segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Romualdo Vampirescu

 

Havia meia dúzia de moleques no bairro que estudavam no horário da manhã e passavam o dia inteiro jogando bola num terreno baldio, que chamavam de “grund” – como no livro “Os meninos da Rua Paulo” –, ou curtindo outras brincadeiras. Nas férias escolares eles dobravam a meta.

Quando batia a fome, arrancavam frutos de uma mangueira antiga que ficava no canto do grund ou pulavam o muro da casa da dona Aurora escondidos e catavam goiabas. Quase sempre tinham que correr dos cachorros.

Algumas vezes optavam por sentir fortes emoções e arriscavam invadir uma propriedade com fama de mal assombrada no fim da Rua da “Fábrica” de Banana. Era uma chácara incrustada entre dois morros onde havia um pequeno pomar que atraía as crianças e os adolescentes que adentravam o local por um caminho estreito vindo do morro da esquerda. Na realidade, o acesso era complicado.

Corria a lenda de que o proprietário era um vampiro e todas as crianças do bairro tinham verdadeiro pavor dele. Por isso era chamado de “seu” Romualdo Vampirescu – o apelido, que ele desconhecia, fora colocado por um senhor viajado que disse que na Romênia, terra do Conde Vladimir Drácula, os nomes terminavam com “escu”. Era uma figura que só aparecia à noite, com aspecto soturno, sisudo e apavorante. Seus dentes compridos e amarelões e os tufos de cabelos saindo pelas ventas e orelhas ajudavam a assustar ainda mais as crianças e a confirmar a fama de “monstro”.

Só valia à pena a travessura porque no local havia muitos pés de fruta de espécies variadas, incluídas algumas não muito usuais, como jaca, abiu, carambola, pitanga, abacaxi, abricó e ameixa. Mas não faltavam mangas, goiabas e laranjas.

Naquele dia, Léo Zarolho, Macarrão, Piolho e Formiga foram jogar carteado valendo dinheiro na casa de Rato Velho. Estavam sorridentes até aparecer um pessoal estranho por lá – eram “empreendedores” que queriam abrir uma boca de fumo num dos morros. Como todos os forasteiros estavam muito bem armados, os quatro ficaram se borrando de medo e passaram a rezar em pensamento, pedindo a Deus para perderem a rodada de “monte inglês”. Pouco mais de quinze minutos ali foi o suficiente para cascarem fora, apavorados.

Porém, como a mente vazia é oficina do capeta, resolveram ir à chácara comer umas frutas. Só que, além do “Vampirescu”, ali vivia também o seu Toinho, o caseiro encarregado de cuidar da chácara e de colocar a meninada para correr. Ele dava tiro de sal, o que deixava a todos com medo porque as feridas não cicatrizavam.

Entre os revólveres e escopetas ou os tiros de sal os meninos preferiam os últimos porque poderiam comer e ainda carregar frutas bem apetitosas sem precisar arriscar o pescoço e seus trocados.

Piolho adorava jaca e a jaqueira foi o primeiro pé de fruta que buscou. Os outros preferiram aproveitar as frutas menores, pois se seu Toinho chegasse já estariam satisfeitos. Após chuparem umas mangas carlotinhas e quatro mangas-espada e arrancarem três jacas de tamanho médio, lá veio o caseiro, xingando e ameaçando atirar, o que fez quando chegou mais perto.

Num piscar de olhos, Macarrão e Léo Zarolho, os mais velhos, deixaram as frutas para trás e já estavam a léguas de distância. Formiga catou duas mangonas e Piolho se atracou com uma jaca.

No meio do caminho, em desabalada carreira, Formiga caiu no chão e fechou o caminho de “lá vai um”, dizendo para Piolho que ele não ia ficar sozinho não. Mas, bastou outro tiro ser disparado para Piolho sair pisando Formiga, que gritava por causa do peso de seu amigo. As mangas ficaram para trás, a jaca não.

Ao chegarem ao grund com segurança, os medrosos Macarrão e Zarolho, com o coro engrossado por Formiga, exigiam de Piolho um naco da jaca que ele trouxera grudada ao corpo como um jogador de futebol americano esconde a bola para marcar seu touchdown.

Ao descansar a fruta no chão, o gordinho viu que sua barriga estava toda marcada de furinhos desenhados pela casca da jaca. Ficou fulo e, depois de xingar um palavrão daquele tamanho, falou que não dividiria porque ninguém se preocupou com nada por medo do seu Toinho enquanto ele se arriscava ao trazer algo tão pesado. Eles insistiram, lembraram a amizade e, por fim, ameaçaram tomar na mão grande.

Piolho entristeceu, disse que não queria mais a jaca e foi embora – descobriu depois que estava “de vez”, e que ninguém aproveitou nem um gomo.

Mais tarde, já à noitinha, ele pensou nos perigos por que passou naquele dia, e apesar de experimentar uma excitação ímpar na vida de um menino de sua idade, percebeu que as coisas começavam a ficar sérias, sérias demais: dos jogos de azar com gente desconhecida e fortemente armada à invasão de propriedades com o risco de tiros de sal, passando pela surra que poderia tomar dos amigos... E ainda havia a possibilidade do seu Romualdo aparecer de madrugada, voando com uma capa escura através da janela do seu quarto, com seus caninos à mostra e sedento de sangue.

Apesar de não guardar mágoa dos amigos, porque era comum uns darem cascudos nos outros e horas depois tudo voltar ao normal, Piolho não apareceu mais no grund. Perdeu o gosto pelas frutas catadas na rua e nas casas alheias, emagreceu e, certo de que deveria crescer e mudar, deu um rumo diferente a sua vida.

Bem mais tarde soube que o temível Romualdo Vampirescu morreu. Não foi com uma estaca cravada no coração, uma cruz que lhe queimou a face, um banho de água benta e nem com um cordão de alho envolvido em seu pescoço.

A baioneta do seu Toinho ficou calada. A chácara foi vendida. Mas, já não fazia tanta diferença.

 


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista e contista, além de saudosista

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