Eram tempos felizes, apesar do ambiente belicista em razão
da tomada do poder pelas Forças Armadas, para conter o processo de comunização
do Estado brasileiro, já que alguns terroristas, que se autodenominavam
revolucionários, queriam implantar no país uma ditadura do proletariado.
Seu Cláudio e dona Hortência se mudaram com os filhos
Ricardo, Renata e Fernando para uma vila charmosa, de aparência bucólica que,
por questões geográficas, isolava-se do frenesi da cidade que crescia a olhos
vistos.
Em poucos dias já estavam inteirados com os vizinhos, e daí
para se transformarem em amigos foi um pulo.
As crianças tinham novos amigos, a esposa com quem dividir
as conversas e o Seu Cláudio arranjara parceiros para as serestas e farras dos
fins de semana. Eram reuniões familiares, diga-se.
Um dos moradores da Vila era o Joaquim, que puxava de uma
das pernas por problemas de nascença, mas que não se sentia inferiorizado por
isso. Seus pais o haviam criado para enfrentar a vida de cabeça erguida e ele
assimilou. Assimilou até demais, porque o danado aproveitava quando seus pais,
mais idosos, já estavam dormindo, para chamar os vizinhos para pularem o muro
de trás de sua casa e furtarem uma penosa para fazer tira-gosto. É que quando
os quitutes trazidos pela turma começavam a acabar, elegiam uma vítima para
fornecer o alimento que os ajudaria a esticar a noite. Geralmente quem não
estivesse participando da brincadeira no dia. Era batata! Não havia carne em
congelador, frango no quintal ou biscoito na despensa que superasse a mira dos
festeiros.
Certo dia, Joaquim resolveu fazer uma arte maior. Chamou o
Cláudio e o Agnaldo para furtarem juntos, um leitãozinho de um menino que
andava de muletas e todas as tardes passava com vários porquinhos que recolhia
para sua casa, que ficava depois de um areal que havia próximo à vila.
Foi o que fizeram na sexta, para que no sábado pudessem
começar cedo e acabar bem tarde, varando a madrugada com serestas, brincadeiras
e contando causos.
Pediram à dona Antônia, que tinha morado numa fazenda quando
mais nova, para matar o suíno. Depois de realizado o serviço, foram
distribuídos os pernis pelas casas. Numa época em que cada um possuía uma
geladeira simples, e na qual geralmente não havia espaço sobrando, seu Gaspar, que
era o violeiro do grupo e solteiro, permitiu que duas peças fossem parar em sua
geladeira.
Apesar da quantidade de pessoas, era muita carne, e então
decidiram que as duas da geladeira do seu Gaspar ficariam para o convescote da
próxima semana.
A carne foi assada, a festa foi das mais animadas, e todos
ficaram satisfeitos.
Quem ficou mais animada ainda foi a dona Antônia, que passou
a mão num dos pernis que estava reservado para a semana seguinte e saboreou a
tenra carne na semana todinha.
Quem não ficou animado foi o menino das muletas que,
choroso, relatou no boteco do Vilmar que havia procurado, sem sucesso, e em
tudo quanto é canto, o leitãozinho que sumiu e já estava vendido ao
farmacêutico.
Seu Cláudio ficou sabendo e, jurando nunca mais participar daquele
tipo de brincadeira, pediu a alguém para entregar o dinheiro ao rapaz, sem
fazer alarde, para que ninguém fosse descoberto.
Ele foi perdoado por sucumbir ao remorso que lhe corroía e
não deixar o rapaz no prejuízo.
Joaquim foi perdoado por seus pais, que sabiam que ele
afanava as galinhas – a mentira tem pernas curtas.
Dona Antônia também foi perdoada, pois “ladrão que rouba
ladrão” tem cem anos de perdão.
Fernando
César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a
escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista
Nenhum comentário:
Postar um comentário