terça-feira, 29 de agosto de 2017

João Bosco, dissonantes e cachaça


Dez horas da manhã, um grupo de adolescentes tocava violão e cantava na esquina em que os mais velhos se reuniam à noite, para jogar conversa fora. No meio de semana, férias escolares, verão – já, já o sol estaria batendo a pino sobre a mufa, mas não se importavam.
Viviam a renovação da música na década de oitenta, e só conheciam os gemidos anasalados de Chico e os gritinhos histéricos de Caetano porque os professores impunham-lhes goela abaixo, entre loas imerecidas aos ditos “expoentes da música popular brasileira”. E é bom que se diga que gerações acabaram ouvindo esses músicos em razão da massificação imposta por formadores de opinião.
Rock nacional na veia, iam de Barão, Paralamas, Lobão e Lulu Santos. Todo o repertório mal tocado – e mal cantado também –, mas era divertido. Ao menos, não perturbavam a vizinhança furtando frutas, invadindo casas para “roubar” um banho de piscina, incitando cães a latirem, ou fumando maconha, para falarem bobagens e reclamarem de fome. (“Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui maltratando as cordas do Di Giorgio”.)
Surge uma figura do nada, cambaleante, com cheiro de álcool, e pede o violão. Não tinha trinta anos. Olhares enviesados, sabe-se lá por que, entregam-lhe o instrumento, que cola no ouvido e bate nas cordas: “dom-dom-dom, din-din-din, pléin-pléin-pléin...”. Aperta daqui, afrouxa de lá e devolve o violão.
- Confere aí!
O menino, puto, dedilha o pinho: “lá-lá-lá-lá, ré-ré-ré-ré, sol-sol-sol-sol...”. Olha espantado, e solta um:
- Tá afinadinho.
O mamulengo sorri e pergunta:
- Posso tocar uma música?
Os moleques, agora curiosos, dizem em uníssono que sim; e ele manda um monte de dissonantes, faz uma papagaiada danada, e canta Papel Marchê, de João Bosco. Um deles estudava música, e ficou embasbacado com a destreza do bebum, que parou no meio da execução, e perguntou se gostaram. Todos acenaram que sim, e ele pediu para lhe pagarem uma cerveja.
“Não!”, disseram os jovens que normalmente não tinham dinheiro nem para um picolé.
- E uma cachaça? Mas caprichada...
Um dos meninos coçou o bolso e tirou uma nota que dava para pagar umas duas doses caprichadas da cachaça mais vagabunda, e outro, mais velho, foi lá buscar. Na volta, disse:
- Moço, o Carlinhos mandou num copo de plástico, depois de fazer um interrogatório danado.
Deu uma talagada e voltou a tocar: João Gilberto, Tom Jobim, João Bosco; improvisou, e tocou (sabe lá Deus se bem ou mal) música clássica... O tempo avançava, e o primeiro copo se foi. Veio o segundo e, junto, mais músicas – um violão muito bem tocado para a realidade daqueles neófitos.
No meio do segundo copo, já era quase meio dia – o sol estava rachando, e o bebum resolveu ir embora. Matou tudo, e se despediu dizendo que tocava num barzinho, num bairro próximo.
Saiu mais cambaleante que quando chegara.
Na sexta, os meninos se reuniram e foram vê-lo tocar. Talvez estivesse sóbrio, e aí seria um espetáculo. Ao chegarem, viram que os músicos se arrumavam, mas nada dele chegar; e resolveram perguntar ao cantor, que respondeu entredentes que “aquele cachaceiro irresponsável nunca mais iria tocar com ele”.
Acabou a graça, mas os meninos tiveram uma lição sobre a desgraça do alcoolismo: viram um talento desperdiçado – mais um dentre tantos, em nosso país de dimensões continentais.


Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, metido a escritor, ensaísta, cronista, contista e, de certa forma, um saudosista que agora inventou de escrever poesia.


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