Seu Nabiça, mulato de pele clara, sorriso
franco, óculos de aro grosso, cujo cocuruto fora abandonado pelos cabelos há
tempos, enquanto os fios que persistiam nas laterais embranqueciam como o orvalho da
madrugada, costumava dizer que tinha um dos poucos nomes de homem que terminam
com a letra “a” e não são oriundos da língua indígena, fato ainda mais raro que
os terminados em “i” ou “ir”.
Trabalhava há quase 50 anos na
Monteiro Petiscos & Lanchonete, casa especializada em servir pernil em
porções ou em sanduíches com pão francês de fabricação própria, um sucesso
absoluto, muito pedido com a tradicional cerveja estupidamente gelada.
Negócio de família, já estava na
4ª geração de proprietários, havendo falecido vários deles.
O início do comércio se dera há décadas,
num dos inúmeros quiosques das principais avenidas da Capital, onde o Sr.
Joaquim Monteiro, recém-egresso da terrinha, vendia comida, pinga e produtos variados.
Levando a natural vida espartana do imigrante que deixa seu país com a roupa do
corpo, ele só trouxe a mulher e os filhos para o Brasil quando teve uma folguinha; e
logo depois, com a ajuda de todos, conseguiu comprar duas amplas lojas de
esquina, num ponto movimentado da periferia.
Quando Nabiça foi contratado, quem
estava no comando era o Sr. Nuno Monteiro, filho mais novo do patriarca. O
portuga dizia que enxergou no menino mulatinho alguém com grande potencial e muita vontade de
trabalhar. Além disso, não podia contar com os filhos do casamento com Lucrécia,
demasiadamente novos para pegarem no batente.
A força de vontade do rapaz o
encantou a ponto de amolecer seu coração, mas as ajudas frequentes, de início com
presentes modestos, e que culminou, alguns anos depois, com a entrada da compra
da tão sonhada casa própria, acabaram gerando um buchicho entre os habitués, já
que a fama de pão duro que antecedia a pessoa do portuga ia longe. Diziam que
Nabiça era seu filho bastardo, com a belíssima mulata Cecília, pernas grossas e
bem torneadas, joelhos redondos, seios pequenos e rijos, ancas generosíssimas...
A fofoca já havia gerado muita
briga e chateação, e o “animus necandi” que tomava conta da figura pacata de Nabiça
fez com que os assuntos corressem apenas à boca-miúda, entre os fuxiqueiros.
Os funcionários que passaram pela
lanchonete admiravam o colega, e grande parte dos fregueses, e seus
descendentes, que cresceram sendo servidos pelo seu Nabiça, sempre lhe foram
afeiçoados – havia até quem esperasse o tempo que fosse necessário apenas para ser
atendido por ele, dada a amabilidade com que tratava a todos.
Outros, porém, só faziam o pedido
quando ele se afastava. Chamavam-no de porco, mas apenas “en petit comité”, por
conta de certa peculiaridade que envolvia tal personagem.
É que sempre que ia pegar o papel
para embrulhar o sanduíche de pernil do freguês, ele passava as pontas dos
dedos naquela almofadinha molhada e “higiênica”, que trazemos guardada dentro da
boca, para separar as folhas de papel: a língua. Logicamente, aqueles mesmos dedinhos lambidos seguravam o pão enquanto recheava o
sanduíche seguinte.
Sempre que indagados sobre aquele
patrimônio da empresa, os proprietários da ocasião afirmavam que Nabiça seria
funcionário de seus netos, e que ele era o segredo do sucesso do negócio. Não
era. A antiga forma de preparar o pernil, e também de outros tira-gostos de
sucesso da empresa, só era conhecida pelos membros de família – a “fórmula da
Coca-Cola” dos Monteiro.
O tempo passava e, um dia, Nabiça, que não era disso,
saiu de férias. Várias e várias semanas se passaram e nada dele voltar.
Aos clientes que perguntavam se ele estava
doente, ou se havia falecido, era dada sempre a mesma a resposta: “Está de
férias”; e quando a desculpa parou de colar, foi dito que ele havia pedido a
aposentadoria.
“Na verdade” – disse um dia o Sr.
Nestor, um dos mais antigos (e fofoqueiros) frequentadores do estabelecimento,
enquanto jogava dominó, tomava pinga, e lambia os dedos sujos de limão e da gordura dos pedaços de pernil que pegava com a mão –, “ele realmente se aposentou, mas
ajuizou ação na Vara de Órfãos e Sucessões, pedindo exame de DNA e metade do
atual patrimônio da família”.
Nabiça nada comentou sobre uma relação entre o Sr. Nuno
Monteiro e Lucrécia, sua mãe, mas disse que não foi ao programa do Ratinho para
preservar as pessoas que mais havia amado na vida.
Sobre os herdeiros, que todos os clientes jurariam de pés juntos que o tratavam como alguém da família, disse ele: “Não passam de
fingidos exploradores”.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.
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