- “Is mai ou évis...” – cantava sempre que vinha
andando pelo meio da Rua Dr. March, subindo em direção ao Rodo, atrapalhando os
poucos carros que transitavam na época em Tenente Jardim.
A criançada do bairro adorava mexer com loucos,
cachaceiros e mendigos, e aquele era um dos mais populares. Mulato forte,
Tarzan de Papelão caminhava meio bêbado, meio louco, chamando a atenção com seu
inglês singular.
Todos sabiam de longe quando se aproximava, porque,
fazendo jus ao apelido, lá vinha ele apresentando sua melhor performance – o
grito do Rei das Selvas:
- Ôôôôô ô ô ô ôôôô ô ô ô ôôôô.
Mas não parava por aí, pois possuía outras, digamos, habilidades. Vez por outra andava como Django Kid, com as mãos na cintura,
coçando seus revólveres imaginários na cartucheira, como se adentrasse uma
cidade infestada de bandidos, pronto para um duelo repentino.
Sempre que vinha caminhando, cabecinhas de
crianças olhavam por cima de muros, meias paredes ou por trás das janelas, meio que se escondendo. Ele, grande pistoleiro que era, e percebendo o perigo, imediatamente sacava seus revólveres, e gritava em direção a quem o emboscava:
- Hey, hombre!
E com movimentos ligeiros atirava, enquanto
houvesse balas no tambor, repetindo:
- Ptchiu! Ptchiu! – Eram tiros certeiros, na
direção de seus antagonistas, e ele próprio fazia a maravilhosa sonoplastia.
Ao que parece, em algum momento de sua vida fora um
aficionado em cinema, onde assistia aos filmes cujos personagens interpretava
alegremente, e dividia a lembrança de forma solidária com a criançada. Naquela
época, uma TV em casa era luxo, o que tornava difícil assistir aos famosos bangue-bangues. Quanto ao pobre Tarzan de Papelão, faltava-lhe até uma casa onde morar.
De certa forma, um mistério pairava sobre seu
passado. O pai de Careca o havia conhecido quando moço, e
afirmava que era cheio de vida, inteligente e trabalhador. Oferecia seus
serviços a todos, como limpar e roçar quintais, lavar carros, carregar entulho,
fazer compras etc. Seu Olavo pensava que Luís (esse era o nome de Tarzan de
Papelão) conseguiria se destacar na vida por ser muito esforçado e bem
articulado. Naquele tempo, quem era muito trabalhador era recompensado na vida.
Mas ele sumiu, e era penoso vê-lo naquela situação. A vida fora
ingrata para ele. A loucura parece ter vindo cedo, sem avisar, junto com a tal
da cachaça. Andava sempre junto à esposa, com quem tivera 6 filhos em escadinha.
Quando próximos ao lugar em que se recolhiam, ele, a esposa e a prole entravavam
num terreno baldio que dava acesso a um morro e sumiam por ali. Sua casa ficava ao
relento, ou numa barraca ou a sombra de uma rocha, talvez. Ninguém sabia ao certo.
Ele alegrava algumas tardes da criançada, que
achava engraçado interagir com um mendigo performático que cantava em “inglês”,
dava tiros imaginários e sorria mesmo sem ter muito por que sorrir.
E lá vinha a garotada, de longe:
- Tarzan de Papelão! Tarzan de Papelão!
Ninguém chegava muito perto dele porque os adultos
alertavam que um louco não poderia ser responsabilizado por seus atos, agia por
instinto, sem fazer sequência. Só que, apesar de temido, nunca fora agressivo.
Sempre sorria para as senhoras. E mesmo participando de intensos
tiroteios, ao final não deixava de acenar para elas, com seu chapéu imaginário. Parecia estrelar um dos
episódios de Trinity, com Terence Hill e Bud Spencer.
- Hey, muchacho! – Esse era outro bordão do
pistoleiro.
A Igreja ajudava, o povo ajudava. Doavam produtos
alimentícios e roupas usadas, mas dignas. Talvez não tenham sido suficientes já
que algum tempo depois ele sumiu, e para onde, ninguém sabe, ninguém viu. Era a
segunda e última vez para o Seu Olavo, a primeira e última para Careca.
A família do Luís foi junto.
O tempo fez com que quase todos esquecessem o
performático Tarzan de Papelão. Afinal, a vida é dinâmica e outras pessoas com
histórias miseráveis também surgiram e sumiram. A infância ficou para trás, mas Careca
sempre lembrava do homem que gritava como o Rei das Selvas, e, curioso, fazia elucubrações sobre o que realmente acontecera
com ele e sua família. Teriam morrido?
Duas imagens sempre vinham à lembrança: o brilho nos olhos após cessados os tiros que acertada no “hombre”, ou o sorriso colocado no canto dos lábios, enquanto dava a célebre ajeitadinha no
chapéu com a ponta de um dos revólveres ainda fumegantes (- Ptchiu! Ptchiu!), para depois soprar seus canos.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado, pós-graduado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é saudosista.
Eu não conheci, mas me senti lá...
ResponderExcluirEra uma figuraça. Como o pessoal lembrou no face, além do famoso "Hey, hombre", ele vivia utilizando o termo "muchacho": "- Hey, muchacho, você conhece aquela muchacha?"...
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