quarta-feira, 17 de abril de 2019

O garçom do atendimento personalíssimo



Enquanto vários clientes chegavam à Praça de Alimentação, Eurípedes, se não mirava o olhar no infinito ou fingia ajeitar a meia do pé esquerdo, voltava ao balcão para perguntar algo nonsense à mocinha do caixa. Às vezes apontava clientes de longe aos colegas, e quando estavam próximos, chegava mesmo a se esquivar para não esbarrar-lhes o corpo e evitar fadiga. Para ser atendido por ele, era necessária muita sorte.
Dali a 4 meses estaria aposentado – 129 dias, para ser mais exato –, e negava o esforço para encher os bolsos do patrão. Não precisava mais daquilo, pensava. Como recebia um fixo, podia dispensar a gorjeta, ainda mais que a mulher estava bem colocada como merendeira numa escola estadual, e aos fins de semana fazia salgados, doces e bolos para festas, pelo Dhelmyra Mini-Buffet.
Há 3 anos no Galeto Arisco, sempre desviou chopes e petiscos para conhecidos que se aventuravam pelos lados do Centro Comercial em que dava expediente. Mas, em determinado momento, deu zebra, pois o patrão empregou um paraíba neurótico para fiscalizar e anotar os produtos que saíam da cozinha. No primeiro mês, não estava esperto e tomou uns 500 contos de prejuízo. Um absurdo! Eurípedes berrou. Berrou muito... E foi por isso que, no dia em que a galera da sinuca chegou em peso, pedindo chopes a “2 por 1” de forma desinibida, ele quase teve uma convulsão. Disse que havia sujado, e pediu para falarem baixo, pois poderia pegar uma justa causa já próximo à aposentadoria.
Em especial no ambiente de trabalho, era um resmungão mal-agradecido. Aprendera com um primo, dirigente de sindicato, que patrão é tudo ladrão e explorador, e que é dever do empregado “entrar na Justiça” toda vez que sair de uma empresa. O conselho, ele sempre seguira à risca.
Era contra dividir a gorjeta com a cambada da cozinha que votava em políticos “nazistas dos infernos”, saudosistas da ditadura fascista, que iriam entregar o país aos Estados Unidos e trazer de volta a pobreza extinta por Lula. Sentia mal-estar ao pensar que não faria o primeiro voo de avião enquanto um vendido aos ianques estivesse no poder. E quando indagado o porquê de ainda não ter feito, respondia que demorava muito recuperar a economia para todos.
O patrão, que ele tanto odiava, também votava na direita; e sempre o recriminava pelos processos de reparação por danos morais que Eurípedes moveu contra dois (ex) antigos clientes do restaurante, acusando-os de racismo. Não o mandava embora por sentir um grande carinho pelo funcionário, que não sabia explicar.
Mas, na vida, nem tudo é flores, e esse cônscio senhor de seus direitos, não podia ver uma nota de 1 galo (ou uma onça) bobeando no caixa, que dava logo um perdido; sem contar as mercadorias que frequentemente desviava, numa operação casada com um vizinho que trabalhava perto do restaurante, e vinha de moto para pegar o produto do furto, devidamente acondicionado, e deixado num saco de lixo próximo à lixeira, para divisão posterior.
Certa vez, questionado por sua mulher, sobre não sentir vergonha de fazer isso, e por não se colocar no lugar dela, que era uma microempresária, respondeu o que aprendera com o primo: “estou agindo segundo a moral revolucionária, contra a moral burguesa. Se você é patroa, ponha as barbas de molho e não chore a expropriação”.
Infelizmente, esse é o retrato da inveja e do desprezo pelo empreendedor, que estão arraigados no sentimento do brasileiro.
Apesar do mau humor, os colegas de trabalho, muitas vezes vítimas de desconfiança injusta pelo sumiço de peças de queijo ou de salaminho que ele dava cabo, juntavam grana para a festa de despedida do Euri, como era carinhosamente chamado.
Um dia, porém, a filha do patrão, que depois de sair da faculdade se juntava à mãe para pegar no pesado, na cozinha do restaurante do pai, viu Eurípedes enfiar várias porções de franguinho, recém-preparadas pelos ajudantes de cozinha, num saco de lixo, e o seguiu até vê-lo colocar ao lado da lixeira, acenando para um motoqueiro que se aproximava. Com o coração na mão, por causa da aposentadoria iminente, o patrão se viu forçado a demiti-lo por justa causa.
A situação foi devidamente revertida na Justiça Laboral. O juiz reconheceu que o coitado teria até cometido falhas, mas apontou que o patrão não poderia despedi-lo naquele período da pré-aposentadoria, nem tê-lo constrangido no ambiente de trabalho.
Um dos fundamentos da decisão, uma pérola jurídica, foi a analogia à “Teoria da Lógica do Assalto”, da pensadora Márcia Tiburi. Eurípedes foi dispensado pelo patrão, que continuou pagando seu salário, mas para não ficar mal com a patroa, foi matar o tempo trabalhando em seu Mini-Buffet. A esposa precisou regularizar a empresa para contratá-lo – exigência dele –, porque até ali atuava na informalidade. Logicamente, isso a levou à falência pouco tempo depois, mas não foi sequer objeto de discussão.
O proprietário fechou o Galeto Arisco, e foi viver com a família nos Estados Unidos, aproveitando seu passaporte italiano.
Os antigos colegas de trabalho engrossaram a lista dos desempregados, e um deles chegou a ouvir de Euri que “isso é efeito do sistema porco do capitalismo”.

E ele ainda considerava que a justiça, enfim, havia sido feita em seu caso (!), pois recebeu uma boa verba indenizatória, fixada por Sua Excelência na sentença, a título do "constrangimento" sofrido. A decisão, aliás, sequer foi objeto de recurso, por falta de confiança do requerido nas instituições que, segundo juram, continuam funcionando.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.


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