quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Era uma vez no Natal...


Lucas voltava de mais um Natal passado na casa dos pais, dirigindo pela longa estrada que tinha a percorrer. Anoitecera há pouco tempo. Era dia 25 de dezembro e o Deus-menino ainda se aquecia na manjedoura. Como de praxe, haviam sido três dias angustiantes, decorrência da instabilidade no relacionamento entre seus parentes, cujas personalidades marcantes e intransigentes o tiravam de seu centro. Não conseguia conviver com aquela terrível mania de discutirem assuntos que não dominavam com a total certeza e autoridade que só os idiotas possuem. Porém, reconhecia que contribuía com os conflitos ao entrar nas discussões e ao revelar com aspereza sua total impaciência com as ignorâncias e os comentários sobre a vida alheia. Além disso, em nada favorecia sua irritante mania de corrigir os erros de português dos interlocutores. Ele sabia que esse clima influenciava o desinteresse dos filhos em estreitar relacionamentos e construir uma história com os avós, os tios e os primos.

Sempre que saía de lá prometia a si próprio que seria a última vez que voltaria àquele ambiente hostil, mas ao fim de cada ano superava o desconforto da viagem anterior e voltava. Vivia em outro estado há anos e sentia saudades da família e dos amigos, o que aumentava quando refletia sobre a aproximação da velhice. Lamentava a iminente chegada do inevitável fim da jornada para aqueles que o ajudaram a formar seu caráter e com quem havia dividido momentos especiais, e por isso ia encontrá-los ao fim de cada ano, mesmo que por poucos dias e à custa da exposição à beligerância familiar constante. Era como se expiasse o distanciamento territorial imposto voluntariamente e que lhe roubava a convivência entre os seus.

Ainda estava envolto em seus pensamentos quando sentiu que o motor do carro enguiçou num local bastante ermo; a total escuridão era cortada apenas pelos potentes faróis da SUV, que permaneciam milagrosamente acesos. Por sorte estava numa descida e pôde aproveitar o embalo para não ficar por ali mesmo, conseguindo respirar aliviado ao notar uma forte luz despontando para além da curva que temia não contornar caso o volante travasse.

A potente claridade vinha de um posto de combustíveis que não fora prenunciado por placas e do qual não se recordava – talvez tivesse sido construído depois das recentes reformas da estrada, pensou.

Há anos passava por aquele trecho e todas as viagens eram meticulosamente planejadas para evitar parar em pontos desconhecidos. A situação emergencial, entretanto, forçava-o a isso. Estacionou perto de uma das bombas, agradeceu a Deus e informou à família que o carro apresentava um problema. Disse para esticarem as pernas, fazerem um pipizinho e tomarem café enquanto ele esperava o carro esfriar, conferia os pneus e o óleo do motor e enchia o tanque de combustível.

A mulher e os meninos ficaram boquiabertos ao se depararem com um banheiro limpíssimo e uma lanchonete de ótima aparência, que expunha produtos apetitosos e deliciosos, como perceberam ao experimentar alguns, que foram servidos pelo frentista. Não havia clientes nem carros ou caminhões estacionados no posto, mas a preocupação em retornar à estrada era tanta que não repararam a situação inusitada: um posto novo sem clientes, com apenas um funcionário cuidando das bombas, da limpeza, do caixa e da lanchonete impecável.

O carro não funcionou – o fornecimento interno de energia estava interrompido –, mas Lucas os acalmou dizendo que tudo seria resolvido, pois o carro era novo. Viu que não havia sinal de celular e perguntou ao sorridente e prestativo faz tudo do posto se ele não teria um telefone de onde pudesse acionar a seguradora. Seu nome era Expedito, e ele entregou um telefone sem fio alertando que funcionava, mas que teria que insistir para conseguir linha. Ele forneceu as coordenadas do posto para informação de quem os fosse buscar e disse que poderiam ficar o tempo que fosse necessário, pois o local era seguro; e ainda ofereceu um dormitório para pernoitarem, mas Lucas rechaçou a gentileza, agradeceu e disse ao rapaz para não se incomodar. Realmente, Lucas precisou discar inúmeras vezes até conseguir falar com o call center do seguro. O atendente informou que enviaria um reboque, que o tempo de espera seria de noventa minutos e que o carro seria levado a uma oficina autorizada duas cidades adiante, enquanto Lucas e a família seriam hospedados no Hotel Ágape.

Em vinte minutos o guincho chegou e Expedito se despediu entregando um panfleto do Posto Paraíso. Nele estava escrito: “Creia! Você pode fazer a diferença e mudar para melhor a sua vida e a de seus irmãos”.

Lucas viajou na cabine do reboque e a família dentro do carro. Enquanto a SUV era deixada na calçada da oficina, porque o segurança havia sido dispensado, um carro os aguardava para levá-los ao hotel. E apesar de estarem no interior, no meio de um feriado, foram muito bem acolhidos ao chegarem ao hotel. Depois de instalados em seus quartos desceram para jantar, e ao retornarem Lucas pôs o celular para despertar às 6h 30min e disse que todos iriam com ele à oficina para retomarem a estrada imediatamente após a entrega do carro. O problema haveria de ser coisa pouca....

