Naquela época, Dr. Tomás beirava os cinquenta
anos. Não era um homem bonito, nem feio. Estava na melhor forma física de sua
vida, fruto de uma operação bariátrica bem sucedida; e sua carreira o permitia
ter acesso a certos prazeres da vida.
Estava no interior para acompanhar o sobrinho
de um grande cliente, intimado para uma audiência no Judiciário.
A população do Município, na maior parte, era formada de descendentes de italianos e de alemães que traziam a preservação das tradições
muito presente, como era possível verificar, inclusive, na arquitetura dos
prédios.
Não havia chegado cedo o suficiente para o
almoço, e resolveu lanchar. Como não havia lanchonetes por ali, recorreu a um botequim que lhe pareceu limpo e confiável.
Foi direto à estufa sobre o
balcão, para ver o que lhe esperava.
A proprietária o atendeu, e foi logo dizendo
que o “serve selfice” havia sido recolhido, mas se ofereceu para fritar uns pastéis ou até um bife, se fosse necessário.
Ele não quis incomodar, e perguntou sobre
o enroladinho de salsicha que estava ali, dando sopa. Pela aparência, era “de
hooooje”, mas surpreendentemente o sabor não era ruim. Comeu dois, acompanhados
de uma coca de garrafa de vidro.
Agora o estabelecimento estava vazio. Os dois
fregueses remanescentes do almoço deram a última lapada na pinga que degustavam,
assim que o estranho adentrou o recinto. Um papudinho chamou o outro e foram
embora. Era normal que, àquela hora, o pessoal da cana estivesse descansando
para se preparar para o “turno da noite”.
Ela puxou assunto com o freguês. Era uma
jovem senhora, não muito bonita, mas bastante comunicativa, como deve ser mesmo
todo comerciante.
Tomás havia saído de seu estado natal, Rio de
Janeiro, há muito, mas pensou na diferença daquela comerciante para os Manoéis
e Joaquins dos botecos da Baixada Fluminense - grossos iguais a pentelho de
barrão, como diria o comediante cearense Mução.
Ele, que pensava ter perdido o sotaque, achou
engraçado quando ela afirmou que ele não era dali. Também não atinou para o fato de
que, numa cidade pequena, todo mundo se conhece.
Respondeu com uma afirmativa, e o papo avançou,
até que ele dissesse que era do Rio, mais precisamente de Belford Roxo, um
lugar de muita violência, que talvez fosse difícil para ela imaginar.
Ela surpreendeu ao dizer:
- O senhor é que pensa. O interior está
ficando perigoso.
Ele falou aquilo porque a TV estava ligada,
noticiando em plantão, um atentado terrorista ocorrido contra um capitão do
Exército, único candidato à Presidência da República do espectro da direita
política em trinta anos no país.
Havia uma forte comoção, muitos estavam
preocupados, ao mesmo tempo em que, do lado da oposição, aquele evento havia
aflorado o sentimento mais mesquinho que pode contagiar o ser humano. Estavam felizes, torcendo pela morte do adversário.
Ele insistiu, dizendo que, pelo menos, aquele
tipo de violência não existia por aquelas bandas, mas ela respondeu:
- Ahã! Dia desses, um carro sinistro estava rodando a cidade, vidros tão escuros, não se via nada lá dentro. De repente, uns bandidos saltaram e assaltaram a Farmácia. Deram um tirambaço na moça que não
conseguia abrir a caixa registradora. Todo mundo ouviu. Foi uma correria
desgraçada por isso aí tudo. Só dois policiais no plantão, e o senhor acha
que eles colocaram a cabecinha de fora? De noite, eles nem saem. Fica tudo lá
no posto, quietinho, com o cuzinho apertadinho, fingindo que num tem ninguém
lá... – e fechou o indicador e o polegar da mão direita até não poder mais, de
forma que, realmente, não poderia passar nem vento.
De repente, surgiu o marido, até então em
silêncio, do fundo do bar. Carregava um prato com uma montanha de comida, já
destroçada pela metade. Deu um trupicão ao bater com a sandália havaiana numa falha
do piso, e por pouco não saiu da cena tão rápido quanto entrou, para ganhar a rua arrastando o banjo no chão.
Dizia ele, momentos antes de ter que se
equilibrar:
- Ô, mulher! Cê tá conversando esse assunto
com quem?
Tomás entendia o porquê de não haver mais
comida do “serve selfice”. Tudo parecia estar no prato do comerciante, que
ficara espantado ao constatar que a voz desconhecida era mesmo de alguém que
ele jamais havia visto.
O clima ficou esquisito, todos estavam, àquela
altura, constrangidos, e foi a deixa para o advogado pagar a conta,
cumprimentar o casal e ganhar a rua.
E lá se foi, gargalhando gostosamente até
chegar ao Fórum, e perceber que aquela era uma história para contar aos netos
que esperava um dia ter.
E ele fazia isso agora, após tantos anos passados, rindo como se tudo estivesse acontecendo novamente.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.
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