Smith, sobrenome Silva, chamado de Shit por
muitos, era um microempresário moralmente fracassado que, há pelo menos 10 anos,
participava da “Academia da Birita”, grupo de 30 pessoas que se reunia às
quartas e aos sábados para beber, comer, e jogar cartas e conversa fora. Dela
participavam professores, empresários de todos os portes, profissionais
liberais, servidores públicos, poetas e boêmios. O local de encontro era um
boteco bem localizado e frequentado, plantado no coração do bairro mais nobre
da cidade.
As vagas eram bastante disputadas, e seus membros
só saíam no caixão. E se só se saía no caixão, evidentemente, ninguém arredava o
pé de lá. Mas, infelizmente, eram amigos de boteco, local que, embora sugira um
aparente catalizador de amizades, há também muita falsidade. Parte dos membros era
de desajustados, que lançavam impropérios e faziam críticas pesadas contra “acadêmicos”
ausentes. Às vezes o faziam na presença mesmo. Eram os “peregrinos”, que, pulando
de grupelho em grupelho, pregavam maledicências de uns contra os outros, e de outros
contra uns.
Nitidamente, os mais infelizes ocupavam a
vida a falar de dinheiro, e invejavam e difamavam os que haviam obtido sucesso,
sem, contudo, poupar outras pessoas. Uns chegavam a tomar por ofensa pessoal o
fato de alguém ser financeiramente melhor sucedido.
Mas quem mais provocava suas frustações e seu
desprezo, eram os que não haviam enriquecido e mesmo assim viviam felizes. Principalmente,
porque, desses cidadãos de segunda classe, não era possível obter quaisquer
vantagens. Questionavam-se, afinal: como alguém pode ostentar tamanha
felicidade, tal estado de espírito, sem dinheiro no bolso ou no banco?
Naquele dia, Smith procurava Timóteo, que
havia lhe pedido para conseguir o cartão de apresentação de Felício, um
contador que frequentava o mesmo local, e com quem tivera um entrevero semanas
antes.
Não era um pedido, mas uma ordem. E embora
Smith soubesse que Timóteo iria prejudicar Felício, usando a influência e o prestígio
de que gozava perante pessoas influentes, que participavam de uma sociedade
secreta da qual era membro prestigiado. Aliás, tais figuras não se fariam de
rogadas para vasculhar a vida e entregar informações confidenciais de qualquer pobre
diabo, para atender a interesses escusos de confrades.
O microempresário simplesmente não se
importava com a sorte de Felício, já que esse pobre coitado lhe provocava uma
inveja figadal e silenciosa. Ademais, não poderia deixar de ser útil a Timóteo,
pois não se menosprezava a gratidão de alguém de tamanha envergadura.
A desavença entre Timóteo e Felício havia
alcançado os campos político, filosófico e comportamental, e Timóteo não se
conformava em perder um debate, ainda porque o opositor reunia um arcabouço
intelectual muito superior. Isso era inaceitável.
“Feito o serviço”, Smith se emocionou ao
receber um abraço “afetuoso” de tamanduá. Pediu uma pinga, espremeu meia rodela
de limão, lambeu uma pitada generosa de sal, e se recolheu em pensamentos que
atormentavam sua porca vida desinfeliz, como a esposa insatisfeita, os filhos
que não o suportavam, os amigos que não se importavam. A única coisa que o
consolava era lembrar o valor de suas economias, que já estavam na casa dos
milhões.
Fernando César Borges Peixoto
Advogado,
niteroiense, conservador, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.
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