviam deixado ir naquele dia, excepcionalmente, porque não puderam viajar para Araruama no fim de semana, já que dona Anastácia, a avó paterna, havia adoecido e precisava do filho e da nora na capital. Como condição, teve que levar os irmãos mais novos, de onze e seis anos.

Augustinho fumava maconha com sua gangue de desajustados quando, de longe, avistou a delicinha. Feio de doer, disse para si próprio que tentaria faturá-la, sem saber que ela, que até ali só tivera paixões platônicas, estava prontinha pro abate.

Ele alcançou Cella – assim era chamada em família – por intermédio dos irmãos. Após observá-la levando-os à beira do mar e admoestando-os sobre seus perigos, ele se aproximou e começou a fazer estruturas disformes com a areia molhada sobre a areia seca. Olhou para as crianças, disse que estava construindo um castelo e perguntou se não queriam ajudar. Eles concordaram; ela achou o gesto simpático e ficou aliviada ao ver que as crianças ficariam ocupadas com a “construção” e o mar não representaria uma ameaça.

Meia hora depois, ele entregou os meninos, que trazia pelas mãos; ela conversava distraída e nem atinou que o estranho poderia tê-los levado consigo. Mal sabe você, caro leitor, que verdadeiro sequestro ocorreria tempos mais tarde, não da forma descrita na tipificação penal: o bom senso, o ânimo, o sentido de união e até valores de alguns membros da família seriam sequestrados por aquele psicopata.

Ele agradeceu por confiar-lhe os anjinhos. Lamentou devolvê-los, mas precisava ir, pois morava na periferia e estava tarde. Perguntou onde estudava; o que fazia; e se poderia encontrá-la novamente. Ela respondeu que sim, poderiam se encontrar; estava no último ano do Santo Ignácio, no turno da manhã; às terças lanchava no Burgão da Praia, lá pelas três da tarde, e às quintas pegava um cineminha e depois ia tomar sorvete na lanchonete Positano. Completou afirmando que só ia à praia no meio da semana, e com a irmã mais velha, quando ela estava de folga.

O caboclo pensou longe nesse momento. Conheceu menina de família estruturada, respeitosa e respeitável, totalmente diferente das barangas, hippies e drogadas que costumava frequentar; e teve a sensação de que valia o investimento, pois certamente obteria vantagens no futuro. As informações ficaram gravadas na mente daquela figura com memória de elefante, faro de cão e rapinagem de águia; naquele momento ele creu que havia acertado o milhar. Investiria para buscar ajuda moral e financeira por toda a vida. — exatamente o que aconteceu, como será contado adiante.

Encontraram-se algumas vezes e a conquista não foi difícil. Começaram a namorar às escondidas, mas, observando desconfiada as saídas rotineiras, a mãe exigiu que levasse os irmãos ou não sairia mais. Ela levou, e as crianças, que já lhe eram simpáticas, também foram seduzidas pelo Don Juan do subúrbio. Nada contaram à mãe.

Quando Cella levou Augustinho para conhecer os pais, o caminho estava aplainado: a moça, apaixonada; os irmãos menores, cúmplices, fizeram lobby em seu favor; e o sogro foi conquistado de cara. A sogra, vendo o marido entusiasmado e a filha feliz, não ousou se opor, apesar da velha pulga incomodar atrás da orelha.

Augustinho se afastou dos amigos e parou de fumar maconha, mas continuou tomando álcool destilado escondido. O cheiro disfarçava mascando cravo; os olhos vermelhos e esbugalhados, características de quando estava bêbado, passavam despercebidos diante das guardas arriadas; a fala enrolada também não chamava a atenção porque era naturalmente assim.

Não demorou muito, foi marcado o casamento. A notícia das bodas foi comemorada por quase todos, sendo as raras exceções: a mãe, que continuava incomodada sem saber por que; o menino mais velho, Viriatinho, agora com doze, quase treze anos, que sentiu que a irmã mudou para pior desde a chegada do cunhado; o noivo da irmã, Lurdinha, a primogênita do casal, que o achava um canalha; e uma tia bastante vivida que não gostava da aura dele, mas suas opiniões não eram respeitadas por ser uma porra-louca. Qualquer outro que percebeu aquele exemplo clássico de alpinismo social calou-se para sempre, e o enlace correu naturalmente.

