quinta-feira, 16 de julho de 2015

Saldanha, o incorrigível



Bartolomeu Saldanha era o dono da verdade... 
 
Oftalmologista bem sucedido, nas conversas de botequim, além de transitar bem na já tradicional “Filosofia”, discutia desde Pedagogia até Física Quântica. Aliás, discutia, não. Dava aulas, pois ninguém era páreo para ele.


Frequentava o Xágora, boteco de classe média onde ensinava aos empresários a arte de comerciar, interpretação de leis a advogados e a preparação de guisados ou de uma bela pasta aos gourmets e culinaristas.


Desancava a todos, falando as verdades que precisavam ouvir; e destacava o primor e o rigor com que educava seus filhos, aproveitando para dar pitacos em como os outros deveriam educar os seus.


Se alguém tecia um elogio à esposa, lá vinha ele com ironia, dizendo: - "Nossa, ela é bastante prendada, não é mesmo?"


Se outro fizesse um comentário sobre um feito de seu filho, ele de pronto afirmava: - "Esse seu menino é um gênio!"


E piscava não disfarçadamente para outro membro da mesa.


Todas as vezes que alguém comentava alguma proeza que para ele soasse como vantagem, ou se percebesse que era algo importante para seu interlocutor, ele desqualificava para logo em seguida contar um feito seu ou de um de seus parentes, de maior magnitude.


A dinâmica de alguns botecos é assim: alguns habitués infelizes e metidos a besta se juntam a outros que considera de “menor estirpe”. O intuito é superar suas frustrações diminuindo os outros, fazer autopromoção. É uma das misérias humanas, e o mais engraçado é que ninguém se afasta do grupo. Parece que todos estão presos uns aos outros por um visgo, e não procurando nada melhor para fazerem, no dia seguinte chegam do trabalho e voltam novamente, escutando de forma bovina gente como Saldanha, até o dia em que é o “Saldanha da vez” e fala lá seus impropérios para os menos afortunados.


E no Xágora a rotina seguia...


Um dia, Saldanha não apareceu. Houve alguns comentários, alguém chegou a perguntar onde teria ido o assíduo “Inquisidor”. Mas ninguém sabia.
No dia seguinte também “faltou”. Poucos tinham o número do seu celular. Alguém arriscou. Caiu na caixa postal.
Esse amigo que ligou, de tão incomodado que estava, virou para o lado e disparou:


- "Viu o jogo do Flamengo ontem?"


A vida seguia...


Já após a segunda semana de sumiço, pouco se lembrava de Saldanha; e após o primeiro mês já não se falava mais nele.

Outras pessoas haviam tomado seu espaço e se incorporado ao fixo do grupo e do estabelecimento.
O tempo não para, e ninguém é insubstituível. Assim, novas histórias, novas discussões intermináveis e novas idiossincrasias contribuíram para seu definitivo esquecimento.


Havia um bom tempo do sumiço de Saldanha quando, num belo dia, sentou-se a uma das mesas do bar um rapaz simpático, de fisionomia que lembrava alguém “de longe”.


Fez um pedido ao garçom e perguntou se ele trabalhava ali havia muito tempo. O solícito funcionário, abrindo a gelada, disparou:


- "Estou aqui há quase vinte anos, senhor".


- "Ah, tá! Então você deve ter conhecido meu pai, o Bartolomeu Saldanha".


- "Sim, claro", respondeu, disfarçando o desprezo por aquele pão-duro que reclamava de todas as contas, e não deixava de gorjeta nem o gelo para colocar no uísque.


- "Ele mudou daqui né? A gente ficou sabendo", emendou o garçom.


- "Não. Meu pai faleceu há quase sete meses. Morte súbita. Estranhamos que ninguém daqui tenha ido ao seu enterro. Nem os amigos de infância apareceram, apesar de avisados. É a vida, não? Ajudou a tanta gente e no fim ficou praticamente sozinho..."


- "É verdade, as pessoas são muito ingratas nesse mundo de hoje", observou finalmente o garçom, que lá se foi, com um sentimento profundo de culpa e pesar, informar aos habitués e “grandes amigos”, a morte do “saudoso” Saldanha.





Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, contista e cronista, além de saudosista

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