“Lucrécia
morreu!”, repetia Ermengarda a cada segundo, lamentando a partida da última das
três gatas que lhe faziam companhia há tanto tempo que, para melhor situar o
período, tinha que relembrar o ano de partida do seu querido Astolfo (o
devotado marido) para a morada do Senhor (se assim Ele quis).
“Primeiro
morreu Tirana. Depois, Bombinha. Agora, Lucrécia”, disse, para depois emendar,
em prantos: “Lucrécia morreu! Não quero mais saber de felinos. Um dia estão
aqui, olhando pra gente com cara de nojo e só se aproximando na hora da comida
e do cafuné, e no outro estão ali, estirados, inertes, mortinhos da Silva”. Ela
não afirmou que não teria mais animais de estimação, falou de felinos. Logo,
era de se esperar que em pouco tempo adotaria cãezinhos, canários ou até uma tartaruga,
para, nesse caso, não mais experimentar o dissabor de presenciar a morte do
pet.
Esse caso tinha
ocorrido há cerca de cinco anos, e Ermengarda há havia superado a dor. No
período, havia rejeitado as várias espécies de bichos com que as pessoas
chegadas tentaram presenteá-la, com vistas à superação do luto – ela preferiu
trocar os cuidados com os animais pela participação em várias pastorais da sua
Igreja, Católica, cujos compromissos a ocupavam nos sete dias da semana. Queria
cuidar da alma, da sua e das alheias, e promover a caridade. Mas se metia em
tudo; e chamava todos às falas. Sempre que possível, ou seja, todo o tempo,
reclamava de um e de outro, e encerrava dizendo: “É para o bem da Comunidade.
Se eu não for assim, quem há de ser?”
Era a
personificação da Teoria Crítica dos ideólogos da Escola de Frankfurt, tão
conhecida no meio acadêmico e nos círculos do marxismo cultural, ao qual dedicara
seus estudos e sua militância fervorosamente até concluir com honras o curso de
Sociologia. E não parou por aí, pois continuou a vida de intelectual orgânica no
exercício de um cargo comissionado numa Secretaria Municipal (que ocupou por
décadas), até a data em que deu entrada na aposentadoria, aposentadoria essa
que pouco pôde curtir ao lado de Astolfo, o marido vinte anos mais velho, que
tinha enviuvado pouco tempo antes de entabularem o namoro que acabou num casamento
épico, celebrado por um padre amigo, da Teologia da Libertação. Aquela paixão
avassaladora que se concretizou no Altar de Cristo fora fruto do empenho de
Ermengarda, que, danadinha e meio riponga, conquistou Astolfo com a sua versão
do ipicilone – “muito superior ao de Tieta do Agreste”, diziam alguns colegas
de faculdade.
Voltando à
atualidade, sua vida na Igreja era chamar a atenção alheia, destruindo em
palavras secas as ideias e as ações dos fiéis que porventura se entregassem ao
serviço: “Coisinha, não coloque santinhos nem terços na Capela, eu já conversei
com o Padre e ele me autorizou a evitar isso”; “Esse menino?! Você lê (ou canta)
muito mal, devia dar espaço a outros que tenham o dom”; “Fulano, vê se capricha
na canjica esse ano, porque a que você trouxe na festa do Padroeiro do ano
passado... Deus nos livre e guarde!”