A noiva fez o enxoval sob a gerência da mãe; o pai patrocinou tudo, pagou das taxas e emolumentos até o aperitivo final da festança, providenciando, ainda, convites, flores, aluguel do salão e até o terno do pai do noivo — não fosse assim, o velho não compareceria.

O noivo, da sua parte, levou para o casamento o peru e uma dívida de cinquenta cruzeiros de cana, cerveja e fichas de sinuca que estavam penduradas há meses no Bar e Sinuca do Seu Nicanor.

Foram morar numa das casas que Seu Viriato um dia deixaria de herança para os filhos, e que alugava para ajudar a compor a renda familiar.

Em menos de um ano nasceu José, o primeiro filho do casal, com síndrome de down. A falha genética foi descoberta no ultrassom — exame de translucência nucal — e Augustinho tentou de tudo para convencer a esposa a abortar. Com muito custo, ela considerou assassinar o filho em seu ventre, mas foi demovida do ato abominável pela radical contrariedade da mãe, que ainda exercia alguma influência sobre ela.

Após o nascimento, o pai mal disfarçava o desprezo pela criança. Porém, percebendo o carinho e os cuidados que os avós lhe dispensavam, mudou o comportamento, encarando a situação sob nova perspectiva. Acostumado a fingir, representou a personagem de um pai exemplar, com o intuito de obter vantagens. Passou a pedir dinheiro ao sogro, alegando que não conseguia cobrir os gastos com a criança, e ato contínuo começou a voltar à casa de madrugada, chegando até a agredir Cella fisicamente algumas vezes. Ela, logicamente, escondia tudo da família.

O genro explorou a bondade do sogro até ver a documentação da casa transferida para seu nome e o de Cella, que algum tempo depois faleceu de forma repentina e misteriosa, acometida de moléstia que nem uma junta médica conseguiu diagnosticar.

Certo dia, alegando que não reunia condições de criar José, Augustinho entregou o menino à sogra, prometendo que não o abandonaria por muito tempo; queria apenas acertar o rumo após a desgraça que se abateu sobre sua vida. A avó queria isso mesmo, apesar de saber que acolheria o neto num lar onde já não reinava a paz, pelas inúmeras brigas entre ela e Viriato por causa do genro que o marido tanto amava — Viriato impediu a exumação no corpo de Cella para descobrir a verdadeira “causa mortis”; não queria ferir os brios do viúvo, que sofrera a perda da esposa, com acusações infundadas. O homem sequer observou o comportamento do adolescente Viriatinho, que não parava em casa e dava sinais de envolvimento com álcool e drogas; nem o afastamento dos outros filhos.

Augustinho, pilantra que só, conseguiu vender a casa através de um trambique, pegou o dinheiro e ganhou o mundo. Jamais se soube dele novamente.

O sogro, amargurado, mas sem nutrir maus sentimentos contra o genro, teve morte súbita, sentado, olhando o tempo. Lucrécia viveu sem viver enquanto cuidava de José, preparando-o para levar uma vida dentro da possível normalidade, sem cuidados excessivos e desnecessários. Aguentou até ele atingir a maioridade e logo em seguida sucumbiu.

Coube a Lurdinha a guarda do rapaz após o passamento da mãe.

Apesar de tudo, José era uma lufada de frescor na vida dos tios e, aos trancos e barrancos, agregava os tios nas reuniões familiares, mantendo aproximados os cacos que restaram daquela família que um dia fora estruturada, invejável e feliz.

