terça-feira, 28 de setembro de 2021

Meu amigo Cadu

 

 

Há duas noites fui visitado em sonho por uma figura bastante frequente na minha infância, um amigo querido de quem eu havia me separado, infelizmente, de forma trágica.

Acordei num sobressalto — era um pesadelo —, mas as coisas foram normalizando e, como não conseguia voltar a dormir de imediato, o banzo me atingiu em cheio.

Lembrei-me de uma das poucas fotos antigas que ainda possuía, já que a grande maioria delas — e não eram muitas — haviam sido consumidas num incêndio dramático ocorrido num cômodo da casa dos meus pais, quando eu ainda era jovem.

Éramos amigos desde sempre, e a foto era uma pose do time de futebol que formamos para realizar um sonho de infância.

Entrávamos na adolescência. O cenário era a quadra onde, minutos depois, disputaríamos nossa primeira final. Perderíamos de dois a um para um time mais organizado, mais entrosado, e com mais investimentos, se considerarmos a realidade daquele bairro, cujos moradores, em grande maioria, eram operários.

Ele estava lá. Aliás, nós estávamos lá. Felizes, sorrindo, agachados e abraçados, radiantes com o que havíamos conquistado até ali.

Poucos anos depois, Cadu e eu acabamos nos separando por contingências da vida. Mudamos de colégio, ele foi morar com a avó em outro bairro, porque era mais próximo ao trabalho que arranjou. Mesmo assim, continuávamos fazendo uma grande festa nas poucas vezes em que nos encontrávamos.

Ele era moreno claro, olhos verdes, usava corte baixo no cabelo castanho e tinha braços compridos, de macaco. Gostava de usar boné e roupas largas, bastante coloridas, e num desses encontros me surpreendeu quando vi que aquele bigodinho ralo que nasceu bem cedo já estava parecendo um guidão de bicicleta antiga.

Na última vez em que nos vimos, marcamos encontro numa boate, por telefone de disco. Contávamos com mais de dezoito e fomos tomar cerveja e uísque falsificado. A certa altura, ele me chamou para ir ao banheiro e puxou um sacolé com cocaína. Eu ainda estava espantado quando ele arrumou duas lacraias com rara destreza, naqueles pedaços de mármore colocados estrategicamente nos cantos dos banheiros, e disse que uma era minha. Eu disse não, ele ficou puto no resto da noite e acabamos perdendo contato para sempre.

Infelizmente, poucos meses depois recebi a notícia de que ele, por não ter dinheiro para bancar o vício, e já endividado com os traficantes, começou a fazer serviços de motorista para eles. O resultado foram os quinze tiros tomados numa emboscada feita por uma quadrilha rival. Seu corpo ficou todo perfurado, e ele ainda estampou a capa do jornal do dia seguinte, ficando conhecido como um dos cinco traficantes fuzilados numa guerra de quadrilhas em Niterói.

No sonho, ele vinha correndo pela rua e eu estava na porta de casa. Disse para eu ir para o portão de trás, queria falar comigo, mas não poderia ser ali porque dois homens armados o perseguiam.

Entrei em casa e voei para os fundos. Chegando lá, ele me entregou uma pistola sem munição e um pacote com drogas, tirado de dentro da bermuda. Pediu que eu guardasse e que voltaria mais tarde para pegar. Afirmou que aquilo jamais se repetiria.

Enquanto eu estava atônito, sem acreditar no que se passava, os homens chegaram. Mandaram-me entrar, fechar o portão e não voltar.

Fuzilaram meu amigo ali mesmo, impiedosamente. Foram disparados quinze tiros.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

Nenhum comentário:

Postar um comentário