Enquanto
vários clientes chegavam à Praça de Alimentação, Eurípedes, se não mirava o
olhar no infinito ou fingia ajeitar a meia do pé esquerdo, voltava ao balcão
para perguntar algo nonsense à mocinha do caixa. Às vezes apontava clientes de longe aos colegas, e quando
estavam próximos, chegava mesmo a se esquivar para não esbarrar-lhes o corpo e
evitar fadiga. Para ser atendido por ele, era necessária muita sorte.
Dali a 4
meses estaria aposentado – 129 dias, para ser mais exato –, e negava o esforço
para encher os bolsos do patrão. Não precisava mais daquilo, pensava. Como recebia
um fixo, podia dispensar a gorjeta, ainda mais que a mulher estava bem colocada
como merendeira numa escola estadual, e aos fins de semana fazia salgados, doces
e bolos para festas, pelo Dhelmyra Mini-Buffet.
Há 3 anos
no Galeto Arisco, sempre desviou chopes e petiscos para conhecidos que se
aventuravam pelos lados do Centro Comercial em que dava expediente. Mas, em
determinado momento, deu zebra, pois o patrão empregou um paraíba neurótico
para fiscalizar e anotar os produtos que saíam da cozinha. No primeiro mês, não
estava esperto e tomou uns 500 contos de prejuízo. Um absurdo! Eurípedes
berrou. Berrou muito... E foi por isso que, no dia em que a galera da sinuca
chegou em peso, pedindo chopes a “2 por 1” de forma desinibida, ele quase teve
uma convulsão. Disse que havia sujado, e pediu para falarem baixo, pois poderia
pegar uma justa causa já próximo à aposentadoria.
Em
especial no ambiente de trabalho, era um resmungão mal-agradecido. Aprendera
com um primo, dirigente de sindicato, que patrão é tudo ladrão e explorador, e
que é dever do empregado “entrar na Justiça” toda vez que sair de uma empresa.
O conselho, ele sempre seguira à risca.
Era contra
dividir a gorjeta com a cambada da cozinha que votava em políticos “nazistas
dos infernos”, saudosistas da ditadura fascista, que iriam entregar o país aos
Estados Unidos e trazer de volta a pobreza extinta por Lula. Sentia mal-estar
ao pensar que não faria o primeiro voo de avião enquanto um vendido aos ianques
estivesse no poder. E quando indagado o porquê de ainda não ter feito, respondia
que demorava muito recuperar a economia para todos.
O patrão,
que ele tanto odiava, também votava na direita; e sempre o recriminava pelos
processos de reparação por danos morais que Eurípedes moveu contra dois (ex)
antigos clientes do restaurante, acusando-os de racismo. Não o mandava embora
por sentir um grande carinho pelo funcionário, que não sabia explicar.
Mas, na
vida, nem tudo é flores, e esse cônscio senhor de seus direitos, não podia ver
uma nota de 1 galo (ou uma onça) bobeando no caixa, que dava logo um perdido;
sem contar as mercadorias que frequentemente desviava, numa operação casada com
um vizinho que trabalhava perto do restaurante, e vinha de moto para pegar o
produto do furto, devidamente acondicionado, e deixado num saco de lixo próximo
à lixeira, para divisão posterior.
Certa vez,
questionado por sua mulher, sobre não sentir vergonha de fazer isso, e por não
se colocar no lugar dela, que era uma microempresária, respondeu o que
aprendera com o primo: “estou agindo segundo a moral revolucionária, contra a
moral burguesa. Se você é patroa, ponha as barbas de molho e não chore a
expropriação”.
Infelizmente,
esse é o retrato da inveja e do desprezo pelo empreendedor, que estão
arraigados no sentimento do brasileiro.
Apesar do
mau humor, os colegas de trabalho, muitas vezes vítimas de desconfiança injusta
pelo sumiço de peças de queijo ou de salaminho que ele dava cabo, juntavam
grana para a festa de despedida do Euri, como era carinhosamente chamado.
Um dia,
porém, a filha do patrão, que depois de sair da faculdade se juntava à mãe para
pegar no pesado, na cozinha do restaurante do pai, viu Eurípedes enfiar várias
porções de franguinho, recém-preparadas pelos ajudantes de cozinha, num saco de
lixo, e o seguiu até vê-lo colocar ao lado da lixeira, acenando para um motoqueiro
que se aproximava. Com o coração na mão, por causa da aposentadoria iminente, o
patrão se viu forçado a demiti-lo por justa causa.
A situação
foi devidamente revertida na Justiça Laboral. O juiz reconheceu que o coitado
teria até cometido falhas, mas apontou que o patrão não poderia despedi-lo
naquele período da pré-aposentadoria, nem tê-lo constrangido no ambiente de
trabalho.
Um dos
fundamentos da decisão, uma pérola jurídica, foi a analogia à “Teoria da Lógica
do Assalto”, da pensadora Márcia Tiburi. Eurípedes foi dispensado pelo patrão,
que continuou pagando seu salário, mas para não ficar mal com a patroa, foi matar
o tempo trabalhando em seu Mini-Buffet. A esposa precisou regularizar a empresa
para contratá-lo – exigência dele –, porque até ali atuava na
informalidade. Logicamente, isso a levou à falência pouco tempo depois, mas não
foi sequer objeto de discussão.
O
proprietário fechou o Galeto Arisco, e foi viver com a família nos Estados
Unidos, aproveitando seu passaporte italiano.
Os antigos
colegas de trabalho engrossaram a lista dos desempregados, e um deles chegou a
ouvir de Euri que “isso é efeito do sistema porco do capitalismo”.
E ele
ainda considerava que a justiça, enfim, havia sido feita em seu caso (!), pois
recebeu uma boa verba indenizatória, fixada por Sua Excelência na sentença, a
título do "constrangimento" sofrido. A decisão, aliás, sequer
foi objeto de recurso, por falta de confiança do requerido nas instituições
que, segundo juram, continuam funcionando.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.
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