O Sr. Judas Tadeu, o motorista que os conduziu ao hotel na noite anterior, já esperava para levá-los à oficina, onde após infindável espera foram informados pelo gerente que o conserto não poderia ser realizado em menos de quinze dias porque a peça da injeção de combustível que apresentava defeito teria que vir de outro estado. Ele informou também que a seguradora ainda não havia autorizado o serviço. Apesar de confuso, Lucas não ficou inerte. Decidiu rebocar o carro para uma autorizada em sua cidade, cuja distância dali era menor que a já percorrida desde a casa dos pais. Buscou o contato da Cidade de Deus Reboques e do agradável guincheiro da noite anterior, Miguel Angel, mas ninguém conhecia empresa ou sujeito com esses nomes em nenhuma das cinco cidades do vale em que se encontravam. Daí ligou para o call center do seguro e ficou sabendo que não constava registro seu da noite anterior. Achou muito estranho, mas não queria perder tempo e imediatamente ligou para o único serviço de reboque da região, que haviam lhe fornecido. Agora ouvia do Sr. Nezinho que não poderia atendê-lo porque o motor do seu guincho havia pifado. Parecia o “Dia da Marmota”, mas Lucas não se deu por vencido. Ligou para pedir ajuda ao corretor de seguros e combinou em despachar o carro para a cidade onde vivia, através da empresa que o corretor indicou. Fez contato e deixou acertado que o carro seria entregue pelo gerente da oficina.

Feito isso resolveu dar azo a algo que vinha lhe atravessando o pensamento durante aquela manhã angustiante e avisou a Vivi, sua mulher, e aos filhos que voltariam dali mesmo para passar o Réveillon com os parentes. Com efeito, desde o início da manhã, ao acordar, não sabia o motivo, vinha pensando em cada sofrimento experimentado no curso de sua vida e se sentiu um homem afortunado. Estava feliz por não ter sofrido um sério acidente na noite anterior que pusesse fim à família que havia formado e dedicado ao seu Deus Uno e Trino; e estava feliz também porque apesar de ter perdido o controle do carro em local ermo, o que colocou sua família em posição de vulnerabilidade e exposta a toda sorte de ataques criminosos, nada de ruim acontecera. Melhor ainda, só havia encontrado pessoas generosas a partir dali.

Então, retornava à casa dos pais convicto de que a partir dali começariam uma relação diferente, queria celebrar o Réveillon em família, pedir perdão, convencer os mais renitentes, ser cristão, ser Igreja, ser família, mostrar que era possível refazer os laços, reaver valores perdidos... Com o apoio da mulher e dos filhos alugou um carro numa locadora estabelecida na maior das cidades locais e seguiu viagem. Antes, porém, quis voltar ao Posto Paraíso para recompensar Expedito, mas não o encontrou nem o posto. Lembrou-se da curva, passou por ela e nada foi visto. Seguiu um pouco adiante, retornou e dirigiu de volta com extrema atenção, mas fracassou novamente. Fez novo retorno e nada. Era por ali, tinha certeza, mas o local radiante e providencial da noite anterior parecia não mais existir. Num povoado adiante perguntou a transeuntes sobre o posto desaparecido, “um bastante iluminado, com banheiro e lanchonete limpíssimos e que serve produtos de primeira linha”. Alguns sorriam da descrição e diziam que também gostariam de saber onde fica, pois postos de beira de estrada possuem banheiros imundos e vendem comidas péssimas. Em razão do tempo e do espaço a percorrer ele desistiu, mas temporariamente, pois tinha a intenção de fazer novas buscas na volta.

O retorno inesperado surpreendeu os que se encontravam na casa dos seus pais, lugar onde os parentes costumavam se reunir no mês de dezembro. A recepção não foi calorosa, mas não houve desconforto; e com o passar das horas e dos dias as coisas se acalmaram, tornando a estadia bastante agradável. Lucas participava das resenhas, interagia sem se indispor e se retirava apenas para fumar cachimbo e “pôr as coisas em ordem”, momento em que refletia sobre os acontecimentos daquele fim de ano. Os filhos, aproveitando o armistício, agora se misturavam com os parentes, e Vivi não se continha de felicidade.

No dia do festejo, faltando poucos minutos para dar meia noite, ele pediu a palavra e disse que leria um texto. Fez um ligeiro preâmbulo, lembrou aos parentes que estava ali despido de qualquer vaidade, mágoa ou remorso, tirou um pedaço de papel do bolso e passou a ler seu conteúdo:

“Prezados,

Nesse fim de ano, eu e meu núcleo familiar tivemos uma experiência que podemos dizer sobrenatural. Passamos por uma situação inicialmente aflitiva, mas muito valorosa ao final. Num momento em que todas as circunstâncias obravam para nos deixar abatidos e com muito medo, a solicitude alheia nos fez esquecer as adversidades. Nosso carro sofreu uma pane no meio do nada e por pura sorte o conduzi até um posto de gasolina onde recebi ajuda e ficamos em segurança. Porém, o local parece não existir. Sim, alguns podem pensar que foi alucinação coletiva, mas não o encontramos em nosso retorno, apesar de insistirmos bastante. Além disso, o seguro afirma que não entrei em contato e parece que a empresa e o funcionário que rebocaram o carro também não existem – e eu nem procurei notícias do hotel onde pernoitamos ou do chofer que nos levou da oficina para o hotel e vice-versa. Espero muito reencontrar aquelas pessoas para recompensá-las de alguma forma, e espero também estender e multiplicar essa caridade a todo aquele que vier a atravessar as nossas vidas.

