quarta-feira, 19 de junho de 2019

Dona Pontualina



Dona Pontualina era uma senhorinha direta e objetiva. O cabelo tingido de acaju formava uma aura redonda em torno de sua face ovalada, e cobria as orelhas de abano, embora deixasse de fora os lóbulos caídos. Seu nariz era adunco, mas não exagerado, e os olhos pequenos e próximos tinham a cor de azeviche. A boca miúda, sem carne, além dos dentinhos já escurecidos pelo tempo, guardava a língua comprida e ferina usada para desancar porteiros, feirantes, entregadores, caixas de banco e de supermercado, e a classe que a tirava do auto-atribuído estado de eterna serenidade: a dos condutores de veículos.
Contava com 69 anos, mas, já nesses tempos de longevidade do ser humano, aparentava oitenta e tantos. Algumas conhecidas de longa data diziam que, antes de virar a guardiã da verdade, da moral e dos bons costumes, ela havia sido levada da breca – e com boca-de-siri comentavam que o envelhecimento era resultado da sua vida desregrada. Ela negava, mesmo sem saber dos comentários maliciosos, ao recordar que o falecido, verdadeiro Don Juan, confessara que jamais conhecera mulher tão pura e santa.
A 2 meses de completar 70 anos, ligou para Cidinha e reclamou de umas tonturas que a incomodavam há semanas. A sobrinha emprestada, porque Dona Pontualina era prima de sua avó, fingia preocupação com a saúde dela, mas, em verdade, batalhava para ser beneficiária de seu testamento, pois a idosa não possuía herdeiros – diziam por aí que ela guardava a fortuna deixada pelo Coronel Antenor, o falecido marido: “Tia, a senhora precisa deixar um testamento contemplando as pessoas que ama, senão o dinheiro vai para o Estado”, fazia questão de lembrar ao menos uma vez por semana.
Cidinha ficou de marcar com uma médica amiga, um horário em dia próximo, e já na manhã seguinte ligou, avisando que dali a três dias, às 10h da manhã, a Drª Shirley, clínica geral, a atenderia em seu consultório improvisado num quarto da casa dos fundos, no terreno de seus pais, no Bairro Esmeralda, próximo à região chamada Cidade Nova.
A senhorinha, que morava no Centro Histórico, saiu de casa às 8h20, para tomar o ônibus que faria o trajeto em meia hora. Tinha problemas com horários – não suportava atrasos e achava normal chegar com muita antecedência aos locais em que seria recebida com hora marcada. É que, enquanto aguardava, aproveitava para atazanar os ouvidos do pobre coitado que estivesse na recepção, buscando antecipar o atendimento. Era sempre assim.
Tomou o ônibus às 8h32, e reclamou com o motorista que o horário de passar em seu ponto era 8h29. Disse que saíra cedo de casa para não precisar correr pela rua atrás da condução, feito uma destrambelhada, e que não podia perder aquela viagem, para chegar a tempo na médica. O motorista se desculpou meio entredentes, e partiu com o cavalo de aço rumo à parte nova da Cidade, local para onde haviam mudado o Fórum, o Ministério Público, a Prefeitura, as clínicas médicas e de estética, os maiores escritórios de advocacia e as demais empresas de certa relevância.
Não percorreu 3 quilômetros sossegada. Havia no itinerário uma rua com o asfalto completamente esburacado, e o ônibus começou a sacolejar. De imediato, ela já grunhiu alguma coisa, mas a gota d’água foi a entrada do “ermão” pedindo dinheiro para a obra realizada por sua Igreja – que não revelou o nome –, e do vendedor de salgados, dizendo: “É grosso, é gostoso, é quentinho. O meu bolinho”. A idosa não se aguentou e, revoltada, disparou: “É religioso querendo extorquir o crente; é salgadinho erótico; é porcaria de ônibus que chacoalha de um lado a outro...” Ao final, ainda soltou seu bordão: “Ih! Não estou gostando disso não!”.
No consultório, após entrevista preliminar, a médica denotando preocupação, requereu uma bateria de exames específicos, além de encaminhá-la a uma médica conhecida, especialista em oncologia.
De início, Dona Pontualina se assustou. Depois, pegando os dados da outra médica e os requerimentos dos exames, prometeu voltar com os resultados o mais rápido possível. Mas enquanto atravessava o quintal da Casa/Consultório para sair pela rua em frente à residência dos pais da médica, procurava se convencer de que não passava de labirintite, e que a “outra” devia estar louca ao pensar que ela pudesse estar acometida por uma doença daquelas, tão terrível que sequer ousava pronunciar o nome, e chamava de “doença rúim”, assim mesmo, com ênfase no “u”. Mais afastada do consultório, convenceu-se de que nada era urgente ou preocupante, como quis fazer parecer a médica iniciante. “Também, de uma amiga da Cidinha, o que eu deveria esperar?”, pensou o amargor em pessoa.
Na volta para casa pegou um táxi e, ao dobrar na primeira esquina, já começou a reclamar com o motorista do cheiro de peido e de cigarro barato no interior do veículo. Advertiu-o, dizendo que deveria comprar um “bom ar” se não quisesse matar um passageiro. Em seguida, pediu-lhe para acelerar o máximo possível ao seu destino, porque já estava com náuseas: “Ih! Não estou gostando disso não!”, falou.
Algumas semanas depois, como a tontura não dava descanso, e Dona Pontualina resolveu procurar outro médico, numa clínica chiquíssima, num prédio empombadão que ficava num centro comercial luxuoso, no Coração da Cidade Nova, na principal avenida do Bairro Leão Jardim. Era uma indicação de Nilcéia, a Ceinha, velha companheira de farras, que com o tempo também havia esquecido as agruras da vida-moça. “Vai lá que você vai gostar, e vai sair boazinha”, tinha ouvido da amiga na semana anterior. Ao telefone, soube que só havia horário para dali a 5 meses, e que não era costumeiro encaixar pacientes. Ela resolveu aguardar. Afinal, estava convicta da labirintite, e a dor fortíssima acabara se tornando sua companheira.
Na véspera da consulta, foi convencida pelo porteiro da noite – um jovem que fazia Dona Pontualina suspirar, mas “por dentro”, e com todo o respeito –, de que deveria pegar um 99-pop, que era baratinho e fazia o deslocamento rapidamente. Ele mesmo baixou o aplicativo no celular moderno que a fizera comprar uns meses antes, e disse para ela pedir a alguém disponível que chamasse um carro para ela quando fosse necessário, e a premiada foi a zeladora do prédio.
O primeiro que atendeu, era um jovem com aparência de funkeiro, e a dona disse que não entraria naquele carro. O segundo, um gordo todo suado, chegou com as janelas do carro arriadas, e foi rechaçado com a velocidade da luz. O terceiro, talvez para sorte dela, foi dispensado porque tinha os braços e o pescoço cobertos de tatuagens de caveiras e de palhaços: “Você não serve”, disse ela. Por fim, o quarto motorista, que não conseguiu localizar o prédio imediatamente, na rua mal sinalizada, foi aceito por sua aparência agradável. Ele, porém, não se livrou das broncas da Dona Pontualina, dadas assim que ela tomou assento no banco de trás: “O senhor não leu direito o endereço nesse negócio aí não, hein?”.
Ele pediu um desconto, porque era seu segundo dia de trabalho naquela atividade. Ela não descontou, e foi reclamando dali ao destino, dizendo que não gosta de entrar em qualquer carro não, que ele deveria pegar a Avenida Beira-Mar, que era a melhor avenida, porque ligava toda a Cidade (apesar de totalmente fora do percurso). Ele pegou o caminho solicitado, mas, por erro do aplicativo, levou-a ao Bairro Jardim Leonor, que era próximo ao Bairro Leão Jardim, também na Cidade Nova. Houve mais uma profusão de impropérios, até ela dizer: “Ih! Não estou gostando disso não!”
Ainda assim, chegou 42 minutos antes do horário da consulta; e logo após as formalidades do cartão do plano de saúde, iniciou as investidas para antecipar o atendimento, mas somente após a demorada consulta com a mulher e os filhos do Prefeito, é que o Dr. Carlos de Alencastro, jovem e bonito, oriundo de uma tradicional família de médicos dos ricos e dos figurões do Estado, convidou-a a entrar em seu consultório, para iniciar uma inquirição minuciosa. Ao final, disse que, para um melhor diagnóstico, ela precisaria se submeter a alguns exames, a serem realizados imediatamente em sua própria clínica, dada a possível gravidade do caso.
Enquanto esperava a chamada entre um exame e outro, foi se enturmando aqui e ali. Exaltou suas qualidades, acentuou os defeitos de suas vizinhas, que ninguém ali conhecia, e até confessou que vivia às turras com condutores de ônibus, de táxi, e até do tal 99-pop. A senhora que ouvia àquilo tudo, e que também gostava de falar das vidas alheias, disse que o melhor seria pegar um Uber. Dona Pontualina foi facilmente convencida, e em seguida cedeu seu celular para a neta da interlocutora baixar o aplicativo.
Após os exames, cujos resultados sairiam em poucos dias, pediu a uma das meninas da recepção que chamasse o Uber – pagamento em dinheiro, pois só confiava em Lourival, o porteiro da noite do edifício em que morava, para cadastrar seu cartão.
Já o primeiro motorista do Uber deu sorte, e foi contemplado com a contratação da velha ranzinza, que iniciou a viagem dizendo que não gosta de internet e que não entra em carro guiado por quem não lhe agrada: “Se não gosto da cara do sujeito que vem me buscar, mando embora na mesma hora. Nem quero saber.” Ele sorriu, e tocou o carro.
Ela continuou: “Moço, estou atrasada para fazer meu jantar, e quero que o senhor pegue o caminho que conheço, pela Avenida Beira-Mar.”
Ele tentou contra argumentar, dizendo que não conseguiria entregá-la com rapidez, pois aquele era o trajeto mais demorado: “Vamos experimentar o caminho que o aplicativo está indicando, e nós chegaremos mais rápido a essa hora.” Ela concordou para, apenas poucos minutos depois, passar a reclamar: “O Senhor está rodando por lugares que não conheço. Ih! Não estou gostando disso não!”
E não parou mais de reclamar, testando a paciência do rapaz.
Ao final do trajeto, deu 2 estrelas porque havia gostado dele no início, e não precisou cancelar a corrida nem chamar outros motoristas. Ele foi embora e percebeu sua nota baixar vertiginosamente, mas não reclamou, e pediu a Deus para dar paz àquela velhota.
Em alguns dias, os resultados dos exames ficaram prontos, e o Dr. Alencastro pediu à secretária para marcar urgentemente nova consulta com Dona Pontualina, pois sua desconfiança fora confirmada: ela possuía um meningioma, um tumor cerebral de tamanho considerável. Elas ligaram no exato momento em que a paciente, sentindo dores insuportáveis, pediu ao porteiro para chamar uma ambulância, e desmaiou em seguida, na recepção do seu prédio.
Õé-õé-õé-õé-õé-õé, veio rasgando o trânsito a ambulância da SAMU, guiada por Sérgio, jovem socorrista que acabara de perder a avó, e não queria ver outra velhinha morrendo. Ele, porém, não contava com o “fator-Pontualina”, que, tendo recobrado os sentidos, e para o espanto de ninguém, senão dos socorristas, disse que não havia gostado da cara deles, e requisitou o envio de outra unidade móvel.
Nem Cristo descendo à terra a teria convencido, embora não chegasse a ser necessário, pois tudo se resolveu em muito pouco tempo: Os socorristas foram deslocados para outra ocorrência, após reportarem a recusa da velhinha doente em ser atendida pela equipe, e mal a ambulância dobrava na segunda rua, com a sirene ligada e a todo vapor, Dona Pontualina, sentindo dores intensas, pôs um largo sorriso no rosto e deu o último suspiro. Para seu infortúnio, porém, ela agora seria derradeira e inapelavelmente transportada, mesmo que a contragosto, pelo serviço funerário.