Assim seguia
a árdua caminhada de Ermengarda rumo à morada celeste. Sofriam mais os membros
dos grupos que ela coordenava, mas não negava os “toques fraternos” aos demais
membros da Paróquia. Não respeitava autoridade ou independência de uma equipe sequer
– mexia na escala do dia para acomodar algum chegado que quisesse servir de
última hora numa Missa Solene sem avisar ao coordenador ou à pessoa substituída;
retirava flores do altar se não gostasse da espécie; não admitia a realização
de nada que não tivesse sido informado antecipadamente; admoestava os Ministros
da Eucaristia e da Palavra, músicos, coroinhas e até os cerimoniários, que deviam
satisfações apenas ao Padre Jean-Baptiste Yozemah, um gordinho bochechudo e
bonachão que chegava à melhor idade e era muito querido na Diocese. O Padre
vivia fugindo dela, pois suas orelhas ferviam todas as vezes que ela o
imprensava para reclamar de alguma equipe ou membro da comunidade, em especial
quando “dava o serviço”, à sua maneira, de cada um dos inscritos para a
confissão semanal, cujos horários eram marcados na Secretaria da Paróquia; e
não se retirava enquanto não falasse tudo de todos. O padre, em algumas
circunstâncias, argumentava que as coisas funcionavam razoavelmente bem na
Matriz e nas demais comunidades da Paróquia, mas ela o lembrava que era fruto
da entrega dela, Ermengarda, ao serviço da Igreja. Ele bem que acabava
concordando em seus pensamentos, achando que a instabilidade causada era mais
facilmente contornável, um prejuízo menor que ter que nomear várias pessoas e
administrá-las na operação dos serviços paroquianos. Em algumas ocasiões,
quando ela extrapolava no palavrório, ao final do rosário de observações e de
maledicências tecidas sobre a vida alheia, o padre prescrevia uma penitência
quilométrica. Ao receber a incumbência de executar os inúmeros Pais-Nossos e
Aves-Marias prescritos, ela murmurava, aturdida e de certa forma passada, que
não estava confessando seus pecados. Mas ela era obediente e não ousava
questionar o sacerdote que afiançava abertamente sua administração autoritária.
Nessas ocasiões, ele contra-murmurava, dizendo que era impossível que ela
tivesse cometido, no curso dos dias, atos e pensamentos mais pecaminosos que
aqueles relatados sobre a vida alheia.
Chegou o dia,
porém, em que algumas senhoras piedosas do Grupo de Oração, que intercediam
pela salvação de Ermengarda em suas orações pessoais – ao alvedrio dela,
logicamente –, e que presenciaram seu sofrimento no velório de Lucrécia, resolveram
comprar um cãozinho para presentear a governanta da Casa do Senhor. Pela
primeira vez impuseram à autoritária senhora a tarefa de aceitar o mimo – um
pug que ela acabou recebendo com sentimentos contraditórios: felicidade e angústia.
(Tinha tanto que fazer pela Igreja, como conciliar com aquela distração tão
fofinha?)
Ultrapassada
a sensação inicial, logo começaram os afagos e os gritinhos de felicidade
diante das primeiras gracinhas do, agora batizado, Pitoco. E nos dias que seguiram,
a postura da varoa começou a mudar e já não se fazia tão presente nos compromissos
paroquianos. Após autoconceder-se uma espécie de licença-maternidade, dedicava o
tempo livre à compra de roupinhas, acessórios e comidas de cães, e aproveitava para
levar Pitoco ao veterinário para consultas, exames e tomar banhos e vacinas. A
comunidade seguia aliviada e os membros das pastorais agora podiam servir sem
as interferências que os tiravam da Graça do Pai.
Esse evento
ocorreu pouco tempo antes da fraudemia e dos lockdowns supervenientes à
propaganda histérica que envolveu a peste viral chinesa. E logo no início Ermengarda
tentou exercer o comando através das redes sociais, mas isso lhe rendeu
bloqueios e unfollows por parte dos fiéis mais rebeldes. E esse comportamento
só não gerou um cataclismo porque o fechamento da Igreja e o encerramento de reuniões
físicas contribuíram, por outro lado, para uma maior aproximação entre mãe (de
pet) e filho (o pet). O presente talvez tenha salvado sua vida, ao menos no
aspecto mental. (Será? Eu não apostaria muitas fichas nisso.)
Zelosa com a
saúde de Pitoco, ela dedicava grande parte dos seus dias a navegar pela
internet vasculhando sobre doenças, remédios e vacinas, e descobriu que as
vacinas dos animais tinham em sua composição uma substância que combatia o coronavírus.
(“Até os cães tomavam vacina contra o coronavírus”, pensou. “Pitoco está a
salvo”.)
Essa
descoberta, por outro lado, inspirou-a a mirar os canhões contra o Presidente à
época, Jair Bolsonaro, a quem chamou de fascista, obscurantista, terraplanista,
negacionista que atacava a ciência e desacreditava as vacinas que milagrosamente
haviam sido criadas em tempo recorde por anjos cientistas que Deus enviara à
Terra. Ela não via qualquer problema em aplicar vacinas antes do ciclo de
estudos completos para apurar sua eficácia, pois aquela era uma situação emergencial.
