quinta-feira, 5 de maio de 2016

Como estilhaços de granada


Desde muito cedo descobriu que seu coração era grande. Luzias, Luísas, Cláudias, Carlas, Beatrizes, Lúcias, Marias, todas tinham morado dentro dele (seu coração) antes de completar 12 anos de idade. Mas, tudo foi diferente com Verônica, o terceiro ou quarto “primeiro amor” de sua vida.
O enamorado compulsivo apontara seu radar para a mocinha vistosa e pujante que, na realidade, era uma cavala, com uma diferença de idade significativa nessa época de nossas vidas: completaria 15 anos até o fim do ano. Sim, estava atrasada na escola. Culpa dos pais, que não paravam em lugar nenhum.
Era um menino tímido, mas obstinado, e logo deu um jeito de se aboletar para o lado dela e das amigas, desenvolvendo a amizade para curtir o amor platônico mais de pertinho.
Um dia, criou coragem e perguntou se ela gostava de alguém (naquele tempo, era isso que se perguntava: “você gosta de alguém?”). Ela disse que não e foi inconveniente o bastante para devolver a pergunta. Ela, sabida, sabia. A seu turno, ele enrolou o quanto pode, até que num dia, diante da insistência dela, aproveitou que seu ônibus estava parado no ponto recolhendo passageiros para sussurrar em seu ouvido:
- Você, Verônica.
Fingindo-se surpresa, ela falou algo enquanto ele corria:
- Eu? Jamais poderia imaginar.
Entrou no ônibus envergonhado – após aquela que não seria a única amarelada que daria em sua vida. Tinha certeza que ela não era para ele. Muita coisa, muito tudo. Pensou em nunca mais voltar à escola, mas não teve jeito.
O tempo passou. Ela nada mais falou. Lógico! Ele se afastou sem conseguir superar a vergonha. Lógico! Mas, não sem antes sair para bater com seu coração volúvel noutras freguesias.
Os dias se arrastaram até que, finalmente, acabou o ano letivo. A potranca saiu da escola porque foi morar na capital com o pai, recém-separado de sua mãe.
Três anos se passaram, e lá estava ele deslocado, numa festa americana muito louca – quem frequentou bem sabe como ficavam as almas depois do mix de frutas, empadão, pastel, biscoitos, refrigerante, cachaça, vinho de 5ª e vodca de 10ª.
Tinha a galera da maconha tocando músicas “cabeça” no violão, e os boyzinhos que saíam à caça das meninas que ficaram a noite toda com alguém que já tinha ido embora àquela altura – quando rolava o famoso “beijar homem por tabela”. Depois de meia-noite já começava “no woman, no cry”, seguida de músicas de Beto Guedes, 14 Bis, Rita Lee, Luiz Melodia, e seguia para Ultraje, Paralamas, Barão, Repemê e o grandioso Lobão, com a indefectível “Me chama”. Quantas vezes, nas madrugadas, vozes embriagadas não desafinaram aos berros e aos quatro ventos que: “nem-sem-pre-se-vê lágrimas no escuro”?
Voltando ao nosso herói, ele não acreditou quando olhou para o lado e viu seu “ex-inesquecível primeiro amor”, que continuava linda. Foi em sua direção e se preparou para fazer a clássica pergunta (idealizada por um amigo): “viste alguém que te interessaste?” (dessa forma, ou “sic”), quando um velho conhecido chegou por trás, abraçou e beijou a musa.
Cebola era o seu nome, um Zé Mané convencido, fedido, mas que era mais velho, fumava e trabalhava. Quase causou uma síncope no agora desolado adolescente, que não acreditava que o maior mentiroso, trambiqueiro, metido a pegador e difamador de meninas estava ali no bem-bom com Verônica. Inveja? Ciúme?
Cumprimentos trocados, suas vidas seguiram. Até que ela foi ao banheiro e Cebola, aproveitando para ser insuportável como sempre, mandou a letra:
- Conhece? Facinha...
O agora rapaz ficou sem voz. Já havia se apaixonado ao menos umas seis vezes naquele período em que perderam o contato, mas isso não dava a ela o direito de “fazer aquilo com ele” – aquela volta triunfal às avessas. No momento em que a avistou seu coração bateu mais rápido e forte. Agora, era só decepção.
Bebeu de uma só golada uma cuba-libre feita de refrigereco e três fazendas, tomou o violão do maconheiro que acabara de dizer que “amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito” e tocou “Canção da despedida”. Cada acorde, um sofrimento: “Já vou embora, mas sei que vou voltar...”.
Não. Ele não iria voltar. Aliás, quase não chegou. Engatou na birita, foi a pé pra casa e não soube nem como foi parar só de cuecas em sua cama.
A música que tocou não fala de “dores de amores”, mas de exílio. Só que, sem querer, acertou. Estava no exílio, afastado e saudoso, não de uma terra, mas daquele tempo da paixão platônica, em que, no fundo, nutria esperanças em ter para si uma mocinha ingênua com mais idade que ele. A realidade, àquela altura, era por demais cruel.
Estranhamente, entrava na adolescência com saudades da infância, daquela inocência de um eterno apaixonado.
E só havia passado três anos...


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, saudosista

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