segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A um passo do início


Quincas apertou o passo quando a chuva aumentou significativamente. Sua cabeça ia a mil, longe dali, e sequer o incomodava a camisa colada ao corpo, tão molhada que estava. Andou três longos quarteirões sem marquises até chegar ao destino, pois Epaminondas negara a carona alegando atraso para encontrar Bianca, a “essa é para casar” da última semana.

Enquanto andava, prometia a si próprio que deixaria de ir às reuniões do Clube do Velório, formado vinte anos antes, no dia da morte por afogamento de Gaspar, amigo e ponto de referência dos nove participantes. Em homenagem ao morto, assumiram um compromisso eterno de amizade e mútua colaboração: na saúde e na doença, na tristeza e na alegria, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de suas vidas. O ambiente se tornara tóxico nos últimos anos.

A convivência e o propósito do grupo transformaram suas vidas. Foram anos de amizade intensa, influência do espírito agregador de Gaspar. Em determinado momento, porém, algo aconteceu e o viço se perdeu. Alguns passaram a se comportar estranhamente, outros viviam distantes. As presenças já não eram constantes e criavam-se querelas por motivos fúteis; os jogos de entretenimento passaram a ser apostados, o que acirrou ainda mais os ânimos.

Quincas havia sofrido um baque financeiro, a multinacional na qual ocupava um alto posto retirou as atividades do país. Tinha oportunidade de se mudar para a Suécia, mas preferiu ficar e não prejudicar os filhos, que não criavam raízes em razão das transferências regionais. Não era a primeira vez que se via desempregado, mas se sentia desconfortável por causa da idade.

Nunca havia socializado problemas nem pedido dinheiro ou favores a ninguém; buscava apenas apoio moral, mas fora-lhe negado. Como da vez anterior, quando faliu a rede de minimercados, Norberto e Epaminondas deram os primeiros sinais, e passaram a evitá-lo. À época, cogitou que fosse coisa de sua cabeça, mas ao vasculhar a memória admitiu que fizeram o mesmo com Aderbal, logo após ele perder as padarias e os postos de gasolina. Por sorte, não demorou muito para o confrade receber uma polpuda herança, e tudo voltar ao normal, deixando nítido que não era coincidência, e que certos confrades queriam apenas tocar projetos pessoais.

A grana, a maldita grana e o prestígio motivavam suas ações e considerações; e ao primeiro sinal de queda financeira de alguém, promovia-se um afastamento velado através da apresentação de desculpas como um novo amor; reclamações da esposa sobre as reuniões; problemas na ONG que administrava... Telefonemas ou mensagens eram solenemente ignorados.

E não ficava apenas nessa seara. Alguns confrades passaram a exigir insistentemente a indiscrição de outros, a fim de lhes extrair inconfidências sobre negócios e intimidades alheias. Seria inveja? Curiosidade doentia? Espionagem profissional? Ou apenas queriam tais informações para revelá-las em outros círculos, onde exibiriam suas boas relações?

O tempo teria os transformado... Gente louca!

Quincas sentia, mas não estava disposto a preservar algo que há muito deixara de existir. Resolveu se ensimesmar definitivamente. Quem realmente importava estava ao seu lado, o resto não faria falta. Em verdade, o resto não passava de resto pelas próprias circunstâncias. Amigo não é quem está junto a nós apenas na bonança, não reclama a satisfação de curiosidades inconvenientes nem exige que abandonemos nossos valores para alimentar suas idiossincrasias. O ambiente para mantermos relações de puro interesse é o meio profissional, onde, infelizmente, não há pudores.

Tais elucubrações o distraíram no trajeto até chegar a casa, onde não havia ninguém, pois estavam visitando sua sogra.

Tirou a roupa encharcada, tomou banho, esquentou leite, bebeu uma xícara e tentou descansar, mas não conseguiu. Uma sentença o atormentava:  idem velle, idem nolle. “Sim, os mesmos desejos e as mesmas aversões, é isso que constitui uma amizade sólida e verdadeira”, pensava.

*   *   *

Tempos depois daquele evento, sua vida voltou ao normal; conseguiu uma atividade rentável, em um estado bem distante, onde havia morado pouco tempo antes de voltar à cidade natal.

Voltou de mala e cuia; a família adorou o retorno. Não encarava como um fardo a sua atividade laboral e seguia diariamente para a empresa como o homem mais feliz do mundo, ciente de sua capacidade intelectual e escravo das prioridades que traçou para sua vida.

Fez uma completa depuração; deletou definitivamente a Confraria de sua vida, e sequer desculpava a ausência se um confrade cobrava uma visita — não havia um parente vivo a justificar seu retorno ao estado de origem.

Passou a ser exigente na escolha de amizades e estava disposto a evitar fadigas, não se permitindo agradar a ninguém a custa de sua paz de espírito.

Em seu novo lugar no mundo, celebrou amizades verdadeiras e bem estruturadas, nos termos daquela preciosa sentença. Encarou desafios, criou novos hábitos, aprendeu coisas novas que mudaram o seu ser.

Quando os filhos já estavam criados e seguindo suas vidas, ele já dava valor a coisas que jamais haviam chamado sua atenção anteriormente, como ver o simples pôr-do-sol na praia ou ler um clássico da literatura universal.

 

 Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, um saudosista.

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