Alcebíades
Junqueira era um senhorzinho extremamente simpático e aparentemente possuía
mais idade que aquela registrada em seu documento de identidade. Baixinho, pele
clara, olhos azuis profundos, lábios finos, nariz pequeno, tinta acaju nos
cabelos — rareados em razão das entradas que denunciavam uma semi-calvície —,
era risonho e daqueles que cumprimentam até as sombras para mostrar-se boa gente.
Sua maior característica, porém, era negativa: a estranha mania de meter o
bedelho naquilo que não lhe dizia respeito. A curiosidade era maior que a prudência
e, não raramente, permitia-se espionar a vida privada de vizinhos, de parentes,
de amigos e também de condôminos do Edifício Corporate Master, onde era
porteiro. Seu campo de pesquisa, além do diz-que-diz rotineiro, envolvia correspondências
e mercadorias alheias recebidas na portaria; e não foram poucas as vezes em que
foi flagrado pela câmera de vigilância, aproveitando os momentos de pouco movimento
para investigar pacotes e envelopes, chegando até a vasculhar o conteúdo das notas
fiscais de produtos.
Sua aposentaria
viria em alguns anos, mas contava ansiosamente cada dia abatido. Já estava fichado
no condomínio há tempos, primeiro nos serviços gerais e, depois, como porteiro,
posto alcançado cerca de dois anos antes de Epitácio de Oliveira comprar uma
sala no prédio e passar a dar expediente por lá.
Outro
comportamento inconveniente era o costume de ir ao prédio nos dias de folga sem
ser solicitado; e não foram poucas as advertências recebidas, pois havia o receio
de implicações trabalhistas no futuro. Alcebíades se justificava dizendo que ia
acompanhar mudanças ou obras, mas aparecia mesmo sem finalidade específica —
uma faxineira informou que a mulher e a filha o tratavam mal em casa, e ele arranjava
desculpas para sair. Como não bebia nem jogava, bom cristão que era, ora ia à
Igreja, ora ao prédio comercial, sempre vazio nos fins de semana, fazer sabe-se
lá Deus o quê.
Sobre Epitácio,
ninguém sabia qual realmente era sua ocupação — um e outro diziam que era
advogado, contador ou despachante —, e seu Alcebíades, em quem aumentava a comichão
de oxiúros quando a curiosidade apertava, ainda atiçava a curiosidade dos frequentadores
do prédio. Seu tormento era ver chegarem caixas e envelopes de variados formatos,
dia sim, outro também, mas nunca um cliente procurando Epitácio; e de tão incomodado,
passou a se empenhar mais para descobrir o conteúdo das entregas enviadas a esse
condômino, sendo indiscreto ao ponto de balançar e apalpar as correspondências
e os pacotes na frente de outras pessoas. Era uma questão de honra.
Epitácio era
um homem pequeno, forte, de sobrancelhas grossas e de semblante sisudo; de
poucas palavras, era cordial e muito habilidoso no trato com as pessoas, embora
não dado a intimidades para manter curiosos a boa distância e, com isso, impedir
inquirições sobre sua vida privada.
Um belo dia,
ao chegar de supetão na portaria, flagrou o porteiro investigando um pacote
endereçado a sua esposa, que fornecia aquele logradouro para envio de
encomendas e de correspondências. Alcebíades mal disfarçou seu constrangimento
e sequer conseguiu se justificar. Epitácio foi incisivo ao pedir que aquilo não
se repetisse; disse que ele não era a versão masculina da Miss Marple —
personagem de Ágatha Christie que resolvia mistérios —, que aquilo não era a
conduta de um profissional e que, além de tudo, a curiosidade matou o gato.
Alcebíades
deu um sorriso sem graça e disse que aquilo não tornaria a se repetir; e tudo
ficou como dantes, como gostaria de saber o leitor.