 

 

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

A triste e relevante história das Conceição

   

Dora Lúcia da Conceição, a Dorinha, era gêmea de Maria Lúcia da Conceição, a Maricota. Eram as únicas filhas da D. Conceição, que socorria pelo nome de Eletildes Lúcia da Conceição — procure abstrair, caro leitor, as confusões causadas pelos nomes das “Lúcias da Conceição” —, uma preta retinta que coxeava da perna direita.

Mulher digna, religiosa e prendada, vestia-se com recato e trazia sempre um lenço à cabeça que combinasse com os vestidos compridos. Cortou um dobrado para criar, sozinha, as meninas, pois o pai delas, um pescador galego metido a oficial da Marinha, cometeu a gentileza de sair para comprar cigarros quando ainda não tinham completado o nono mesversário e jamais retornou à casa para infernizar a vida de quem vivia ao seu redor, como era do seu feitio.

Empregada doméstica — cozinheira de forno e fogão —, ela achava que sofria muito quando encontrou um alçapão no fundo do poço: foi despejada da meia água em que morava com as filhas no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, e na sequência foi impedida de levar as meninas para viverem com ela, em Niterói, no quartinho 3x2 oferecido pela patroa — oferta feita, como se vê, mais para encerrar os atrasos costumeiros da empregada que para promover a prática cristã de estender as mãos aos necessitados.

Sem alternativas, foi viver na casa dos patrões e deixou as meninas sob os cuidados da avó, D. Lúcia da Conceição — prometo ficar quieto dessa vez —, e de duas tias desempregadas, Veralú e Analú, ambas Conceição, que viviam com a mãe, sustentadas pela pensão da velha, que andava mais para lá do que para cá.

O trabalho duro se transformou num regime semiescravo, pois era a primeira a acordar e a última a se recolher; não tinha folga, não recebia dispensa nem tirava férias, algo inconcebível para sua patroa, a socialite Nonata Mascarenhas Paranhos, a Natinha Paranhos, que pagava os direitos da empregada com o dinheiro contado.

Recebendo parcas visitas da mãe, as meninas foram crescendo. Sobre o pai, acreditavam que era um herói da Marinha de Guerra, morto em alto-mar enquanto salvava os tripulantes da Corveta em que servia, durante uma tempestade. Era o que lhes contara a mãe, e os familiares tiveram o bom senso de não desmentir.

Numa triste sequência temporal, primeiro faltou a avó e logo em seguida foi a vez da mãe, em exatos dois meses. As gêmeas, contavam com onze anos, cinco meses e dez dias, e em meio ao sofrimento foram afastadas violentamente.

Natinha Paranhos tratou logo de dividir o espólio de D. Conceição: levou Dorinha para sua casa e despachou Maricota para ajudar uma prima porra-louca que vivia com a mãe, D. Durvalina, numa chácara em Saquarema. As tias das meninas ensaiaram uma reclamação, mas Natinha puxou quatro notas de duzentos reais e, despejando dois lobos guará na mão de cada uma delas, nada mais ouviu.

As meninas sofreram com a adaptação. Emagreceram e ficaram amuadas por um bom tempo; só redescobriram a felicidade no dia em que se encontraram numa confraternização organizada por Natinha para seus parentes. Mas não estavam ali para brincadeiras ou matar saudades, e sim para cuidar dos preparativos, da condução do convescote, da louçaria e das acomodações dos convivas.

 Para a sorte de ambas, havia ao menos duas dessas confraternizações de família por ano, e foi num desses encontros que Maricota, a mais esperta, levou anotado o número do telefone da casa de Deca, a prima de Natinha Paranhos, e o entregou à irmã, para se falarem quando sentissem saudades. Já na segunda ligação, porém, a sonsa da Dorinha foi descoberta e levou uns catiripapos e um castigo por desperdiçar os pulsos de telefone da patroa — a reprimenda de Maricota foi mais suave, feita aos risos.

Alguns anos se passaram e veio o falecimento de D. Durvalina. Deca, que era homossexual, resolveu morar numa comunidade de lésbicas em Friburgo, e para evitar constranger Maricota — que era religiosa como a falecida mãe —, dispensou a moça. Antes, porém, entregou-lhe generosa soma de dinheiro como sinal de gratidão pelo carinho com que cuidou dela e da mãe durante aqueles anos.

Maricota voltou a Niterói para assumir um emprego que Dorinha arranjou em segredo, na casa de D. Josefa Militão, amiga de D. Miguelina Mascarenhas, mãe de Natinha Paranhos. A idosa, que havia sofrido uma queda e precisava de cuidados especiais, ficou encantada com a moça, que chegou para ficar pouco tempo, mas permaneceu até a morte da patroa. Então, a filha de D. Josefa, Carla Seabra, moradora da Tijuca, a contratou; e foi na nova residência que Maricota conheceu o futuro marido, um porteiro do condomínio que trabalhava no horário noturno.

Carla Seabra, muito satisfeita, só dispensou Maricota anos depois, para trabalhar para seu filho do meio quando ele foi pai pela primeira vez, porque não confiava na nora para cuidar do neto. A nora, carne de pescoço, não ficou mais de um ano com Maricota, e a despachou para trabalhar com uma prima que morava na Lagoa.

Com tantas mudanças, Maricota angariou mais experiência que Dorinha, que trabalhou na mesma casa por décadas. Conviveu com milionários descolados, dotados de “consciência social”, daquele tipo que banca a educação da empregada ao mesmo tempo em que a explora nos horários, ou a leva em suas viagens para cuidar do café pequeno, como crianças, lavagem de roupas, despacho de malas etc. Maricota trabalhou para burro, mas fez faculdade de contabilidade. Nunca exerceu a profissão, embora tivesse o diploma de pêlo de cordeiro, presente da patroa, enquadrado na parede.

Dorinha completou o segundo grau. Foi na escola que conheceu Feliciano, seu marido, responsável pelos serviços gerais da instituição e o homem que realizou todos os seus sonhos, que eram simples. Ele chegou a admitir que Dorinha levasse a D. Durvalina para morar em sua casa depois que Natinha decidiu enfiar a mãe num asilo — haviam chegado o ocaso da anciã e a necessidade de muitos cuidados, e justamente na época do nascimento do primeiro bisneto de Natinha.

Quando nasceu a sua neta, Dorinha pediu a aposentadoria, mas Natinha, mandona que só, não aceitou. Concordou em diminuir o horário de expediente, mas exigiu que continuasse trabalhando em sua casa para coordenar o serviço das demais empregadas, além de comparecer em algumas recepções do fim de semana, quando seria remunerada por fora. A situação, porém, não durou muito. Bastou encontrar outra moça capaz de realizar o serviço que Natinha a dispensou sem maiores justificativas.

Dorinha ficou satisfeita. Enfim, havia chegado a hora de curtir a vida ao lado do marido. Estavam sozinhos, pois os filhos casaram e ganharam o mundo. Para seu azar, porém, Feliciano adoeceu, e coube a ela cuidar de mais um doente dentre tantos que cuidou no curso de sua vida dedicada ao próximo. Aquela, aliás, parecia uma sina dos membros da família Conceição.

Maricota, aparentemente, teve maior sorte. Após se aposentar, ela e o marido, que já estava aposentado, compraram uma casa no interior de Maricá, perto da praia — cerca de vinte e cinco minutos de carro —, e um Fiat Uno conservadão. Como o Senhor não os havia abençoado com filhos, pretendiam viver naquele paraíso sozinhos até o fim de seus dias.

Mas o destino prega as suas peças...

Oito meses se passaram e Maurício, esse era o seu nome, teve morte súbita, consequência de um aneurisma cerebral que sofreu enquanto limpava os caranguejos e tomava caipirinha.

Feliciano faleceu cerca de dois anos depois, já muito castigado pelo câncer.

Maricota, que havia voltado para São Gonçalo, perguntou à irmã se não queria viver com ela em Maricá. Disse que a casa ainda estava lá, meio abandonada, servindo apenas para alugar por temporadas. Poderiam ver gente nova, ir à praia, à lagoa..

Dorinha aceitou e lá se foram as duas viverem juntas novamente, e passaram alguns anos naquela vidinha sem graça, com a rotina quebrada apenas nos dias de Feira e de Missa.

Certo dia, Dorinha estranhou que a irmã tivesse acordado tão cedo, pois não estava no único quarto da casa, onde dormiam. Ainda não eram três da manhã. Ela se levantou para fazer o xixi da madrugada e, ao caminhar meio trôpega pelo corredor, deparou-se com o corpo de Maricota caído, com uma poça de sangue ao lado, escorrido da cabeça, provavelmente machucada ao bater na quina da mesa de jantar enquanto desabava, em razão do infarto fulminante posteriormente diagnosticado.

Quase sem acreditar, e apavorada, Dorinha sentiu uma dor lancinante no peito e foi se alojando, lentamente, ao lado do corpo da irmã até cair igualmente morta, de infarto, logo após, quem sabe, perceber que viver não faria mais nenhum sentido, pois não lhe havia restado mais ninguém para cuidar.

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

O médico e o monstro advogado

  

Dr. João Miguel, um homem de posses, deu muito duro para construir seu patrimônio. Era encegueirado por dinheiro e, para aumentar ainda mais a fortuna amealhada, resolveu empreender esforços extras que, digamos, não eram muito recomendáveis, ao menos na forma em que procedeu. É necessário observar que, no curso de sua carreira laureada na Medicina, de tanto que aprontou fazendo esforços extras, teve que se ver com o fisco e até com a polícia. Por conta disso, viu-se obrigado a desembolsar boas somas de dinheiro, o que perturbou deveras sua paz de espírito.

Para seu desespero, então, não lhe restava alternativa senão constituir um profissional da categoria que costumava castigar com os piores adjetivos. Nas rodas de amigos, chamava os advogados de aves de rapina; de depenadores de primeira grandeza que, ao serem procurados por alguém necessitando de seus serviços, armavam o bote para tirar-lhe os últimos cobres — ou mesmo o couro —, mediante artifícios, malandragens e quejandos.

Cabem, aqui, parêntesis. É comum ouvir falas com tom de reprovação e de desprezo em desfavor da advocacia, categoria que, devemos admitir, abriga verdadeiros pavões, ególatras e desonestos. Mas não há motivo para generalizações, com desprezo à consideração sobre o indivíduo. Veja que esse tom quase nunca é destinado aos profissionais de outras áreas, certamente por se acreditar que elas atraem o gosto de virgens vestais, ou conferem a quem as pratica uma aura de santidade. Por outro lado — não podemos desprezar —, há quem possua uma imagem superestimada de si próprio, enquanto não passa de um arrogante, insensível e desonesto, nada devendo ao tão criticado advogado; e sendo até, por vezes, sua verdadeira alma gêmea.

Voltando ao Dr. João Miguel, ele jamais confessou aos amigos que, apesar da implicância com os causídicos, sempre buscou a ajuda de um para livrá-lo das implicações com o Judiciário por seu envolvimento em situações, digamos, questionáveis. E procurava os da pior espécie, pois acreditava que quem não possui escrúpulos está mais apto a lidar com as instituições públicas voltadas à persecução penal e fiscal. Com efeito, não foram poucas as vezes que frequentou os escritórios do submundo do crime, como costumava dizer, para se livrar de uma picona enorme prestes a ser enterrada em seu rabo.

No início, chegou a acreditar que o jurisconsulto retiraria a naba de dentro dele a troco de vinténs, pois profissão de prestígio era a dele. Com o tempo, porém, percebeu não haver nada mais afastado da realidade. A cobrança era conformada à situação apresentada, e daí vinha o seu queixume.

Analisando a “teoria do pilantra da história”, a triste realidade é a de que muito profissional é considerado desonesto exatamente em razão do tipo de cliente que o procura. Os verdadeiros honestos, devo concordar, são esquecidos ou dispensados para dar lugar àqueles que sabidamente possuem contatos e entrâncias facilitadas, participam de maracutaias, subornam servidores públicos e são “chegados” dos magistrados.

