As necessidades inerentes a cada grupo, a cada
indivíduo, dificilmente serão, todas elas, captadas e assimiladas por uma única
pessoa, que poderá estar ciente dos próprios anseios e, no máximo, dos de seus
parentes e amigos mais próximos – e até, vá lá!, dos mais distantes –, mas o
alcance é limitado.
Na democracia, tais pessoas, com suas
limitações, são eleitas para representar politicamente a população. E como é impossível
chegarem a um consenso em plenário, para atender a todos esses anseios (os próprios
e os dos representados – como realmente deveria ser), com vistas a evitar
discussões estéreis que não levam a uma conclusão, delegam poder a comissões,
em verdade constituídas de representantes dos representantes, para deliberarem
sobre certos temas que irão regular a vida de todos.
Essa concentração de poder em poucos
representantes vai muito bem no que diz respeito às questões gerais, mas é
péssima no que tange à resolução de questões específicas, dada a enormidade de
demandas, inclusive contraditórias.
Mas, apesar de longe do ideal, é dessa forma
que se convencionou o exercício da democracia, cujo conceito é dado por Aderson
de Menezes [1]:
Democracia “é o ambiente em que um governo de feitio
constitucional garante, com base na liberdade e na igualdade, o funcionamento
ativo da vontade popular, através do domínio da maioria em favor do bem
público, sob fiscalização e crítica da minoria atuante”.
Seria
impossível estabelecer uma democracia pós-moderna em que o poder fosse exercido
diretamente, com o voto de todos. Mas, esse não é o pior dos mundos.
Luiz
Felipe Pondé, citando Tocqueville, afirma que “a sociedade democrática pode se tornar uma tirania da maioria”. E após
lembrar que o autor foi “mais longe, ao
tratar da questão da qualidade dessa maioria”, traça um paralelo com a obra
de Nelson Rodrigues, que disse: “a
maioria é constituída de idiotas” [2].
Num modelo ideal, para ser bem representada, a
maioria formada deve ser capaz de entender o cenário sócio-político-econômico e
de cobrar de seus representantes discernimento e compromisso com as pautas de
quem os elegeu, em busca do melhor para todos. E não para por aí. Cabe à
minoria, ao menos, ser capaz de identificar possíveis descompassos na condução dos
interesses comuns a fim de exercer seu direito de fiscalizar e de formular
críticas.
Como essa realidade está muito longe de acontecer,
o ambiente democrático acaba
contaminado, abrindo espaço para a prática de arbitrariedades e para o desvio de
objetivos. É por isso que somos submetidos a leis que atendem (direta ou
indiretamente) mais aos interesses da classe dirigente que os da população.
Hayek
também nos leva à reflexão nessa temática [3]:
...
[A] ênfase desmedida no valor da democracia é responsável pela crença ilusória
e infundada de que, enquanto a vontade da maioria for a fonte suprema do poder,
este não poderá ser arbitrário. (...)
Não
é a fonte do poder, mas a limitação do poder, que impede que este seja
arbitrário.
Não basta acreditar que o simples fato da
maioria eleger seus representantes garantirá o cumprimento de compromissos
assumidos em nome da democracia.
A liberdade e a igualdade inseridas no conceito
de Aderson de Menezes irão impor limites ao poder para que não sejam cometidas
arbitrariedades em plena democracia, como lembrou Hayek. Com efeito, o poder
popular é o “patrão” num ambiente democrático; e é na medida dos direitos e
liberdades individuais concedidos para formação do “contrato social” que está a
solução para frear os abusos da democracia. Esse contrato que não comporta
cláusulas leoninas que submetam os atores da sociedade às migalhas concedidas
pelo Estado forte, invasivo, com referendo da elite dirigente. Isso,
infelizmente, é corriqueiro em Estados cuja democracia é mais frágil.
Hayek, sobre a liberdade, ensina que [4]:
O
estado no qual o homem não está sujeito a coerção pela vontade arbitrária de
outrem é frequentemente chamado de liberdade “individual” ou “pessoal”. (...)
A
tarefa de uma política de liberdade deve consistir, portanto, em minimizar a
coerção ou seus efeitos negativos, ainda que não possa eliminá-la
completamente.