Eu gostaria de relembrar o clima tenso e pesado da noite de Natal, celebração que deveria trazer muito mais felicidade que a virada de ano, pois nessa data comemoramos o dia no qual o Verbo se fez carne para habitar entre nós e cumprir a Palavra; Ele veio sofrer por nós para perdoar nossos pecados apenas pelo fato de nos amar infinitamente com todos os nossos defeitos e pediu em troca apenas que O amássemos acima de todas as coisas e que também amássemos nossos semelhantes na mesma medida em que amamos a nós próprios.

Peço, nessa reflexão, que todos vocês guardem com carinho a noite de Natal, que deixem as trocas de presentes, a árvore e o Papai Noel em segundo plano e rezem na intenção de Jesus, pedindo que o Seu amor transforme em carne os corações petrificados pelas mazelas desse mundo egoísta. Reparem as forças malignas que atuam para causar o caos e plantar a discórdia entre nós. Lembrem que a expressão “festas de fim de ano” é o eufemismo criado para tirar Jesus e a cristandade do foco do Natal e para colocar a praia, as yemanjices e os shows de fogos de artifícios e de cantores como símbolos do Réveillon, enquanto na verdade deveríamos comemorar a chegada do fim de mais um Ano do Senhor. Vejam como agem os ideólogos materialistas que atacam sem tréguas nossa civilização com a finalidade precípua de destruí-la. Vejam as pautas da agenda revolucionária, a luta para separar a sociedade em grupos ou tribos e para aniquilar o cristianismo, as famílias e as amizades. Vejam a sagacidade na promoção do distanciamento entre as pessoas, que já não se reúnem alegre e voluntariamente para contar causos, rezar, celebrar o nascimento de Jesus, preservar a tradição dos ancestrais e passá-la à descendência...

Peço, ainda, que procurem diretamente e com sinceridade quem lhes causou mágoas e o perdoem; e desejo que Deus lhes dê o dom de ouvir com paciência o que os desagrada, o dom de reconhecer os próprios erros e o dom de expor com sabedoria seus pontos de vista; que Ele os desarme do desejo de vingança e da necessidade de vencer as discussões a todo custo, apenas para mostrar uma superioridade intelectual ilusória conquistada por meio de argumentos desonestos. E quero deixar claro que já venho promovendo em meu íntimo as mudanças que lhes peço.

Quero me comprometer a estar aqui com vocês pelo resto de minha vida ao menos no fim ano, e dizer que farei o possível para vir também nas outras circunstâncias em que me for permitido. Aproveito para manifestar o desejo de que minha mulher, meus filhos, meus agregados e meus descendentes continuem frequentando os encontros familiares mesmo após a minha partida para a vida eterna.

Agradeço profundamente o convívio desses últimos dias e a atenção dispensada; e, por fim, peço com firmeza na fé que Deus abençoe a todos”.

 

As palavras ecoaram em todos os cantos da enorme casa e nos corações dos que estavam naquela reunião. O Réveillon foi comemorado com certa solenidade e de forma mais fraternal que de costume, passando longe do fiasco vivido no Natal. (Logo no Natal...) Foram feitas orações e ouvidas músicas civilizadas no volume apropriado. Ninguém assistiu à queima dos fogos televisivos que dispersam os celebrantes.

As personagens daquela história e o Posto Paraíso nunca mais foram vistos por Lucas ou Vivi, pelos filhos, genro, nora e netos, apesar de todos ficarem em estado de alerta nas vezes em que passavam pelo local nas viagens para a cidade de nascimento do patriarca. E como era possível supor, o hotel Ágape também não existia, como foi possível constatar em algumas incursões na cidade.

Lucas guardou consigo até à morte o cartão entregue por Expedito, e sempre pontuava que, caso Deus assim entendesse, aquela mensagem foi responsável por salvar a sua alma. Afinal, ele creu, mudou a sua perspectiva de vida e fez a diferença na vida dos outros. Muita coisa boa aconteceu depois daquilo, inúmeras reconciliações foram celebradas até a definitiva recuperação do espírito natalino e da tradição cultuada por seus antepassados antes mesmo das primeiras gerações que chegaram ao país. A alegria das reuniões era contagiante e os momentos de tristeza só ocorriam nas revelações de graves doenças ou nos casos de falecimento, mas até aí havia a presença maciça dos familiares para dar encorajamento ou para o último adeus, coisa que inexistia antes.

Os encontros continuaram até à geração dos netos de Lucas, e só deixaram de acontecer quando os parentes perderam o contato por terem se espalhado pelo país e pelo planeta. A tradição, porém, eles levaram consigo.

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

 

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