Enfim, em inúmeros casos, a mesma régua serve para medir o ofensor e o ofendido.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

O Espantalho do Condomínio

 

Robervaldo Georgian de Bragança já entrara na melhor idade. Contava com sessenta e oito anos, mas sua aparência era de oitenta e cinco. A família Bragança, da parte do pai, que se desconfiava ser da linhagem dos Imperadores, havia desembarcado no Novo Mundo, vinda de Portugal, à época da Colônia — ou extensão territorial do Reino na América, como queiram os adeptos das diferentes perspectivas históricas —, e fizera fortuna nos ciclos econômicos, inclusive explorando o comércio escravagista. A fortuna, porém, havia se dissipado nos tempos de seu avô, não chegando um mísero cobre até ele. Pelo lado da mãe veio a veia armênia, e a junção das raças lhe conferia uma carranca que causava agonia nos mais sensíveis.

Tinha olhos grandes e negros, boca larga, com pêlos à mostra nas orelhas de elefante e no nariz, provável herança dos avanços muçulmanos Península Ibérica adentro. Era conhecido por Espantalho do Condomínio porque não cortava os cabelos encarapinhados, que cresciam arrepiados como os cultivados pelos cantores sertanejos dos anos oitenta do século XX, mas armados, por sua consistência. Para perplexidade geral, porém, usava barba bem escanhoada.

O apartamento em que morava, ele ganhou num sorteio feito entre os operários que participaram das obras que levantaram os prédios do condomínio, generosidade do rico empreiteiro que patrocinou todas as etapas da construção, desde o projeto à entrega.

Perambulava pelas ruas da cidade o dia inteiro, com velocidade impressionante, portando um cajado — em verdade, um varão de pendurar cortinas encontrado numa das caçambas de lixo que tinha por costume revirar. Ele era desses, apesar de aparentemente não precisar, dada a vida espartana que levava, sem filhos ou até passarinho para dar alpiste; e o grosso dos gastos do apartamento era arcado por seu irmão e um amigo, que moravam com ele sem pagar aluguel. Aparentemente, possuía saúde de ferro e por isso não consumia a aposentadoria, que não era das piores, com os remédios que normalmente funcionam como ralos por onde escoa o dinheiro de velhinhas e de velhinhos aposentados e pensionistas.

Possuía uma boa cultura e esbanjava conhecimento devido à constante leitura de clássicos, mas também se rendia a toda sorte de “teorias da conspiração” — segundo a linguagem popular —, fossem provenientes de histórias verdadeiras ou realmente falaciosas. Como é sabido, conspiradores, tiranos, psicopatas e mentirosos chamam teoria da conspiração suas maquinações, o que assegura a ignorância do homem médio sobre fatos verídicos que não devem ser repercutidos.

Tinha acesso à literatura produzida por sociedades secretas para fazer propaganda de suas atividades, mas também lia aquele tipo de livro que promete revelar o lado oculto dessas sociedades, sem que o escritor conheça patavinas de seus meandros. Some-se a isso o fato dele ter frequentado algumas reuniões da Rosa-Cruz e da Maçonaria, e o contato mantido com alguns "línguas soltas" que contrariavam as determinações ancestrais dessas ordens. Dessa miscelânea retirava sua suposta autoridade sobre os mais variados temas.

Gostava de política, religião e comportamento humano; e uma simples conversa com ele resultava numa profusão de informações encontradas e desencontradas, com potencial de aturdir o interlocutor. Acreditava-se que o mix de conhecimentos absorvidos o deixara louco. Ele, porém, tentava apenas interagir com pessoas mal informadas, grosseiras, deselegantes, insinceras, consumidoras assíduas de produtos da grande mídia e de best sellers expostos com destaque nas prateleiras das livrarias e nas listas de mais vendidos publicados em colunas especializadas — o tipo de gente cuja cota de leitura é a de um exemplar por ano (ou década), que gosta de falar sobre o que não conhece.