Assim, o significado de liberdade que
adotamos é, aparentemente o significado original da palavra.
De
acordo com Marcelo Novelino, o princípio da igualdade surgiu em sua concepção
formal, segundo a qual todos os homens são iguais, sem importar “o conteúdo do tratamento dispensado e nem as
condições ou circunstâncias de cada indivíduo”. Porém, a partir do Estado
social, “a crescente intervenção estatal
nas relações sociais, econômicas e culturais veio acompanhada por uma releitura
do princípio da igualdade”. Verificou-se, que a concepção formal era “insuficiente para definir quem deveria
receber tratamento igual ou desigual e em que medida isso deveria ocorrer”.
Surgia a concepção material de igualdade para não mais “permitir diferenciações arbitrárias e injustas” [5]. Já Nelson Nery e Rosa
Maria de A. Nery, ao tratarem do princípio da igualdade, recorreram ao voto do
Min. Celso de Mello, do STF, no MI 58/DF, com destaque para o seguinte excerto [6]:
Esse princípio
(...) deve ser considerado, em sua precípua função de obstar discriminações e
de extinguir privilégios, sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o
da igualdade perante a lei. A igualdade na lei (...) constitui exigência
destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá
incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica.
A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz
imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma
legal, não poderão subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou
discriminatório.
Evitar desequilíbrios a partir da igualdade
material, aquinhoando igualmente os iguais e de forma desigual os desiguais, motiva
discussões uma vez identificadas discrepâncias (o que não é raro) nas relações
havidas em sociedade. Esse mecanismo do Estado Social, que não acaba com as incertezas
e gera tensões, na realidade dão sustentação para que o Estado cada vez mais
abuse da ingerência nas relações privadas, na vida do indivíduo, ao argumento
de evitar ou diminuir conflitos.
A experiência demonstra que não há filantropos
na política, e os que lutam pelo poder nunca se satisfazem, querendo sempre
mais, não importando se vão ou não extrapolar os limites dos poderes que lhes
foram concedidos.
Há resquícios de autoritarismo no país onde o
poder popular é desprestigiado por pseudo-democratas que, velada ou
escancaradamente, atuam em prejuízo de todos, firmando acordos escusos que desfalcam
os cofres públicos, e ainda exigem, num segundo momento, que os próprios
prejudicados paguem a conta. Também há resquícios de autoritarismo no país onde
o empresariado amigo recebe vantagens – e também regimes totalitários estrangeiros,
alinhados às forças políticas –, enquanto a população se vê desassistida dos
serviços mais básicos. Por fim, há resquícios de autoritarismo quando a elite
política é responsável pela falência política, econômica e moral do país.
Partindo dessa premissa, e diante dos
acontecimentos recentes envolvendo os ocupantes do poder em países participantes
do Foro de São Paulo, e em especial o Brasil, onde há uma cultura intervencionista
que cresce paulatinamente e onde a cada dia surgem novas notícias de corrupção,
abusos e crimes diversos, pode-se seguramente afirmar que a democracia há muito
tempo deixou de ser o regime de governo. Mudanças profundas devem ser realizadas
e o poder devolvido ao titular, que, segundo a Constituição Federal de 1988, é
o povo, nos termos do seu artigo 1º, parágrafo único [7].
NOTAS
[1] MENEZES, Aderson
de. Teoria Geral do Estado. Rio de
Janeiro: Forense, 1996, pág. 277;
[2] COUTINHO, João
Pereira, PONDÉ, Luiz Felipe e ROSENFIELD, Denis. Por que virei à direita. São Paulo: Três Estrelas, 2014, pág. 71;
[3] HAYEK, Fredrich
August von. O caminho da servidão. 6.
ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, pág. 86;
[4] HAYEK, Fredrich
August von. Os fundamentos da liberdade.
São Paulo: Visão, 1983, págs. 4-5;
[5] NOVELINO,
Marcelo. Curso de Direito Constitucional.
10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, págs. 376-377;
[6] NERY JR., Nelson
e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição
Federal comentada... 2. ed. São Paulo: RT, 2009, pág. 235;
[7] “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição”.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vila Velha e em
Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória.
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