P.S: A herança, Dona Pontualina já havia destinado integralmente, 3 anos antes, a Lourival, o porteiro da noite, num testamento deixado aos cuidados do Dr. Natanael Lucena, advogado e velho amigo da família.

Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Quitutes de adolescentes



No fim de semana, eu e minha mulher trabalhamos num Encontro de Casais com Cristo, e em determinado momento conversávamos com os companheiros de equipe, recém-conhecidos, sobre os filhos, quem havia ficado para tomar conta deles... Coisas do gênero.
Dissemos que os nossos gêmeos estavam sozinhos, pois já sabem se cuidar – daqui a pouco estarão com 15 anos –, e então perguntaram se não iríamos a casa ao menos para preparar o almoço. Minha mulher disse que não seria necessário, e eu complementei, dizendo que a menina, desde novinha, havia aprendido a se virar na cozinha.
Certo dia, eu e a patroa fomos à feira-livre, em jejum. íamos comer uns pastéis por lá, mas, no meio do caminho, eu decidi comer, àquela hora da manhã, ovos caipiras estrelados, com gema mole, e um arroz fresquinho... E feito pela Dona Nininha, nossa filha.
A mulher, espantada, perguntou: “você sabe que ela nunca fez nada no fogão, certo?”
Eu disse que sabia disso, e também que ela, a mãe, começou a cozinhar bem pequenininha. Além disso, sabia de várias histórias de pessoas que, com pouca idade, haviam tomado conta de irmãos menores, inclusive aprontando mamadeiras, papinhas e comidas.
Ela ligou para casa e, com o coração na mão, ensinou à menina o que fazer. Como prêmio, o resultado ficou muito acima do esperado.
Ao relembrar o caso, pesaroso, comentei com o pessoal da equipe que hoje em dia ela quase não cozinha mais, e só faz o que lhe interessa. Falei também que sempre pedimos para nos surpreender ao chegarmos a casa, com algo gostoso prontinho para comermos, mas nunca surtiu efeito. E completei, dizendo que, para o pai e a mãe ela não faz, mas, certamente, no dia em que arranjar um namorado, vai providenciar, de bom grado, vários acepipes para o bandido...
Minha mãe dizia que a língua é o chicote do rabo. E é mesmo. Para nossa grata surpresa, após um fim de semana exaustivo, não é que havia um delicioso bolo de limão, feito para comermos quando retornássemos? Chegamos a postar a foto no zap da equipe, de tão satisfeitos com nossa menina. E olha que ela já havia preparado o almoço, deixando apenas a louça para o irmão lavar.
E por que resolvi contar tudo isso?
É porque me fez lembrar um fato ocorrido há muitas e muitas luas, que passei a narrar para minha esposa.
Era a década de 80.
Três amigos inseparáveis, que zanzavam por tudo quanto é canto, estavam na casa do mais velho, que exercia certa liderança, assistindo a filmes alugados numa locadora de fitas VHS. Sua casa era talvez a única daquele bairro de periferia em que existia um vídeo cassete.
No intervalo, todos desceram para tomar água, e deram de cara com um monte de tortas alemãs dispostas na geladeira, preparadas pela irmã dele para o namorado, que era conhecido dos três rapazes.
O generoso irmão passou a mão nas pequenas, e saiu distribuindo. O gordinho da turma (por Deus!), foi o único a perguntar se não ia dar merda. O anfitrião respondeu que não, argumentando que ela havia feito um monte para isso mesmo... Era só não tocar na “grandona”.
Foi a chave. Ninguém pensou duas vezes após a resposta – um migué danado que não convenceria a ninguém do júri.
E é lógico que deu merda.
Em meio às minhas elucubrações, minha mulher, com o cenho fechado, bronqueou: “Siiimm! Ela, uma adolescente, com namorado, fez um monte de tortinhas para os amigos do irmão? Sei! Se fosse comigo...”
Tenho certeza que foi uma reprimenda preventiva, já pensando em vetar qualquer investida minha contra acepipes que minha filha, no futuro, venha a preparar para o bandido, quer dizer, namorado.
É só não fazer tortinhas alemãs...

Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a escrever algumas coisas e, até certo ponto, um saudosista.