A tempestade que caiu na hora do rush
da tarde, impediu que Paranhos deixasse o escritório, onde chegava, todos os
dias, britanicamente, às sete e meia da matina.
O trânsito não andava, as ruas do velho
centro da cidade alagavam, e como nada poderia ser feito, aproveitou para
adiantar tarefas do dia seguinte, já que desde a demissão de dois funcionários
para contenção de despesas, estava sempre sobrecarregado de serviços.
Apesar disso, não estava infeliz, e
muito menos engrossava o coro dos descontentes que adoravam demonizar o patrão.
Afinal de contas, era outra crise econômica daquelas, e o cara conseguia manter
a empresa de pé, mesmo com a enorme lista de tributos pagos mês a mês, e os
clientes fugindo ou não pagando os serviços prestados. Dava, isso sim, graças a
Deus por estar empregado e receber em dia.
Lá pelas oito e meia da noite, a situação
melhorou um pouco, e ele resolveu puxar a carroça. Foi para o ponto, esperar o
ônibus da única linha que atendia seu bairro, no subúrbio. Nos dias de aumento
da demanda, táxis não rodavam no taxímetro, e os aplicativos também funcionavam
“no tiro”, principalmente depois que as avançadas leis trabalhistas e
tributárias praticamente inviabilizaram a prestação desse serviço como era prestado quando chegou ao país. Estava resignado, pois não podia pagar.
Chegou em casa às dez e trinta e cinco,
todo molhado, e foi tomar banho. A mulher e a única filha, adolescente, haviam
ido dormir, e sua janta estava servida num prato que estava envolto e amarrado
por um pano, e pousava sobre a panela já com água, pronta para o banho-maria.
Sentiu que a resistência do chuveiro havia
queimado outra vez, e não teve saída: tomou um banho “tcheco” gelado, xingando
sua sorte internamente, com todos os nomes feios que conhecia, e anteviu uma
gripe forte para os próximos dias.
Colocou a comida para esquentar e
serviu-se de uma dose da pinga “da boa” que o vizinho havia trazido da roça,
com muitas recomendações de “a melhor que já tomei na vida”.
Já estava quase cochilando sobre o
prato de comida, quando a mulher levantou para ir ao banheiro, e deu-lhe um
susto ao abrir despreocupadamente a porta empenada do quarto, cujo barulho se
ouvia lá na esquina. Após as últimas garfadas, foi deitar. Antes de dormir,
rezou Ave-Maria e Pai Nosso. Pediu pela saúde de seus sogros, da mulher e da
filha, e pelas almas dos pais e da cunhada, morta dois meses antes.
Logo, logo adormeceu. E foi aí que tudo
começou.
Primeiro, viu-se com a família no Polo
Comercial da Cidade, uma grande avenida, no dia da parada gay, que não sabia que
tinha sido programada. Para sair do meio da confusão, entrou numa pequena
galeria de doze lojas, no máximo. Por seus cálculos, se pegasse a saída dos
fundos, chegaria ao seu carro, que deixara num local afastado, para não pagar o
estacionamento. Foi entrando.
Na vitrine da terceira loja, estavam
expostos vários pênis de borracha, de todos os tamanhos, e um rapaz de sunga
fio dental, bem na porta, conversava alto com o vendedor, dizendo que queria
comprar um sapato de salto descomunal, porque o dele havia quebrado no desfile.
Ao passar com sua família, eles os
olharam com cara de deboche, talvez pelo misto de vergonha e assombro estampado
em seus rostos. Mas o pior estava no interior da loja: uma série de manequins
com pênis salientes, vestidos por lingeries sexys e mínimas.
Ao fundo, no lugar da saída, havia a
porta de um Templo, com a imagem de um santo numa gruta bem ao lado. Respirou
aliviado, e nem se deu ao trabalho de perguntar o que estaria fazendo, ali, uma
Igreja Católica.
Entrou com a família, e viu cabritos, pessoas
dançando – com roupas semelhantes às usadas na parada gay –, luzes de boate e algumas
imagens de deuses hindus... Ficou chocado. Conseguiu alcançar um altar lateral,
onde havia várias velas acesas e outras por acender, por quem fosse fazer
pedido ou oração. Acendeu uma e pediu a Deus que perdoasse a si e a todas as
criaturas que viviam em pecado. Em seguida, fechou os olhos por alguns
segundos. Agora, a luz era fraca, e sua atenção foi chamada para olhar um homem
que estava lá adiante, num palco iluminado, falando como se fizesse uma
homilia.
Com a aparência de Jesus Cristo no
Santo Sudário, estava vestido como as pessoas se vestiam em Seu tempo. Porém, ele
pregava uma nova religião, suas palavras apontavam o caminho de um ecumenismo que
faria surgir a religião universal, um misto de elementos de todas as religiões,
em que se pregaria o respeito a tudo e a todos, conferindo idêntico valor aos
homens, aos animais e à natureza, e que se prestaria culto, em pé de igualdade,
ao Deus-Pai e à Mãe-Terra.
Perguntou quem seria o sujeito, e alguém
de olhos vidrados esboçou um nome impronunciável. Disse que era o novo Messias,
que havia abandonado uma vida de abundâncias, de mago da computação, para levar
palavras de amor, paz e fraternidade a todos os povos. Os devotos estavam num transe
coletivo, falavam em línguas estranhas, viravam os olhos... Parecia o efeito de
alguma substância alucinógena.
Naquele momento, Paranhos viu que
borrifadores espalhados por todo o recinto, que era grande, espirravam um
líquido de cheiro estranho. Ele puxou mulher e filha pelos braços, e juntos
saíram pela porta lateral, que dava num corredor que, enfim, alcançava a rua
onde havia deixado o carro. Duas pistas precisavam ser vencidas, e ele foi à
frente, para trazer o carro mais para perto. Estava tudo muito deserto por ali,
e quando começou a manobrar o carro, sua esposa bateu no vidro, pedindo para
entrar.
Perguntou pela menina, e ela respondeu
que a havia deixado no parquinho, se divertindo. Quis voltar, mas ela disse
para seguirem direto pra casa, porque havia algo urgente a fazer. Ele seguiu em
frente e, chegando a casa, foi vencido por um sono irresistível. De repente,
acordou e começou a procurar a filha, sem achar. Passou, então, a gritar pela
mulher, perguntando da menina. Desespero total.
Agora ele realmente acordava,
assustadíssimo, do sonho em que estava sonhando, e constatou que seus gritos
jamais seriam ouvidos, pois a chuva e o banho gelado lhe presentearam,
antecipadamente, com uma afonia e uma tosse de cachorro.
Eram quatro e meia da manhã. Esticou as
mãos para o lado, e sentiu que a mulher estava ali, dormindo. Levantou, e conferiu
que a filha estava na cama. Voltou ao seu quarto, e ajoelhou ao lado da cama,
pedindo a Deus que salvasse suas almas, pois estava com a nítida impressão de ter
ido ao inferno e voltado, numa viagem interminável e angustiante, em que não gostou
de nada do que viu.
Fernando
César Borges Peixoto
Advogado, niteroiense, conservador, gosta de escrever e, até certo ponto, é um saudosista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário