De acordo com
matéria publicada no Portal da Conjur, anunciando o Anuário da Justiça do Rio
de Janeiro 2016, apesar de reconhecidamente um estado com índices alarmantes de
criminalidade, os recursos oriundos de ações penais são dos menos protocolados no
Tribunal de Justiça do estado (TJRJ) [1]:
Levando
em conta os casos novos recebidos pelos dois grupos de câmaras com
especialização definida, a constatação é que as queixas de consumidores contra
fornecedores praticamente dobram as da área criminal – em sua maioria, tráfico
de droga e roubos. Assim, enquanto as cinco câmaras especializadas em Direito
do Consumidor receberam 44 mil recursos para julgar até setembro de 2015, as
oito câmaras criminais receberam 24 mil.
Os
dados confirmam uma tendência verificada em 2014, quando o número de processos
que deram entrada na segunda instância criminal também ficou na lanterna, com
16% do total. Em números absolutos, foram 33 mil casos criminais, contra 64 mil
recursos de consumidores e 107 mil ações cíveis em geral.
De posse da
informação de que no Rio de Janeiro ações consumeristas contabilizam quase o
dobro de ações penais, creio que há problemas de duas vertentes que exercem influências
nesse resultado.
O primeiro não
é objeto desse ensaio, mas quero dizer que qualquer pesquisa oficial sobre a criminalidade
deve ser encarada “cum grano salis”. Prova disso é a baixa taxa de resolução de
crimes, que impede confrontar o real percentual de criminosos processados com o
número de crimes praticados e noticiados pelas vítimas (e veja que muitas delas
nem procuram a polícia). Isso reflete no baixo número de ações criminais e de
recursos em juízo, não obstante os problemas de criminalidade dominarem o
noticiário local e o fato da população sentir na pele a violência que a inepta
Secretaria de Segurança Pública daquele estado não consegue combater.
Nesse sentido,
o desembargador Paulo Baldez, que preside o grupo de trabalho das Câmaras
Criminais do TJRJ, afirma que a polícia e o Ministério Público atuam abaixo do
nível satisfatório na solução de ocorrências e que por isso “o número de julgamentos é proporcional ao
número de ações criminais que chegam ao Tribunal” [2]. Sem adentrarmos o mérito sobre o número de
servidores, a tecnologia disponível e a cooperação de outras instituições e/ou
entes federativos, tudo leva a crer que é isso mesmo. Ponto.
O segundo problema
escancara a falha da política adotada pelo Tribunal no trato com as relações de
consumo. Ora, se de um lado os danos morais, em regra o pedido mais frequente
dos consumidores, não são vistos com interesse por seus julgadores, de outro
lado, empresas de grande porte são as grandes vilãs, responsáveis por um grande
número de demandas sem se esforçar para melhorar o trato com os clientes.
Em 2013, eu
publiquei o ensaio “Indústria do dano
moral às avessas”, denunciando que os magistrados daquele tribunal fixavam
(quando fixavam) baixas quantias a título de danos morais com o objetivo de “desestimular a procura do Judiciário
e, assim, desafogar suas instâncias, pois, como boa empresa que se preze, tem
metas a cumprir, e a grande enxurrada de ações propostas inviabiliza essa árdua
missão” [3]. (grifei)
Lembrei,
ainda, um caso real em que o juiz negou a inversão do ônus da prova e julgou improcedente
o pedido, ao argumento de que os documentos juntados pelo Requerente, únicos obtidos
perante a própria instituição financeira Requerida, eram insuficientes para
deslinde da ação.
Sobre os
problemas oriundos dessa postura, alertei que fixar quantias irrisórias
incentiva a continuidade de atos reprováveis em detrimento dos consumidores,
pois fica mais barato para as empresas irem a juízo (é o risco
calculado). Também comentei que a produção de decisões a toque de caixa para
engordar estatísticas e atingir metas com respaldo em supostas celeridade e eficiência
não dispensam a prolação de decisões com qualidade. Curiosamente, o TJRJ não exige das empresas que julga a eficiência cobrada dos magistrados quando abre mão de uma condenação
mais austera.
Como os julgadores
não condenam o fornecedor [4]
de forma exemplar, fixando a reparação dos danos sofridos em quantias ínfimas para
evitarem o enriquecimento indevido, o resultado lógico é o desdém dispensado ao
consumidor, o que certamente abre portas para uma enxurrada de ações. Essa
prestação jurisdicional com vistas a desestimular as demandas é um tiro no pé,
pois as vítimas insatisfeitas continuam ajuizando ações e buscando a “justiça”
em grau recursal.
E olha que nem
todo consumidor lesado bate à porta do Judiciário. Ademais, quem julga os
recursos dos Juizados Especiais não é o Tribunal, mas as Turmas Recursais.
Logo, o número desse tipo de ação é muito maior.
Não é
necessário muito esforço para concluir que, para reduzir custos, certas
empresas não se dedicam a melhorar produtos e serviços, nem investem em material
humano. Preferem transferir para o Judiciário o serviço da resolução das
demandas fornecedor vs. consumidor. Já o investimento em tecnologia é
perceptível, pois, em regra, visa a facilitar a cobrança, traçar o perfil do
consumidor e expor a marca.
Analisando
o modelo empresarial do TJRJ, que alcança altíssimos índices de produtividade,
mormente se comparado com as demais Cortes Judiciais do país, o texto de
abertura do Anuário da Justiça do Rio de Janeiro 2016 é bem didático [6]:
O Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro passa por um período de reflexão, que decorre de uma constatação
perversa: fazer o máximo possível e alcançar 100% de eficiência não basta no
atual cenário do Judiciário brasileiro, caracterizado por um índice de
litigiosidade sem precedente. Mesmo apresentando os maiores índices de
produtividade na Justiça do país, o TJ-RJ não consegue vencer o desafio de dar
fim ao estoque de mais de 10 milhões de processos em tramitação, a 2,5 milhões
de casos novos a cada ano e à taxa de congestionamento de 73,5% na fase de
conhecimento na primeira instância.
Repito: enquanto
os magistrados se empenharem mais em diminuir a carga de demandas que se
preocuparem com a qualidade das decisões, o consumidor continuará acionando o
Judiciário e devolvendo os processos à 2ª instância, e o percentual de ações
congestionadas no piso só aumentará. Em suma, não adianta investir nos danos
morais para desencorajar o ajuizamento de novas ações se “não combinarem com os
russos”, que são os consumidores.
A solução é desencorajar
a reincidência. Então, no lugar de tentar suprimir do consumidor a garantia
constitucional da inafastabilidade da apreciação e da prestação jurisdicional (artigo
5º, inciso XXXV, da CF/1988), o julgador deveria punir mais severamente o
fornecedor que descumpre leis e delega ao Estado a responsabilidade de resolver
problemas que deveriam ser solucionados pelo serviço de atendimento ao cliente
(SAC). Começando por determinar a adequação da sua estrutura para manter melhor
relação com o consumidor. Todos sairiam ganhando.
Não é novidade
que as grandes empresas abarrotam e atravancam o Judiciário. Invariavelmente, são
as que menos se importam em estar no dia a dia dos fóruns e tribunais para
resolver em juízo problemas que poderiam ser solucionados no âmbito privado.
São várias demandas geradas pela cobrança de valores indevidos; negativação
ilícita; venda de alimentos vencidos ou estragados; entrega de produtos com
defeito ou com atraso; e negativa de prestar serviços contratados, dentre
outros. E não adianta mostrarem boa vontade no mutirão do fim do ano realizado para
desafogar o Judiciário se elas são as principais causadoras dessa mobilização.
Em relação ao pequeno
e médio empresariado, eles também estão adstritos à lei e não merecem favores
extraordinários. Logo, é possível um enrijecimento que não prejudique nem
inviabilize sua atividade, podendo ser aplicados os critérios do caráter
pedagógico e punitivo da decisão e do porte econômico da empresa na fixação do
“quantum” devido a título de danos morais. Então, os valores fixados facilmente
atenderiam à sua realidade e, principalmente, seriam um estímulo à melhoria no
atendimento aos anseios do consumidor.
Quanto aos
consumidores que buscarem a tutela do Estado por oportunismo devem ser punidos
com muito rigor, por litigância de má fé.
Entretanto, é
necessário fazer uma ressalva em relação às fórmulas criadas pelo Judiciário para
diminuir ou evitar demandas, inclusive no âmbito extrajudicial. De nada adianta
criar meios de solução de conflitos se o mote é viabilizar um projeto pautado
na ameaça velada a empresas a partir da criação de uma lista que gradua o “grau
de colaboração” com o Judiciário na diminuição de demandas. Nesse diapasão, as ameaças
ao consumidor através de um cadastro na Câmara Online que demonstra sua “boa
vontade” na busca da solução pré-processual do litígio. Vejamos [6]:
A primeira fase do projeto,
denominado Câmaras de Solução Online, com ênfase em questões
relacionadas ao Direito do Consumidor, um dos principais gargalos da Justiça
comum, começou a funcionar (...). A expectativa é de que o sistema esteja
disponível em todo o estado já no primeiro semestre de 2016.
(...)
Mesmo que não consiga solução para o
problema, o consumidor que fizer uso das câmaras online tem a
vantagem adicional de ter provada sua boa-fé na tentativa de um acordo
pré-processual, caso a questão acabe sendo levada ao Judiciário. Isto
porque ficaria demonstrado que o eventual ajuizamento de ação judicial, em caso
de malogro da conciliação, se deveu exclusivamente à inércia e incapacidade da
empresa de atendê-lo a partir do momento em que tomou ciência da reclamação.
Simultaneamente à instalação das primeiras
câmaras online, o TJ-RJ também inovou no programa de conciliação
por e-mail com o lançamento de aplicativo para telefones
celulares que permite ao usuário buscar acordo com grandes empresas, públicas e
privadas, previamente cadastradas, antes de recorrer à via judicial. O sistema
é extremamente simples e tem sido apontado como peça de fundamental importância
no chamado Projeto de Solução Alternativa de Conflitos, por estimular ainda
mais a conciliação e, consequentemente, a solução de conflitos de consumo, sem
necessidade de ajuizamento de processos.
