Há duas noites fui
visitado em sonho por uma figura bastante frequente na minha infância, um amigo
querido de quem eu havia me separado, infelizmente, de forma trágica.
Acordei num sobressalto —
era um pesadelo —, mas as coisas foram normalizando e, como não conseguia
voltar a dormir de imediato, o banzo me atingiu em cheio.
Lembrei-me de uma das
poucas fotos antigas que ainda possuía, já que a grande maioria delas — e não
eram muitas — haviam sido consumidas num incêndio dramático ocorrido num cômodo
da casa dos meus pais, quando eu ainda era jovem.
Éramos amigos desde
sempre, e a foto era uma pose do time de futebol que formamos para realizar um
sonho de infância.
Entrávamos na
adolescência. O cenário era a quadra onde, minutos depois, disputaríamos nossa
primeira final. Perderíamos de dois a um para um time mais organizado, mais
entrosado, e com mais investimentos, se considerarmos a realidade daquele
bairro, cujos moradores, em grande maioria, eram operários.
Ele estava lá. Aliás, nós
estávamos lá. Felizes, sorrindo, agachados e abraçados, radiantes com o que havíamos
conquistado até ali.
Poucos anos depois, Cadu
e eu acabamos nos separando por contingências da vida. Mudamos de colégio, ele
foi morar com a avó em outro bairro, porque era mais próximo ao trabalho que
arranjou. Mesmo assim, continuávamos fazendo uma grande festa nas poucas vezes
em que nos encontrávamos.
Ele era moreno claro,
olhos verdes, usava corte baixo no cabelo castanho e tinha braços compridos, de
macaco. Gostava de usar boné e roupas largas, bastante coloridas, e num desses
encontros me surpreendeu quando vi que aquele bigodinho ralo que nasceu bem
cedo já estava parecendo um guidão de bicicleta antiga.
Na última vez em que nos
vimos, marcamos encontro numa boate, por telefone de disco. Contávamos com mais
de dezoito e fomos tomar cerveja e uísque falsificado. A certa altura, ele me
chamou para ir ao banheiro e puxou um sacolé com cocaína. Eu ainda estava espantado
quando ele arrumou duas lacraias com rara destreza, naqueles pedaços de mármore
colocados estrategicamente nos cantos dos banheiros, e disse que uma era minha.
Eu disse não, ele ficou puto no resto da noite e acabamos perdendo contato para
sempre.
Infelizmente, poucos
meses depois recebi a notícia de que ele, por não ter dinheiro para bancar o
vício, e já endividado com os traficantes, começou a fazer serviços de motorista
para eles. O resultado foram os quinze tiros tomados numa emboscada feita por
uma quadrilha rival. Seu corpo ficou todo perfurado, e ele ainda estampou a
capa do jornal do dia seguinte, ficando conhecido como um dos cinco traficantes
fuzilados numa guerra de quadrilhas em Niterói.
No sonho, ele vinha
correndo pela rua e eu estava na porta de casa. Disse para eu ir para o portão
de trás, queria falar comigo, mas não poderia ser ali porque dois homens
armados o perseguiam.
Entrei em casa e voei
para os fundos. Chegando lá, ele me entregou uma pistola sem munição e um
pacote com drogas, tirado de dentro da bermuda. Pediu que eu guardasse e que
voltaria mais tarde para pegar. Afirmou que aquilo jamais se repetiria.
Enquanto eu estava
atônito, sem acreditar no que se passava, os homens chegaram. Mandaram-me
entrar, fechar o portão e não voltar.
Fuzilaram meu amigo ali
mesmo, impiedosamente. Foram disparados quinze tiros.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e,
de certa forma, é um saudosista
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