sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Inferno dantesco




A tempestade que caiu na hora do rush da tarde, impediu que Paranhos deixasse o escritório, onde chegava, todos os dias, britanicamente, às sete e meia da matina.
O trânsito não andava, as ruas do velho centro da cidade alagavam, e como nada poderia ser feito, aproveitou para adiantar tarefas do dia seguinte, já que desde a demissão de dois funcionários para contenção de despesas, estava sempre sobrecarregado de serviços.
Apesar disso, não estava infeliz, e muito menos engrossava o coro dos descontentes que adoravam demonizar o patrão. Afinal de contas, era outra crise econômica daquelas, e o cara conseguia manter a empresa de pé, mesmo com a enorme lista de tributos pagos mês a mês, e os clientes fugindo ou não pagando os serviços prestados. Dava, isso sim, graças a Deus por estar empregado e receber em dia.
Lá pelas oito e meia da noite, a situação melhorou um pouco, e ele resolveu puxar a carroça. Foi para o ponto, esperar o ônibus da única linha que atendia seu bairro, no subúrbio. Nos dias de aumento da demanda, táxis não rodavam no taxímetro, e os aplicativos também funcionavam “no tiro”, principalmente depois que as avançadas leis trabalhistas e tributárias praticamente inviabilizaram a prestação desse serviço como era prestado quando chegou ao país. Estava resignado, pois não podia pagar.
Chegou em casa às dez e trinta e cinco, todo molhado, e foi tomar banho. A mulher e a única filha, adolescente, haviam ido dormir, e sua janta estava servida num prato que estava envolto e amarrado por um pano, e pousava sobre a panela já com água, pronta para o banho-maria.
Sentiu que a resistência do chuveiro havia queimado outra vez, e não teve saída: tomou um banho “tcheco” gelado, xingando sua sorte internamente, com todos os nomes feios que conhecia, e anteviu uma gripe forte para os próximos dias.
Colocou a comida para esquentar e serviu-se de uma dose da pinga “da boa” que o vizinho havia trazido da roça, com muitas recomendações de “a melhor que já tomei na vida”.
Já estava quase cochilando sobre o prato de comida, quando a mulher levantou para ir ao banheiro, e deu-lhe um susto ao abrir despreocupadamente a porta empenada do quarto, cujo barulho se ouvia lá na esquina. Após as últimas garfadas, foi deitar. Antes de dormir, rezou Ave-Maria e Pai Nosso. Pediu pela saúde de seus sogros, da mulher e da filha, e pelas almas dos pais e da cunhada, morta dois meses antes.
Logo, logo adormeceu. E foi aí que tudo começou.
Primeiro, viu-se com a família no Polo Comercial da Cidade, uma grande avenida, no dia da parada gay, que não sabia que tinha sido programada. Para sair do meio da confusão, entrou numa pequena galeria de doze lojas, no máximo. Por seus cálculos, se pegasse a saída dos fundos, chegaria ao seu carro, que deixara num local afastado, para não pagar o estacionamento. Foi entrando.
Na vitrine da terceira loja, estavam expostos vários pênis de borracha, de todos os tamanhos, e um rapaz de sunga fio dental, bem na porta, conversava alto com o vendedor, dizendo que queria comprar um sapato de salto descomunal, porque o dele havia quebrado no desfile.
Ao passar com sua família, eles os olharam com cara de deboche, talvez pelo misto de vergonha e assombro estampado em seus rostos. Mas o pior estava no interior da loja: uma série de manequins com pênis salientes, vestidos por lingeries sexys e mínimas.
Ao fundo, no lugar da saída, havia a porta de um Templo, com a imagem de um santo numa gruta bem ao lado. Respirou aliviado, e nem se deu ao trabalho de perguntar o que estaria fazendo, ali, uma Igreja Católica.
Entrou com a família, e viu cabritos, pessoas dançando – com roupas semelhantes às usadas na parada gay –, luzes de boate e algumas imagens de deuses hindus... Ficou chocado. Conseguiu alcançar um altar lateral, onde havia várias velas acesas e outras por acender, por quem fosse fazer pedido ou oração. Acendeu uma e pediu a Deus que perdoasse a si e a todas as criaturas que viviam em pecado. Em seguida, fechou os olhos por alguns segundos. Agora, a luz era fraca, e sua atenção foi chamada para olhar um homem que estava lá adiante, num palco iluminado, falando como se fizesse uma homilia.
Com a aparência de Jesus Cristo no Santo Sudário, estava vestido como as pessoas se vestiam em Seu tempo. Porém, ele pregava uma nova religião, suas palavras apontavam o caminho de um ecumenismo que faria surgir a religião universal, um misto de elementos de todas as religiões, em que se pregaria o respeito a tudo e a todos, conferindo idêntico valor aos homens, aos animais e à natureza, e que se prestaria culto, em pé de igualdade, ao Deus-Pai e à Mãe-Terra.
Perguntou quem seria o sujeito, e alguém de olhos vidrados esboçou um nome impronunciável. Disse que era o novo Messias, que havia abandonado uma vida de abundâncias, de mago da computação, para levar palavras de amor, paz e fraternidade a todos os povos. Os devotos estavam num transe coletivo, falavam em línguas estranhas, viravam os olhos... Parecia o efeito de alguma substância alucinógena.
Naquele momento, Paranhos viu que borrifadores espalhados por todo o recinto, que era grande, espirravam um líquido de cheiro estranho. Ele puxou mulher e filha pelos braços, e juntos saíram pela porta lateral, que dava num corredor que, enfim, alcançava a rua onde havia deixado o carro. Duas pistas precisavam ser vencidas, e ele foi à frente, para trazer o carro mais para perto. Estava tudo muito deserto por ali, e quando começou a manobrar o carro, sua esposa bateu no vidro, pedindo para entrar.
Perguntou pela menina, e ela respondeu que a havia deixado no parquinho, se divertindo. Quis voltar, mas ela disse para seguirem direto pra casa, porque havia algo urgente a fazer. Ele seguiu em frente e, chegando a casa, foi vencido por um sono irresistível. De repente, acordou e começou a procurar a filha, sem achar. Passou, então, a gritar pela mulher, perguntando da menina. Desespero total.
Agora ele realmente acordava, assustadíssimo, do sonho em que estava sonhando, e constatou que seus gritos jamais seriam ouvidos, pois a chuva e o banho gelado lhe presentearam, antecipadamente, com uma afonia e uma tosse de cachorro.

Eram quatro e meia da manhã. Esticou as mãos para o lado, e sentiu que a mulher estava ali, dormindo. Levantou, e conferiu que a filha estava na cama. Voltou ao seu quarto, e ajoelhou ao lado da cama, pedindo a Deus que salvasse suas almas, pois estava com a nítida impressão de ter ido ao inferno e voltado, numa viagem interminável e angustiante, em que não gostou de nada do que viu.


Fernando César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, até certo ponto, é um saudosista.

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