(...)
Um grupo de 30 empresas, entre as
mais demandadas no Judiciário fluminense – operadoras de telefonia e planos de
saúde, bancos, grandes redes de comércio varejista e concessionárias de
serviços públicos – participam do projeto. Com o aplicativo, o consumidor que
se sentir prejudicado entra em contato com uma área específica da empresa,
expõe o problema e aguarda proposta de solução. Para estimular as empresas a
participar do programa, o tribunal planeja criar uma espécie de ranking
positivo para destacar as empresas que mais fazem acordos extrajudiciais,
que servirá como contraponto ao ranking atual das empresas
mais demandadas no Judiciário fluminense. (grifei)
Sem contar que
o TJRJ arroga para si a função que seria dos PROCONS na solução prévia de
conflitos, outras circunstâncias tornam não muito salutares as medidas simpáticas
criadas tão-somente para o desafogo do Judiciário, sem considerar o principal: uma
prestação jurisdicional justa.
Com efeito, o
Estado obriga o jurisdicionado a procurar essas Câmaras sob pena de, “mutatis
mutandis”, ser tratado como responsável por não haver um acordo pré-processual.
Da mesma forma, constrange (de forma ilícita a meu ver) as empresas a firmarem acordos
buscando um bom posicionamento no ranking das colaboradoras.
Vamos ser
claros e objetivos: qual o prêmio de quem se “comportar direitinho”? O consumidor
que não buscar a solução extrajudicial para exercer sua garantia constitucional
perante o Judiciário será prejudicado em seus direitos? As empresas bem
colocadas no ranking terão “descontos” nas possíveis condenações em demandas
que não conseguirem finalizar na fase pré-processual?
Por esse prisma,
é ilegal, é imoral e não se admite, num Estado Democrático de Direito, ameaças
aos litigantes de maior rigor na apreciação judicial simplesmente por buscarem a
tutela judicial.
Para finalizar,
se a fixação de valores baixos na reparação de danos morais visa a evitar o
enriquecimento indevido do consumidor; e se até aqui não gerou bons resultados,
os magistrados devem alterar essa tática.
De outro lado,
se a empresa joga a responsabilidade da resolução dos problemas sobre o
Judiciário, deixando claro o propósito de diminuir custos, ou aumentar lucros,
como queira, possivelmente irá utilizar o mesmo fundamento para manter seu nome
nos primeiros lugares da lista de “colaboradores”, com o intuito de ser vista com
“melhores olhos” pelos magistrados, que aplicarão penas menores. Aqui também não
há enriquecimento indevido da empresa?
A jurisdição
deve ser prestada nos termos estabelecidos em lei. Quem se preocupa demasiadamente
com a quantidade de demandas a julgar, ou o acúmulo de trabalho, e lança mão de
meios heterodoxos para resolver problemas cuja solução é simplesmente levantar
o tom contra infratores contumazes para eliminar (ou tentar eliminar) na raiz o
surgimento de novas demandas, pode pegar seu banquinho e sair de fininho. Quer
dizer, não adianta enxugar gelo ou criar mecanismos mirabolantes que atentem
contra o Estado de Direito, para evitar o acúmulo de demandas que continuarão
se multiplicando se o problema não foi tratado em seu cerne, através da coação
legal contra fornecedores para que busquem meios definitivos de frear as
demandas. Afinal, a belíssima e necessária função do magistrado é julgar, e não
lhe é dado o direito de fazer contornos que o impeçam de apenar adequadamente quem
não se intimida perante o Poder Judiciário. Para tanto, é beneficiário de um
belo subsídio cumulado com vantagens bastante significativas para cumprir seu mister.
Caso continue
insatisfeito, há muitas outras profissões dignificantes por aí, e qualificação
para abraçar uma delas certamente não lhe faltará.
Notas
[1] SOUZA, Giselle. TJ-RJ tem duas vezes mais casos de
consumidor do que de crime. ConJur, 19/11/2015. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-nov-19/tj-rj-duas-vezes-casos-consumidor-crime >. Acesso em14/12/2015;
[2]
SOUZA, Giselle. TJ-RJ tem duas vezes mais
casos de consumidor do que de crime...;
[3]
PEIXOTO, Fernando César Borges. Indústria do dano moral às avessas. Jus
Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3824, 20/12/2013. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/26200>. Acesso em: 15 jan. 2014;
[4]
O termo engloba tanto o fornecedor de produto quanto o prestador de serviços,
pois segundo o artigo 3º do CDC: “Fornecedor
é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira,
bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção,
montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação,
distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”;
[5]
Anuário da Justiça 2016. TJ-RJ tem nota
máxima em eficiência, mas não responde às demandas sociais. ConJur,
10/12/2015. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-dez-10/justica-rio-eficiente-nao-responde-demandas-sociais>.
Acesso em 11/12/2015;
[6]
Anuário da Justiça 2016. TJ-RJ tem nota
máxima em eficiência, mas não responde às demandas sociais...
Fernando César Borges Peixoto
Advogado, Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vila Velha-ES e em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória-ES.
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