Não muito
tempo depois, com a falta de interesse geral, Epitácio foi convidado a compor a
comissão de obras de uma reforma grande que ocorreria no Condomínio, e aceitou muito
a contragosto. Como teve que comparecer muitas vezes no prédio fora do horário
de expediente, e precisava avisar à central para evitar o deslocamento de seguranças
e a ativação do forte alarme que soava em razão de movimentos na recepção, acabou
angariando a simpatia dos funcionários que monitoravam o prédio; e com seu
jeito bastante peculiar, acabou conseguindo tirar deles declarações informais
acerca das atividades indiscretas do porteiro, com a promessa de não revelar
quem havia dado as informações. Instruíram-no a formalizar um pedido de investigação
para entrega de vídeos e, assim, constatar as atitudes inoportunas do porteiro,
para evitar represálias da empresa. Epitácio os tranquilizou, e pediu para que não
comentassem com mais ninguém, pois exporia o problema ao Síndico, à Administração
e ao Conselho para chegarem a uma solução pouco traumática. Disse que planejava
interceder em favor do funcionário, muito bem quisto por todos, para que lhe
fosse dada apenas uma advertência.
E cumpriu o
prometido.
Foram
requeridas as gravações e, apesar do destempero da Conselheira Letícia, uma
psiquiatra, e do filho do síndico (que surtou quando o pai lhe contou os
detalhes — diziam que ele exercia atividades suspeitas), que queriam a demissão
do porteiro, o desfecho não poderia ser melhor. Logicamente, tomou a precaução
de mostrar que o porteiro investigava volumes de todas as unidades, e não
apenas as suas. Mas Alcebíades, porque era de sua natureza, voltou a pecar, e
os monitores avisaram novamente a Epitácio. Dessa vez, porém, ele não requereu
gravações e retransmitiu diretamente os fatos a quem de direito; a fonte, contudo,
— e como era de se esperar — não informou.
Epitácio
tomara o cuidado de espalhar essas notícias a várias pessoas pelo fato de ser
um criminoso de alta periculosidade, daqueles que mudam para um local distante
de onde viviam anteriormente, para criar uma nova persona. Era envolvido com o
tráfico de drogas e de pessoas, com sequestros, homicídios e grande parte dos
crimes tipificados na legislação brasileira, e só comprou a sala após se
certificar da pequena movimentação de pessoas no edifício; via ali um local
ideal para viver com uma fachada de legalidade. E tomou o cuidado de, antes de
operar suas atividades, encomendar inúmeros produtos na internet para que essa
atividade contínua de chegada de produtos não chamasse a atenção no momento em
que passasse a receber material comprometedor, e não poderia permitir que um
curioso desmiolado atrapalhasse seus negócios. Com efeito, ele se cercou de cuidados
para que muitos soubessem das indiscrições do porteiro a fim de retirar de si a
desconfiança de que teria dado cabo do indivíduo; e não deu outra, como você já
deve ter deduzido.
Certo dia
chuvoso, utilizando uma motocicleta, capacete, macacão emborrachado e carregando
uma caixa de aplicativo de entrega de alimentos, Epitácio esperou Alcebíades no
meio do trajeto utilizado para retornar a sua casa. Ele nem precisou estudar
muito os hábitos do porteiro, um homem que mantinha severamente a rotina: chovesse
ou fizesse sol, ele ia de casa para o trabalho e voltava pelo mesmo caminho. Sempre;
e sempre carregando consigo um guarda-chuva ou uma capa longa, para se proteger
em caso de chuva repentina.
Para chegar a
sua casa, era necessário entrar na Comunidade Santa Rita, que dava acesso mais
rápido à comunidade onde residia, a Favela da Panela; e foi assim que Epitácio
esperou-o passar num local estratégico. Aproveitando a pouca luminosidade e a inexistência
de cobertura de câmeras no local, pôs-se repentinamente de pé em frente à
bicicleta e, enquanto o freio era acionado, cortou a garganta de Alcebíades com
rara maestria.
O corpo foi deixado
no local em que a vizinhança depositava lixo, entulhos de obras e galhos de
árvores cortadas à revelia do Estado. Foi descoberto no dia seguinte, ao
amanhecer, por um catador não cooperativado; e sua boca estava cheia de formigas.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista
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