Alguns ainda hoje arriscam dizer que ele era evitado por questões ideológicas, já que era anti-esquerdista. A desculpa oficial, contudo, era a de que o tempo custa caro e deve ser bem administrado para oportunizar o descanso, a alimentação, o trabalho, os deslocamentos e o acesso às redes sociais. A Robervaldo, então, restava disputar o espaço destinado à aquisição de cultura, ou seja, nenhum.

Mas o homem era incansável; seu objetivo de vida era alertar a todos dos perigos das trevas que rondam nosso mundo, e não se dava por vencido. De tanto insistir em abordar os vizinhos, acabou por espantá-los (espantalhos!), o que os fez evitar encontros desviando o caminho, retornando ou dando desculpas como a pressa — essa, grande parte das vezes, uma verdade.

E o que fez o velhaco quando percebeu isso?

Passou a espreitá-los para, no momento oportuno, dar o bote e colocá-los em xeque. Apertava ou atrasava o passo para parear com a vítima, voltava com ela quando estava indo, abordava-a na garagem enquanto manobrava o carro... Chegou ao ponto de se esconder por trás das pilastras e das caçambas de lixo, ocasião em que aproveitava para revolver as sacolas e tirar algo de seu interesse.

A inconveniência das abordagens levou alguns condôminos a formalizarem reclamações perante o síndico, pedindo uma providência — não a cachaça, à qual o síndico era bastante chegado, mas a solução da situação.

Para cumprir a parte que lhe cabia, o alcaide condominial se dirigiu, com solenidade e obstinado a resolver a demanda, ao irmão e ao amigo do Sr. Espantalho. Os coabitantes ouviram as queixas, concordaram que isso requeria uma atitude firme e em seguida ameaçaram o pobre homem de interná-lo num hospício.

E o que fez nossa personagem principal diante dessa nova circunstância?

Astuto, riu às escâncaras e confidenciou-lhes que os esquerdistas negacionistas das ciências naturais haviam se enfileirado em campanha inglória para o fechamento dos sanatórios, e conseguiram o intento, colocando os loucos nas ruas para ajudar a causar o caos social, já que o lumpemproletariado passara a ser entendido como substituto da classe operária na função revolucionária.

Mas não podemos dizer que a reprimenda não surtiu efeito, pois as abordagens aos moradores do condomínio diminuíram.

A vida avançava mansa, mas inflexível, até que, num determinado dia ensolarado, o Sr. Espantalho adoeceu; e naquele momento não reunia forças sequer para tomar um táxi em direção ao hospital.

Um vizinho entrou em polvorosa ao se deparar com a ambulância da SAMU em frente ao condomínio, e começou a disparar inúmeras mensagens nos grupos de Whatsapp dos blocos para descobrir quem precisava de socorro. A investigação durou tempo considerável — se levarmos em conta a velocidade telemática — porque os três moradores do apartamento 505 do Bloco C eram avessos ao uso de smartphones e, por conta disso, não participavam de redes sociais.

Após a revelação, de repente, descobriu-se que a resistência ao Sr. Espantalho não era absoluta; ele era capaz de suscitar a piedade alheia. Até os condôminos mais empedernidos viraram a chave e passaram a sofrer com o doente — somatização geral. Elogios foram tecidos e pulularam desejos de pronta recuperação, além de promessas de orações e de terços em sua intenção. Chegaram a dizer que não esperavam a hora de poderem fazer uma visita para celebrar a melhora do querido vizinho e prestar-lhe solidariedade levando uma canjinha, uma rosca seca, um bolo fresquinho...

Ele jamais voltou para casa.

Três semanas depois, o Espantalho do Condomínio foi enterrado no cemitério Jardim da Saudade. Estavam presentes: o irmão, o amigo coabitante e dois mendigos, companheiros de longa data com quem ele costumava passar horas por dia conversando sobre temas variados, na esquina da Rua da Hipocrisia com a Rua da Falsidade.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista