Dona
Pontualina era uma senhorinha direta e objetiva. O cabelo tingido de acaju
formava uma aura redonda em torno de sua face ovalada, e cobria as orelhas de
abano, embora deixasse de fora os lóbulos caídos. Seu nariz era adunco, mas não
exagerado, e os olhos pequenos e próximos tinham a cor de azeviche. A boca
miúda, sem carne, além dos dentinhos já escurecidos pelo tempo, guardava a
língua comprida e ferina usada para desancar porteiros, feirantes,
entregadores, caixas de banco e de supermercado, e a classe que a tirava do auto-atribuído
estado de eterna serenidade: a dos condutores de veículos.
Contava com
69 anos, mas, já nesses tempos de longevidade do ser humano, aparentava oitenta
e tantos. Algumas conhecidas de longa data diziam que, antes de virar a guardiã
da verdade, da moral e dos bons costumes, ela havia sido levada da breca – e com boca-de-siri
comentavam que o envelhecimento era resultado da sua vida desregrada. Ela
negava, mesmo sem saber dos comentários maliciosos, ao recordar que o falecido, verdadeiro Don Juan, confessara que jamais
conhecera mulher tão pura e santa.
A 2 meses de
completar 70 anos, ligou para Cidinha e reclamou de umas tonturas que a
incomodavam há semanas. A sobrinha emprestada, porque Dona Pontualina era prima
de sua avó, fingia preocupação com a saúde dela, mas, em verdade, batalhava para
ser beneficiária de seu testamento, pois a idosa não possuía herdeiros – diziam
por aí que ela guardava a fortuna deixada pelo Coronel Antenor, o falecido
marido: “Tia, a senhora precisa deixar um testamento contemplando as pessoas
que ama, senão o dinheiro vai para o Estado”, fazia questão de lembrar ao menos
uma vez por semana.
Cidinha ficou
de marcar com uma médica amiga, um horário em dia próximo, e já na manhã
seguinte ligou, avisando que dali a três dias, às 10h da manhã, a Drª Shirley,
clínica geral, a atenderia em seu consultório improvisado num quarto da casa
dos fundos, no terreno de seus pais, no Bairro Esmeralda, próximo à região chamada Cidade Nova.
A senhorinha,
que morava no Centro Histórico, saiu de casa às 8h20, para tomar o ônibus que
faria o trajeto em meia hora. Tinha problemas com horários – não suportava atrasos
e achava normal chegar com muita antecedência aos locais em que seria recebida
com hora marcada. É que, enquanto aguardava, aproveitava para atazanar os
ouvidos do pobre coitado que estivesse na recepção, buscando antecipar o
atendimento. Era sempre assim.
Tomou o
ônibus às 8h32, e reclamou com o motorista que o horário de passar em seu ponto
era 8h29. Disse que saíra cedo de casa para não precisar correr pela rua atrás
da condução, feito uma destrambelhada, e que não podia perder aquela viagem, para
chegar a tempo na médica. O motorista se desculpou meio entredentes, e partiu
com o cavalo de aço rumo à parte nova da Cidade, local para onde haviam mudado
o Fórum, o Ministério Público, a Prefeitura, as clínicas médicas e de estética,
os maiores escritórios de advocacia e as demais empresas de certa relevância.
Não percorreu
3 quilômetros sossegada. Havia no itinerário uma rua com o asfalto
completamente esburacado, e o ônibus começou a sacolejar. De imediato, ela já
grunhiu alguma coisa, mas a gota d’água foi a entrada do “ermão” pedindo
dinheiro para a obra realizada por sua Igreja – que não revelou o nome –, e do
vendedor de salgados, dizendo: “É grosso, é gostoso, é quentinho. O meu
bolinho”. A idosa não se aguentou e, revoltada, disparou: “É religioso querendo
extorquir o crente; é salgadinho erótico; é porcaria de ônibus que chacoalha de
um lado a outro...” Ao final, ainda soltou seu bordão: “Ih! Não estou gostando
disso não!”.
No
consultório, após entrevista preliminar, a médica denotando preocupação, requereu
uma bateria de exames específicos, além de encaminhá-la a uma médica conhecida,
especialista em oncologia.
De início, Dona
Pontualina se assustou. Depois, pegando os dados da outra médica e os
requerimentos dos exames, prometeu voltar com os resultados o mais rápido
possível. Mas enquanto atravessava o quintal da Casa/Consultório para sair pela
rua em frente à residência dos pais da médica, procurava se convencer de que não
passava de labirintite, e que a “outra” devia estar louca ao pensar que ela
pudesse estar acometida por uma doença daquelas, tão terrível que sequer ousava
pronunciar o nome, e chamava de “doença rúim”, assim mesmo, com ênfase no “u”. Mais
afastada do consultório, convenceu-se de que nada era urgente ou preocupante,
como quis fazer parecer a médica iniciante. “Também, de uma amiga da Cidinha, o
que eu deveria esperar?”, pensou o amargor em pessoa.
Na volta para
casa pegou um táxi e, ao dobrar na primeira esquina, já começou a reclamar com
o motorista do cheiro de peido e de cigarro barato no interior do veículo.
Advertiu-o, dizendo que deveria comprar um “bom ar” se não quisesse matar um
passageiro. Em seguida, pediu-lhe para acelerar o máximo possível ao seu
destino, porque já estava com náuseas: “Ih! Não estou gostando disso não!”,
falou.
Algumas
semanas depois, como a tontura não dava descanso, e Dona Pontualina resolveu
procurar outro médico, numa clínica chiquíssima, num prédio empombadão que
ficava num centro comercial luxuoso, no Coração da Cidade Nova, na principal
avenida do Bairro Leão Jardim. Era uma indicação de Nilcéia, a Ceinha, velha
companheira de farras, que com o tempo também havia esquecido as agruras da
vida-moça. “Vai lá que você vai gostar, e vai sair boazinha”, tinha ouvido da
amiga na semana anterior. Ao telefone, soube que só havia horário para dali a 5
meses, e que não era costumeiro encaixar pacientes. Ela resolveu aguardar.
Afinal, estava convicta da labirintite, e a dor fortíssima acabara se tornando
sua companheira.
Na véspera da
consulta, foi convencida pelo porteiro da noite – um jovem que fazia Dona
Pontualina suspirar, mas “por dentro”, e com todo o respeito –, de que deveria
pegar um 99-pop, que era baratinho e fazia o deslocamento rapidamente. Ele
mesmo baixou o aplicativo no celular moderno que a fizera comprar uns
meses antes, e disse para ela pedir a alguém disponível que chamasse um carro para
ela quando fosse necessário, e a premiada foi a zeladora do prédio.
O primeiro
que atendeu, era um jovem com aparência de funkeiro, e a dona disse que não
entraria naquele carro. O segundo, um gordo todo suado, chegou com as janelas
do carro arriadas, e foi rechaçado com a velocidade da luz. O terceiro, talvez
para sorte dela, foi dispensado porque tinha os braços e o pescoço cobertos de
tatuagens de caveiras e de palhaços: “Você não serve”, disse ela. Por fim, o quarto
motorista, que não conseguiu localizar o prédio imediatamente, na rua mal
sinalizada, foi aceito por sua aparência agradável. Ele, porém, não se livrou das
broncas da Dona Pontualina, dadas assim que ela tomou assento no banco de trás:
“O senhor não leu direito o endereço nesse negócio aí não, hein?”.
Ele pediu um
desconto, porque era seu segundo dia de trabalho naquela atividade. Ela não descontou,
e foi reclamando dali ao destino, dizendo que não gosta de entrar em qualquer
carro não, que ele deveria pegar a Avenida Beira-Mar, que era a melhor avenida,
porque ligava toda a Cidade (apesar de totalmente fora do percurso). Ele pegou
o caminho solicitado, mas, por erro do aplicativo, levou-a ao Bairro Jardim
Leonor, que era próximo ao Bairro Leão Jardim, também na Cidade Nova. Houve mais
uma profusão de impropérios, até ela dizer: “Ih! Não estou gostando disso não!”
Ainda assim,
chegou 42 minutos antes do horário da consulta; e logo após as formalidades do
cartão do plano de saúde, iniciou as investidas para antecipar o atendimento, mas
somente após a demorada consulta com a mulher e os filhos do Prefeito, é que o
Dr. Carlos de Alencastro, jovem e bonito, oriundo de uma tradicional família de
médicos dos ricos e dos figurões do Estado, convidou-a a entrar em seu consultório, para iniciar uma inquirição minuciosa. Ao final, disse que, para um melhor diagnóstico, ela
precisaria se submeter a alguns exames, a serem realizados imediatamente em sua
própria clínica, dada a possível gravidade do caso.
