segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Apertadinho



Naquela época, Dr. Tomás beirava os cinquenta anos. Não era um homem bonito, nem feio. Estava na melhor forma física de sua vida, fruto de uma operação bariátrica bem sucedida; e sua carreira o permitia ter acesso a certos prazeres da vida.
Estava no interior para acompanhar o sobrinho de um grande cliente, intimado para uma audiência no Judiciário.
A população do Município, na maior parte, era formada de descendentes de italianos e de alemães que traziam a preservação das tradições muito presente, como era possível verificar, inclusive, na arquitetura dos prédios.
Não havia chegado cedo o suficiente para o almoço, e resolveu lanchar. Como não havia lanchonetes por ali, recorreu a um botequim que lhe pareceu limpo e confiável.
Foi direto à estufa sobre o balcão, para ver o que lhe esperava.
A proprietária o atendeu, e foi logo dizendo que o “serve selfice” havia sido recolhido, mas se ofereceu para fritar uns pastéis ou até um bife, se fosse necessário.
Ele não quis incomodar, e perguntou sobre o enroladinho de salsicha que estava ali, dando sopa. Pela aparência, era “de hooooje”, mas surpreendentemente o sabor não era ruim. Comeu dois, acompanhados de uma coca de garrafa de vidro.
Agora o estabelecimento estava vazio. Os dois fregueses remanescentes do almoço deram a última lapada na pinga que degustavam, assim que o estranho adentrou o recinto. Um papudinho chamou o outro e foram embora. Era normal que, àquela hora, o pessoal da cana estivesse descansando para se preparar para o “turno da noite”.
Ela puxou assunto com o freguês. Era uma jovem senhora, não muito bonita, mas bastante comunicativa, como deve ser mesmo todo comerciante.
Tomás havia saído de seu estado natal, Rio de Janeiro, há muito, mas pensou na diferença daquela comerciante para os Manoéis e Joaquins dos botecos da Baixada Fluminense - grossos iguais a pentelho de barrão, como diria o comediante cearense Mução.
Ele, que pensava ter perdido o sotaque, achou engraçado quando ela afirmou que ele não era dali. Também não atinou para o fato de que, numa cidade pequena, todo mundo se conhece.
Respondeu com uma afirmativa, e o papo avançou, até que ele dissesse que era do Rio, mais precisamente de Belford Roxo, um lugar de muita violência, que talvez fosse difícil para ela imaginar.
Ela surpreendeu ao dizer:
- O senhor é que pensa. O interior está ficando perigoso.
Ele falou aquilo porque a TV estava ligada, noticiando em plantão, um atentado terrorista ocorrido contra um capitão do Exército, único candidato à Presidência da República do espectro da direita política em trinta anos no país.
Havia uma forte comoção, muitos estavam preocupados, ao mesmo tempo em que, do lado da oposição, aquele evento havia aflorado o sentimento mais mesquinho que pode contagiar o ser humano. Estavam felizes, torcendo pela morte do adversário. 
Ele insistiu, dizendo que, pelo menos, aquele tipo de violência não existia por aquelas bandas, mas ela respondeu:
- Ahã! Dia desses, um carro sinistro estava rodando a cidade, vidros tão escuros, não se via nada lá dentro. De repente, uns bandidos saltaram e assaltaram a Farmácia. Deram um tirambaço na moça que não conseguia abrir a caixa registradora. Todo mundo ouviu. Foi uma correria desgraçada por isso aí tudo. Só dois policiais no plantão, e o senhor  acha que eles colocaram a cabecinha de fora? De noite, eles nem saem. Fica tudo lá no posto, quietinho, com o cuzinho apertadinho, fingindo que num tem ninguém lá... – e fechou o indicador e o polegar da mão direita até não poder mais, de forma que, realmente, não poderia passar nem vento.
De repente, surgiu o marido, até então em silêncio, do fundo do bar. Carregava um prato com uma montanha de comida, já destroçada pela metade. Deu um trupicão ao bater com a sandália havaiana numa falha do piso, e por pouco não saiu da cena tão rápido quanto entrou, para ganhar a rua arrastando o banjo no chão.
Dizia ele, momentos antes de ter que se equilibrar:
- Ô, mulher! Cê tá conversando esse assunto com quem?
Tomás entendia o porquê de não haver mais comida do “serve selfice”. Tudo parecia estar no prato do comerciante, que ficara espantado ao constatar que a voz desconhecida era mesmo de alguém que ele jamais havia visto.
O clima ficou esquisito, todos estavam, àquela altura, constrangidos, e foi a deixa para o advogado pagar a conta, cumprimentar o casal e ganhar a rua.
E lá se foi, gargalhando gostosamente até chegar ao Fórum, e perceber que aquela era uma história para contar aos netos que esperava um dia ter.
E ele fazia isso agora, após tantos anos passados, rindo como se tudo estivesse acontecendo novamente.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.



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