quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Vão-se os anéis, ficam-se os nervos


- E aí, já decidiu como vamos fazer para contar às crianças?
- Não. Não tenho a menor noção de como fazer isso.
- Mas, seus pais se separaram quando você tinha a idade deles...
- Sim. Só que naquele tempo não se dava satisfação às crianças. Ele simplesmente foi embora, na calada da noite, e, envergonhado, só apareceu duas semanas depois. Foi bom. Ele comprou presunto na padaria. Antes era só manteiga ou mortadela, e olhe lá! Acho que naquela época o mundo era bem menos povoado de galinhas. Fritar ovo e colocar no pão era um luxo danado.
- A gente tem que fazer alguma coisa. Você não lê as revistas ou vê o noticiário? Crianças de lares desfeitos são mais propensas a uma série de doenças. Imagina se um deles vira um “serial killer”...
- Calma. Não é motivo para tanto. No máximo serão “‘cereal’ killers”. Como comem flocos de milho... O mundo é outro, as crianças têm uma carapaça. Além disso, há vários colegas na escola, no condomínio, no futebol, na natação, no judô, no yoga, no ballet, na academia e na Igreja que passam ou passaram por isso também. Esqueci alguma atividade deles?
- Bom. Eu gostaria de conversar com eles antes de você ir embora.
- “Nós” vamos conversar. Mas, estou duro. Então ainda vou dormir no sofá por alguns dias. Até lá, não vamos fazê-los sofrer. Como você quer que eles entendam que estamos separados vivendo sob o mesmo teto?
- Tempos modernos.
- Esse é o nome de um filme do Chaplin de 1936. Não é tão moderno assim...
- Fiz ovos com bacon, do jeito que você gosta. Vai tomar café em casa?
- Vou. Sabe aquela tela que você tinha visto no outro dia no Centro da Cidade? O preço era bom. Pedi para emoldurar. Deve chegar lá pela terça-feira...
***
- Bom. O café, o suco, a torrada e os ovos com bacon estavam uma delícia, como sempre.
- Obrigada. Você já vai? Tome o seu paletó.
- Ok. Então tá. Te ammm...
- Beij...
- Bom dia!
- Um bom dia para você também.
***
- Crianças, a vida é uma caixinha de surpresas. E eu e sua mãe queremos contar uma coisa séria a vocês.
- Sim, papai.
- Vocês sabem como é. Eu e seu pai amamos muito vocês três. Mas, aconteceu uma coisa...
- É a gente ama vocês demais– disse ele. Mas, entre nós dois...
- Nós sabemos. Vocês vão se separar!
- É. Vão se separar, papai e mamãe. Disse a menor.
- Vocês pensam que a gente não vê o papai dormindo no sofá há mais de um mês?
- É. E vocês não discutem mais...
- Pai. Você vai embora? Perguntou o menino, o do meio.
- Vou.
- Na sua nova casa tem um quarto para a gente?
- Tem sim.
- E no nosso aniversário, no dia das crianças e no natal a gente vai ganhar presentes dos dois?
- Bem. Acho que sim.
- E a gente vai viajar nas férias e sair mais nos fins de semana?
- Também acho que sim.
- Uhuuu!!! Êêêê!!! Viva!!!
- Agora o Carlinhos não vai mais ficar tirando onda comigo de que eu não saio de casa e só ganho um presente nas datas festivas. Meus pais também separaram!

FIM.

Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, metido a articulista, ensaísta e cronista e, de certa forma, saudosista

Um comentário:

  1. Essa é a realidade do mundo em que vivemos. Parabéns! Você captou a essência dos "tempos modernos".

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