Enquanto
esperava a chamada entre um exame e outro, foi se enturmando aqui e ali. Exaltou
suas qualidades, acentuou os defeitos de suas vizinhas, que ninguém ali conhecia,
e até confessou que vivia às turras com condutores de ônibus, de táxi, e até do
tal 99-pop. A senhora que ouvia àquilo tudo, e que também gostava de falar das
vidas alheias, disse que o melhor seria pegar um Uber. Dona Pontualina foi facilmente
convencida, e em seguida cedeu seu celular para a neta da interlocutora baixar
o aplicativo.
Após os
exames, cujos resultados sairiam em poucos dias, pediu a uma das meninas da
recepção que chamasse o Uber – pagamento em dinheiro, pois só confiava em Lourival,
o porteiro da noite do edifício em que morava, para cadastrar seu cartão.
Já o primeiro
motorista do Uber deu sorte, e foi contemplado com a contratação da velha
ranzinza, que iniciou a viagem dizendo que não gosta de internet e que não
entra em carro guiado por quem não lhe agrada: “Se não gosto da cara do sujeito
que vem me buscar, mando embora na mesma hora. Nem quero saber.” Ele sorriu, e
tocou o carro.
Ela continuou:
“Moço, estou atrasada para fazer meu jantar, e quero que o senhor pegue o
caminho que conheço, pela Avenida Beira-Mar.”
Ele tentou contra
argumentar, dizendo que não conseguiria entregá-la com rapidez, pois aquele era
o trajeto mais demorado: “Vamos experimentar o caminho que o aplicativo está
indicando, e nós chegaremos mais rápido a essa hora.” Ela concordou para,
apenas poucos minutos depois, passar a reclamar: “O Senhor está rodando por
lugares que não conheço. Ih! Não estou gostando disso não!”
E não parou
mais de reclamar, testando a paciência do rapaz.
Ao final do trajeto,
deu 2 estrelas porque havia gostado dele no início, e não precisou cancelar a
corrida nem chamar outros motoristas. Ele foi embora e percebeu sua nota baixar
vertiginosamente, mas não reclamou, e pediu a Deus para dar paz àquela velhota.
Em alguns
dias, os resultados dos exames ficaram prontos, e o Dr. Alencastro pediu à
secretária para marcar urgentemente nova
consulta com Dona Pontualina, pois sua desconfiança
fora confirmada: ela possuía um meningioma, um tumor cerebral de tamanho
considerável. Elas ligaram no exato momento em que a paciente, sentindo dores
insuportáveis, pediu ao porteiro para chamar uma ambulância, e desmaiou em seguida,
na recepção do seu prédio.
Õé-õé-õé-õé-õé-õé,
veio rasgando o trânsito a ambulância da SAMU, guiada por Sérgio, jovem
socorrista que acabara de perder a avó, e não queria ver outra velhinha
morrendo. Ele, porém, não contava com o “fator-Pontualina”, que, tendo
recobrado os sentidos, e para o espanto de ninguém, senão dos socorristas,
disse que não havia gostado da cara deles, e requisitou o envio de outra unidade
móvel.
Nem
Cristo descendo à terra a teria convencido, embora não chegasse a ser necessário,
pois tudo se resolveu em muito pouco tempo: Os socorristas foram deslocados
para outra ocorrência, após reportarem a recusa da velhinha doente em ser atendida
pela equipe, e mal a ambulância dobrava na segunda rua, com a sirene ligada e a
todo vapor, Dona Pontualina, sentindo dores intensas, pôs um largo sorriso no
rosto e deu o último suspiro. Para seu infortúnio, porém, ela agora seria derradeira
e inapelavelmente transportada, mesmo que a contragosto, pelo serviço
funerário.
P.S:
A herança, Dona Pontualina já havia destinado integralmente, 3 anos antes, a
Lourival, o porteiro da noite, num testamento deixado aos cuidados do Dr.
Natanael Lucena, advogado e velho amigo da família.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense,
conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.
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