Com o tempo
houve o “relaxamento” do confinamento com algumas restrições, mas houve. Como o
canto do cisne, Ermengarda chegava à Missa com duas horas de antecedência para
não deixar de assisti-la em razão do número máximo da assembleia ser atingido.
Tomava um verdadeiro banho de álcool em gel e fazia questão de operar o
termômetro para medir a temperatura dos fiéis que iam chegando à assistência.
Ordenava a todos que se sentassem afastados e cumprissem as regras de
distanciamento, ainda que fossem da mesma família.
Quando soube
do tratamento precoce, por um sobrinho distante que mandou um zap, ficou
extremamente animada, mas ao descobrir que Bolsonaro havia indicado um dos
remédios enterrou o assunto, pois a TV, os jornais e as agências de checagem diziam
que era mentira e entrevistavam especialistas que condenavam a indicação e o
uso desses remédios. Em seguida, ainda mais influenciada pela grande mídia, começou
a acusar de assassino quem ousasse falar do tratamento precoce. “Vocês não ouviram
o Átila Armarinho? Ele tem um canal no Youtube e é doutor intitulado... Ele não
divulga feiquinius como o gabinete do ódio e os bolsominions”.
Quando os primeiros
lotes de vacina chegaram, tentou mover céus e terras para tomar sua dose, mas
não conseguiu. (Outros histéricos e desesperados tinham contatos melhores,
parece.) Ela não mudou sua postura mesmo depois de informada que uma vacina não
servia para idosos, outra que possuía apenas 50% de eficácia, ou aquela que estava
causando trombose e matando velhinhos na Europa. “É tudo mentira”, gritava,
“não passou nada disso no Jornal da Globo”. Sequer a tentativa das
farmacêuticas de fugirem da responsabilidade dos danos causados por possíveis efeitos
colaterais provocados pelas vacinas foi suficiente para convencê-la: “É a
Anvisa e aquele monstro do Ministro da Saúde que querem ver o povo morrendo. Quem
manda é o genocida”.
O desespero
tomou conta de todo o seu ser e, decidida, lá se foi a buscar uma forma de
tomar a vacina Vanguard Plus, de uso exclusivo de pets. Não faria mal, pois
vários remédios de animais foram usados por humanos no curso da história, pensou.
Então, subornou o atendente da clínica Petcionário, que depois de fazer um
charminho acabou aplicando duas ampolas, “porque em humanos a dose precisa ser
reforçada por causa do peso” (ele disse). “Daqui a dois meses a senhora volta
para tomar outras duas, mas ninguém pode saber, viu?”
Cumpriu o
prometido: não contou a ninguém que agora estava imunizada, deixando de
submeter ao escrutínio de amigos e de conhecidos, o que, em certa medida, negava-lhes
a salvação. Afinal, se a vacina-pet iria funcionar para ela, por que não funcionaria
para os demais também, ora, pois? Ela também não contou a uns conhecidos da Secretaria
de Saúde Estadual, inclusive para não comprometer o anjo da clínica que havia
vendido e aplicado as vacinas.
Com o passar
do tempo, sofreu algumas mudanças no corpo. Sentia formigamentos, palpitações,
lacrimejamento e sudorese intermitente; e, ao mesmo tempo em que melhoraram o
olfato e a audição, sentiu uma queda da capacidade de visão e dor nas juntas. As
idas à Igreja diminuíram novamente, e a participação nas redes sociais foi
rareando até chegar o dia em que Ermengarda brindou as pessoas com a ausência
definitiva.
O mesmo grupo
de senhoras pias, então, passou a visitá-la com frequência, e as irmãs em
Cristo perceberam que, com o curso do tempo, certa decrepitude tomava,
paulatinamente, conta do seu corpo, transformando aquela outrora ativa e altiva
mulher saudável numa idosa sem energia e entusiasmo.
Os dias seguiram
nessa toada até chegar aquele em que, ao tocarem a campainha, as senhoras
ouviram, vindo de dentro do apartamento, o latido de Pitoco e, logo em seguida,
um au-au no timbre da voz de Ermengarda.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista
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